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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.4 São Paulo out./dez. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000400012 

     

    Ditadura militar, universidade e ensino de história: da Universidade do Brasil à UFRJ

    Marieta de Moraes Ferreira

     

    Em 2014, a implantação do regime militar no país completou 50 anos. Neste ano, inúmeros tem sido os eventos, seminários, publicações dedicados a analisar e produzir balanços sobre os 21 anos de vigência da ditadura militar. A proposta deste artigo insere-se neste esforço ao se propor focalizar os embates políticos e historiográficos travados no curso de história da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi/UB) (1958-1968), bem como os efeitos provocados pela repressão desencadeada pela ditadura militar no Brasil que atingiu seus professores e alunos.

    Esta temática oferece possibilidades teóricas e metodológicas para encararmos os desafios de entender o percurso desse campo disciplinar num momento de grandes transformações, bem como as problemáticas que caracterizam a história do tempo presente. Lidar com os eventos e os atores que participaram dessa história é uma oportunidade para exercitarmos nossa capacidade crítica de avaliar interpretações marcadas por memórias traumáticas, fontes policiais, fortemente comprometidos com posicionamentos ideológicos polarizados e radicais.

    Para tal, tomamos como referência um conjunto diversificado de fontes que nos permitissem recuperar eventos desse passado recente marcado pela emoção e pela subjetividade. Um ponto de partida importante para a pesquisa foi a entrevista realizada em 1994, com Maria Yeda Linhares, catedrática de história moderna e contemporânea, vítima da repressão, que serviu de roteiro inicial para, em anos posteriores, orientar a realização de outras entrevistas feitas com antigos alunos e professores.

    Embora produzidas em contextos e com objetivos distintos, as entrevistas têm um eixo comum que focaliza a trajetória dos depoentes, as suas origens familiares, sua formação profissional, sua opção pela área de história, a docência na FNFi, e sua experiência como alunos daquela faculdade. A escolha dos entrevistados teve um objetivo claro: obter depoimentos de ex-alunos e professores de diferentes gerações que pudessem recuperar eventos e momentos diversos do curso de história da FNFi e do IFCS (1).

    Ao lado da coleta da memória oral, o acervo da própria FNFi também forneceu material que nos ajudou a conhecer a estrutura dos cursos e as grades curriculares, os boletins do Centro de Estudos de História foram especialmente de grande valia para mapear os conflitos políticos e historiográficos em pauta no curso de história, para os anos de 1958-1963.

    Por fim, de grande importância foram também os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), nos quais foram localizados dossiês dos professores e alunos e, em especial, um dossiê dedicado à FNFi. Esse acervo, ao mesmo tempo rico e perigoso, que exige extremo cuidado do pesquisador, reúne informações que permitem esclarecer, confrontar, questionar os dados relatados pelos depoimentos orais.

    A Faculdade Nacional de Filosofia, e, em particular, o curso de história passariam por grandes transformações na virada dos anos 1950. Criado em 1939, vinculado à Universidade do Brasil, o projeto da Faculdade de Filosofia visava à consolidação de uma universidade-padrão que servisse de modelo para as outras que viessem a se constituir, e tinha por objetivo prioritário preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal.

    A FNFi estava organizada em quatro seções fundamentais: de Filosofia, de Ciências, de Letras e de Pedagogia. Haveria, ainda, uma seção especial de Didática. História e geografia, entre outros cursos, eram unificados e ligavam-se à seção de Ciências que só seria desmembrada a partir de 1955. A institucionalização do curso de história na FNFi foi fortemente influenciada pela concepção de uma história política, dominante na época, destinada a reforçar os laços da identidade brasileira por meio da ênfase na unidade nacional e no papel dos grandes heróis como construtores da nação (2).

    Com a separação do curso de história e geografia em dois departamentos distintos abriu-se espaço para uma maior oxigenação do curso de história, com uma mudança curricular e a introdução de novas disciplinas. Paralelamente, uma geração mais nova de professores começou a ocupar posições. Ainda nesse mesmo ano, a jovem Maria Yedda Linhares fez concurso para ocupar a cátedra de história moderna e contemporânea. Em 1958, Eulália Lobo assumiu o posto de regente da cadeira de história da América e novos assistentes também passaram a ser incorporados em várias disciplinas.

    LUTAS POLÍTICAS E EMBATES HISTORIOGRÁFICOS A conjuntura que se inaugurou no final dos anos 1950, no Brasil, foi marcada por um processo de radicalização dos movimentos sociais, criando uma polarização entre esquerda e direita. Delineava-se um contexto político de grande mobilização contra o comunismo e contra a revolução cubana. Essas questões, dominantes na conjuntura internacional, promoviam uma grande polarização e confronto entre os países ocidentais capitalistas e os países comunistas, e exacerbavam internamente as posições ideológicas em conflito.

    Especialmente na virada para a década de 1960, esse processo de mudanças se aprofundou com a radicalização e a polarização das lutas políticas que se instalaram no Brasil em virtude do embate político ideológico frente aos eventos marcantes do governo do presidente João Goulart, tais como o programa para a reforma agrária, a revolta dos sargentos, a política externa independente, o comício da Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro,, para citar apenas alguns pontos (3).

    Todos os debates que esses temas envolviam repercutiam intensamente na FNFi e, em especial, no curso de história. Se, nos anos anteriores, as diferentes concepções de história e as visões divergentes sobre o formato dos cursos e as relações entre ensino e pesquisa já se delineavam, a nova conjuntura de intensos debates sobre o lugar da universidade e o uso do ensino de história como instrumento de transformação social provocou, cada vez mais, uma cisão entre alunos e professores, e entre os próprios professores (2).

    A cadeira de história do Brasil, ocupada por Hélio Vianna, tinha uma postura conservadora, e sua orientação voltava-se para a história política e, principalmente, a história diplomática.

    A história do Brasil colonial recebia atenção especial, e as temáticas republicanas ficavam completamente secundarizadas; a abordagem historiográfica era marcada por uma supervalorização dos eventos e dos grandes personagens, sem que a dimensão econômica fosse trabalhada segundo depoimentos de ex-alunos de várias gerações, e eram profundamente enfadonhas, exclusivamente expositivas, com relatos factuais minuciosos. Não havia nenhum estímulo à pesquisa, nem com fontes, nem com bibliografia (4).

    Enquanto o catedrático de história do Brasil veiculava uma história voltada para o passado distante, com ênfase na história política, em especial na valorização do processo de construção da unidade nacional e no destaque do papel dos grandes personagens do panteão nacional, a cadeira de história moderna e contemporânea passou a privilegiar o estudo de períodos mais recentes, com temas sobre história da África, descolonização, as revoluções comunistas, e a funcionar como um espaço de debate e crítica, o que não era comum nas outras cadeiras do curso (4).

    Os alunos se identificavam, cada vez mais, com as forças de esquerda, e desejavam um curso que incorporasse a produção do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), entidade de orientação de esquerda, e novas temáticas como as lutas sociais no Brasil (5).

    Ao mesmo tempo em que se delineava uma reestruturação das organizações de esquerda, novas orientações e novos grupos surgiam no país com tendências políticas mais radicais. A penetração do Partido Comunista no meio estudantil, ainda que dominante, começava a suscitar críticas e estimular a aproximação com outras orientações de esquerda. A crescente mobilização dos trabalhadores, tanto nas cidades quanto no campo, reivindicando não só melhorias salariais, como também mudanças na estrutura desigual da sociedade, provocavam estímulos para que os estudantes universitários se engajassem de forma mais efetiva nas lutas sociais.

    O posicionamento defendido pelos estudantes engajados nas lutas sociais do presente e comprometidos com a necessidade de compreensão do mundo contemporâneo a partir de uma perspectiva brasileira conduzia a uma postura segundo a qual o curso de história deveria se envolver com os problemas da atualidade, e o conhecimento histórico deveria apresentar explicações e possíveis soluções (6; 7). Para que o ensino de história pudesse ser revisto, a formação do profissional deveria também ser modificada. Os livros didáticos teriam que dar maior atenção ao estudo da história recente do Brasil.

    O depoimento de Pedro Celso Uchoa Cavalcanti (8), diretor do Centro de Estudos de História em 1962, expressa com clareza os anseios daqueles jovens universitários: "Para a minha geração, para nós de esquerda, tinham três autores de história: o Caio Prado Jr., o Nelson Werneck Sodré e o Celso Furtado. O resto não tinha importância".

    Com essa perspectiva, os alunos do curso de história ligados ao Centro de Estudos de História rejeitavam os ensinamentos ministrados na maioria das disciplinas oferecidas no curso (com a exceção da cadeira história moderna e contemporânea), e passavam a ser envolver com o Iseb e a planejar, sob a orientação do marxista Nelson Werneck, a produção de uma coleção de livros didáticos que veio a se chamar "História Nova" (9).

    Com essa orientação, teve início a produção dessa coleção de livros didáticos, que tinha o propósito de levar para a educação básica outra visão da história, na qual a dimensão econômica e as lutas sociais desempenhavam um papel-chave. Assim, ainda que professores como Maria Yeda, com um posicionamento de esquerda, discordassem da concepção de história de Nelson Werneck Sodré, a penetração de suas ideias e das teses marxistas ganhava espaço no FNFi em aberto confronto com as visões há anos transmitidas pelos catedráticos de história do Brasil e história da América.

    A intensificação do engajamento cada vez maior de alunos e também de professores nos embates políticos travados nos últimos meses do governo Goulart, acerca do papel da universidade de maneira geral, do curso de história e dos usos do ensino de história como instrumento de transformação social provocou, cada vez mais, uma cisão entre alunos e professores, e entre os próprios professores. Os acontecimentos do ano de 1963 foram especialmente importantes nesse processo, ao provocar uma maior radicalização e um aprofundamento das dissensões políticas na FNFi. Nas palavras de Arthur Poerner (10) a FNFi, de 1960 a 1964, foi uma espécie de "escalão avançado do movimento estudantil", sendo vista como a mais politizada das universidades brasileiras.

    A FNFI NO FOCO DA REPRESSÃO Nos primeiros meses de 1964, a despeito da resistência do Congresso em avançar na aprovação das reformas de base, Goulart decidiu implementar a reforma agrária, adotando como estratégia mobilizar a população para pressionar o Parlamento. Em 13 de março de 1964, o comício da Central foi um divisor de águas nesse processo. Evidentemente, alunos e muitos professores da FNFi participaram ativamente desses momentos finais do governo Goulart, acreditando que a revolução socialista estava por vir. O desfecho dessa história é conhecido.

    Em 31 de março de 1964, o golpe militar decretou o fim do governo Goulart, desencadeando forte repressão contra as forças de esquerda.

    Na FNFi e no curso de história, os episódios que se seguiram foram traumáticos e condicionaram, de forma intensa, a memória das décadas posteriores. Logo nos primeiros momentos, Eremildo Viana, ajudado por tropas militares, ocupou a Rádio MEC, então dirigida por Maria Yedda Linhares, a pretexto de que lá existia um foco de agitação e estavam armazenadas armas para desencadear atos subversivos. Nas semanas que se seguiram, Maria Yedda foi afastada, e Eremildo Viana passou a ocupar seu lugar. Esse episódio marcou profundamente o curso de história, seus alunos e professores, que passaram a encarar Eremildo como o responsável por todo o processo de repressão que se seguiu. Maria Yeda Linhares referindo-se a esse episódio relatou: "A história da tomada da Rádio MEC, ficou célebre. A partir daí fui alvo de inúmeras investigações, se não me engano foram sete IPMs. Fui muito perseguida, foram os momentos mais difíceis da minha vida" (11).

    Nos meses seguintes, vários Inquéritos Policiais Militares (IPMs) foram abertos para apurar a infiltração comunista na FNFi, e professores foram acusados e presos, enquanto alunos eram expulsos.

    De acordo com os dossiês produzidos pelos órgãos de segurança, na FNFi funcionava uma célula comunista que reunia vários professores. As informações reunidas nesses dossiês recuperam eventos e personagens que atuaram na FNFi a partir de 1958, e uma figura destacada nas denúncias feitas por Eremildo, mas também mencionada em outros relatos, é a de Maria Yeda Linhares.

    Segundo essa documentação, que pretendia fazer um histórico das ações da esquerda na FNFi, reunindo documentos relativos a diferentes momentos, Maria Yedda Linhares era tida "como comunista fanática", "perigosa" como "propagandista de ideias extremistas" e acusada de "ter convidado para seus instrutores dois comunistas conhecidos que (...) induzem os alunos à indisciplina para com os professores democratas" (12)

    Ainda segundo essa documentação, Maria Yeda, mantinha íntimas ligações com João Christovão Cardoso (catedrático de físico-química), Darcy Ribeiro, Osvaldo Hurbster de Gusmão e Álvaro Vieira Pinto. Sua atuação "por ordem da célula comunista, era aliciar os alunos do curso de filosofia – quatro deles (Wanderlei Guilherme dos Santos, Carlos Estevam Martins, Alberto Coelho de Souza e Fausto Guimarães Cupertino)" e "disseminar ideias de subversão contra o então chefe do Departamento de Filosofia, o Sr. Prof. Nilton Campos" (12). "E assim começou o grande motim na FNFi, que culminou em imoralidade por aquela professora que foi acusada, em inquérito, de acobertar atividades indecorosas dos alunos. (...) Nomeada pelo ministro Paulo de Tarso diretora da Rádio MEC, por indicação de Darcy Ribeiro, tinha como objetivo de utilizar-se da radiodifusão para disseminar as ideias que prega na Faculdade" (12).

     

     

    Constituindo-se a FNFi e alguns de seus professores, na visão dos órgãos de segurança, em um antro de comunistas e de perigosos extremistas, seria um alvo preferencial da repressão. A "caça às bruxas" estava em vigor e, mais uma vez, episódios pontuais do passado, que envolveram alunos e resultaram em inquéritos administrativos para apurar atos tidos como indecorosos, foram acionados para incriminar e desmoralizar professores, acusados de coniventes e participantes de atividades imorais no âmbito da faculdade (12).

    A COMISSÃO DE INVESTIGAÇÃO DA UNIVERSIDADE DO BRASIL Exatamente para atingir esse espaço de oposição e de debates foi instaurada, em maio de 1964, uma Comissão de Investigação da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, para apurar a infiltração comunista na FNFi.

    De acordo com a documentação arquivada no Dops, constituída também pelo noticiário publicado na imprensa, apesar das suspeitas de existência de uma célula comunista funcionando na FNFi, a comissão não encontrou elementos importantes para a comprovação das acusações feitas aos chamados comunistas da FNFi, tais como Viera Pinto e Maria Yedda Linhares.

    Eremildo Viana, em seu depoimento arquivado na documentação do Dops, declara "que a comissão foi feita para desmoralizá-lo, para acusá-lo de delator de alunos e professores da faculdade e de improbidade administrativa" (13). Ainda de acordo com as suas palavras, "afirma que a Comissão, além de nada apurar contra o reitor e demais membros da administração universitária, teria passado a fazer a defesa dos professores e alunos comunistas da universidade.

    Os embates entre Eremildo Viana e o general Nóbrega, relativos aos resultados apurados pela comissão da UB, transmitidos diariamente pela grande imprensa carioca, indicam o lugar de importância que a FNFi ocupava na cena política do país naquele momento, e como ainda havia espaços de luta e de alguma garantia de defesa das oposições frente ao arbítrio do regime militar recém-instalado.

    O relato de Eulália Lobo relembra esses episódios (14):

    "Mas ainda antes da divisão da Filosofia, logo depois de 64, a universidade ficou muito visada, e Eremildo fez uma série de denúncias. Quando afinal abriram um inquérito, o general encarregado acabou ficando contra o Eremildo, achando que ele era um intrigante, uma pessoa de caráter no mínimo leviano. Ele denunciou a existência de células comunistas, haveria — imaginem que coisa ridícula! — uma Célula Anchieta na FNFi. Eremildo denunciou como conspiradores comunistas Manoel Maurício de Albuquerque, José Américo Pessanha, Maria Yedda Linhares, Evaristo de Morais Filho, Marina São Paulo de Vasconcellos e a mim, entre outros".

    Nesse contexto, o funcionamento da FNFi ficou em grande parte paralisado, e as atividades docentes ficaram fortemente comprometidas. Somente partir de 1965 o ritmo da FNFi começaria a se regularizar, mas em novas bases, agora sob um regime ditatorial.

    TEMPOS SOMBRIOS PARA A HISTÓRIA NO IFCS Após o golpe militar de 1964, o Ministério da Educação assumiu a bandeira da reforma universitária, e começou a promover mudanças nas universidades federais que foram sendo difundidas para as demais (15).

    Em 1965, uma lei federal definiu que a Universidade do Brasil passaria a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que, a seguir, suas escolas passariam a integrar ou a constituir institutos. O curso de história passaria, assim, a partir de março de 1967, a fazer parte do recém-criado Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), e teria sua sede na rua Marquês de Olinda, onde já funcionava o Instituto de Ciências Sociais.

    O depoimento de Eulália Lobo nos fornece elementos para a reconstrução das memórias sobre as discussões acerca da reforma universitária e do desmonte da FNFi.

    Algum tempo depois da chamada Revolução, em 1967, houve uma divisão da antiga Faculdade Nacional de Filosofia em várias escolas e institutos. Passei então a dar aulas no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o IFCS, que absorveu o curso de história da antiga FNFi. O IFCS se incorporou a uma instituição já existente, o Instituto de Ciências Sociais, que era dirigido pelo Evaristo de Morais Filho e só fazia pesquisas. Estava instalado numa casa muito bonita, antiga, na rua Marquês de Olinda, em Botafogo. Com a incorporação, aquele tornou-se um lugar de debates, que ficou muito focalizado pois além do pessoal da casa, pessoas de outros núcleos da universidade iam para lá discutir. Era um lugar de grande agitação intelectual (14).

    Nos meses seguintes, o processo de radicalização política atingiu seu auge, com a realização, por órgãos de repressão, de um atentado a bomba ao prédio da Rua Marquês de Olinda, e com a expansão do movimento estudantil, que deflagrou uma onda de greves que paralisaram em grande parte as atividades universitárias.

    O depoimento de Miridan Falci recupera elementos desses eventos: "Os meus primeiros dias como professora universitária, foram no prédio da rua Marquês de Olinda. Eulália acabara de ser presa, e os alunos se revoltaram, quebrando todas as janelas. Veio a polícia, estebeleceu-se um cerco, na tentativa de prender sei lá quem. Foi uma experiência terrível. O clima da faculdade estava completamente mudado" (16).

    Neyde Theml complementa esse relato. Referindo-se a sua permanência na Marquês de Olinda até o final de 1969, declarou: "Foram tempos difíceis, a polícia onipresente, frequentemente tentando invadir as classes. Era complicado. Hélio Vianna morreu e as cassações exigiram que vários docentes fossem substituídos, mas alguns substitutos não apareciam para dar aula" (17).

    A despeito de todas essas mudanças, de acordo com os depoimentos de Maria Yedda Linhares e de Francisco Falcon, entre 1965 e 1968 foi possível uma recuperação da dinâmica do curso de história, especialmente nas cadeiras de história moderna e contemporânea e de história da América, já com Eulália Lobo à frente. O próprio crescimento do movimento estudantil a partir de 1966, e os questionamentos crescentes do regime militar funcionavam como estímulo ao debate, com a criação de grupos de estudos, seminários e palestras, e o envolvimento com leituras que levavam a uma interpretação da história na perspectiva do materialismo histórico. Ainda nesse período, Maria Yedda tentou criar uma pós-graduação em história social. Chegou a ser elaborado um projeto para o funcionamento do novo curso, mas a iniciativa não vingou. A grade curricular da graduação também não sofreu alterações de monta.

    Se, no imediato pós-1964, houve condições de resistência nos escombros da FNFi, então já desmembrada em diferentes institutos, após 1968, os anos de chumbo começariam para valer. Com a decretação do Ato Institucional no5 (AI-5), em dezembro de 1968, houve a cassação de vários professores, e a aplicação do Decreto no 477 para vários alunos.

    O NOVO SENHOR DO IFCS Agora transferido para o largo de São Francisco, o IFCS e o curso de história enfrentariam, por vários anos, um clima de denúncia e de perseguição, comprometendo de forma dramática suas atividades. De acordo com os relatórios dos órgãos de segurança, fica evidenciada a importância ganha por Eremildo Viana e o reconhecimento do regime aos seus serviços prestados no combate das atividades ditas comunistas.

    Procedidas sindicâncias sobre o professor Eremildo Luiz Vianna, foi apurado que os antecedentes aqui registrados estão corretos quanto às atividades anticomunistas. O epigrafado desenvolveu intensa atividade contra a infiltração comunista que se fazia sentir na FNFi e na UFRJ, no período de 1963 e parte do ano de 1964. No ano de 1963, o marginado prestou depoimento no inquérito aberto no Parlamento para apurar as atividades comunistas na ex-UNE, tendo atuado como testemunha de acusação contra professores e estudantes comunistas. Em vista de sua atuação contra a divulgação e as atividades comunistas na FNFI, foi exonerado do cargo este que exercia desde 1957. Com o advento da Revolução, foi empossado no cargo de diretor da Rádio Ministério da Educação, cargo que ocupava até 07/69 (18).

    Esse retrato da trajetória de Eremildo, produzido pelos órgãos de segurança, nos indica os recursos de poder e o cacife que adquiriu para retornar à universidade como o "novo senhor" do curso de história e do IFCS da UFRJ. Tratava-se de atrair novos professores, visto que muitos tinham sido cassados ou atingiam a aposentadoria, como Hélio Vianna e Silvio Julio. O regime de cátedra também tinha terminado, mas a forma de ingresso não mudava muito. O recrutamento continuava na base das relações pessoais e de indivíduos que não tinham o chamado "passado politico".

    Miridan Falci, professora recém contratada por indicação de Arthur Cesar Ferreira Reis, em seu depoimento, relata o clima de opressão vivido no IFCS a ponto de reduzir drasticamente a produção acadêmica.

    Um dia, mencionei O processo civilizatório, do Darcy Ribeiro, e Formação econômica da América Latina, de Celso Furtado. São dois livros extraordinários, e que eu adoro. Escrevi os títulos e o nome dos autores no quadro-negro, e disse aos alunos que estudassem o primeiro capítulo de um e de outro, porque eu ia fazer o confronto entre o antropólogo, pensando como é a América (...) e o historiador econômico, (....) resumindo, um debate: Darcy Ribeiro versus Celso Furtado. Mal concluíra a proposta, uma aluna levantou-se e veio a mim avisar que dois agentes do Dops estavam sentados no fundo da sala. Eu já ouvira comentários sobre policiais infiltrados, mas estes, vestindo ternos pretos, um deles carregando uma pasta, faziam questão de ostentar a sua presença. Sua tarefa era assistir à minha aula. (....) Uma semana depois, fui chamada ao gabinete do Eremildo (...) me advertiu de que o AI-5 proibia portar, difundir e até mesmo falar a respeito da obra de autores cassados (16).

    O depoimento de Nara Saleto (19), que ingressou no curso de história em 1973, dá uma ideia do clima reinante no recém criado Instituto de Filosofia e Ciências Sociais:

    Como estou dizendo, os primeiros tempos do IFCS foram terríveis. Havia funcionários espiões, que entravam nas salas de aula a pretexto de ninharias, e seguiam os passos dos professores por toda a parte, até nos elevadores! Eu não podia conversar com os alunos, muito menos convidá-los para ir à minha casa. Eles iam claro, mas ninguém devia saber: era malvisto, pecaminoso [risos]. A vigilância se estendia dos corredores à cantina, e, se, aos poucos, o clima foi se atenuando, isso se deveu principalmente aos estudantes (19).

    Esses dois relatos nos dão a ideia do clima de obscurantismo e de repressão que vigorou no IFCS e no curso de história. Se em algumas universidades e departamentos o impacto do golpe militar não provocou um impacto tão intenso na desagregação dos cursos e na anulação da possibilidade de desenvolvimento de atividades de pesquisa, no curso de história o período do regime militar foi devastador. O próprio processo de criação dos programas de pós-graduação, desenvolvidos durante o regime militar e que alcançou sucesso em muitas universidades, no caso do Departamento de História não se concretizou. A tentativa de criação do curso de pós-graduação em história, em 1970, pelo professor Eremildo Viana, não logrou sucesso. A avaliação por aqueles que foram seus primeiros alunos e que pode ser confrontada com a documentação escrita, demostra que o curso não conseguiu se estruturar de acordo com as normas da Capes e nenhuma dissertação foi defendida até 1982, quando Eulália Lobo pôde assumir a coordenação do curso.

    Neyde Theml relembra seu ingresso como aluna nesse curso em 1970. "De início, um curso de aperfeiçoamento, que depois virou mestrado. Fiz concurso e passei. Durou anos, parecia um curso ginasial, interminável. Concluí em 1979 e só tirei o diploma em 1982. Fomos obrigados a esperar o reconhecimento" (17).

    O balanço de Eulália Lobo sobre o que aconteceu com o Departamento de História da UFRJ depois do AI-5 é bastante significativo e confirma as palavras de Neyde.

    O IFCS "ficou bastante enfraquecido, não só o Departamento de História, mas os departamentos de Antropologia e de Filosofia. O que aconteceu foi que não havia pessoas disponíveis para substituir os que saíram. Houve um declínio de qualidade, que se reflete inclusive num catálogo publicado pela universidade. Lá você vê que durante todo o período da ditadura foram feitas três pesquisas no Departamento de História. Três pesquisas mínimas, monográficas. Se você compara essa produção com o período anterior, com Luciano Martins trabalhando, Stella Amorim, Maurício Vinhas de Queiroz, Yedda, eu e muitos outros, fica claro que a atividade era muito maior. O obscurantismo foi tal que a biblioteca foi fechada! Quando voltei para o IFCS, com a anistia, a primeira coisa que fiz foi lutar pela biblioteca. Abrimos uma câmara escura no quarto andar, onde estavam os livros empacotados, e trouxemos tudo para fora em carrinhos de mão emprestados da seção de obras do prédio [...] Podia ter havido pesquisa, do tipo conservador, que fosse, mas não houve. A biblioteca foi enclausurada! O que se pode dizer disso? Foi um declínio horrível (14).

    Foi com o processo de abertura política, iniciado com o governo Geisel (1974-1979), e com o avanço das lutas pela anistia que novos tempos vieram para o IFCS e para o curso de história, com a plena reintegração dos docentes cassados, em1979.

    Cabe destacar, por fim, que os debates e os desdobramentos dos eventos ocorridos na década aqui enfocada revelam-se fundamentais para se compreender os movimentos sucessivos que tiveram lugar no território pouco pacífico de desenvolvimento dos cursos universitários de história. Merece destaque igualmente a importância e as possibilidades do estudo acerca das memórias de eventos traumáticos e a repressão desencadeada na FNFi/IFCS. Uma análise dos depoimentos de professores, coletados para esta pesquisa, nos permite destacar alguns pontos importantes.

    Como sabemos, os depoimentos orais são memórias que representam diferentes versões do passado e expressam lembranças contraditórias, esquecimentos, distorções, conflitos, e não podem ser tomados como relatos "verdadeiros" e "objetivos" sobre os fatos narrados; mas, ainda assim e por isso mesmo, nos permitem o acesso a um rico material e a informações pouco encontradas em outras fontes. Os relatos obtidos se revestiram de grande relevância como chave e ponto de partida para mapear questões a serem pesquisadas num emaranhado de documentos, dispersos e fragmentados. Além de preencher muitas lacunas que a documentação escrita não conseguia suprir, os relatos orais foram caminhos seguros e ricos para esclarecer as disputas e conflitos de memórias, e para nos fornecer pistas para compreender as versões construídas sobre a trajetória dos cursos. O foco central dos depoimentos concentrou-se nas lutas políticas, em especial do final dos anos 1950 até 1968, mais do que no conteúdo dos cursos em si mesmo, considerando que a maioria dos depoentes ingressou na universidade a partir de 1957/1958 e, por conseguinte, muito de suas vivências privilegiaram os anos de radicalização política no Brasil, a partir do governo JK até a queda de Jango, com o golpe militar de 1964. O que se pode perceber é que o engajamento dos alunos e professores nos projetos de transformação do Brasil, ainda que de diferentes maneiras e com orientações políticas distintas, condicionaram fortemente as memórias sobre o curso de história, colocando no esquecimento fatos positivos para destacar a repressão e os traumas que o golpe militar provocou.

     

    Marieta de Moraes Ferreira é professora do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Entre os entrevistados estão Vicente Tapajós, Borges Hermida e Eremildo Viana, Maria Yeda Linhares, Eulália Lobo, Cibele Ipanema Moreira; Francisco Falcon, Miridan Falci, Clóvis Dotore, Pedro Celso Uchoa Cavalcanti, Ilmar Matos, NeydeThelm, Arno Wehling.

    2. Ferreira, M. de M. A História como ofício. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013.

    3. Ferreira, M. de M. & Franco, R. "Desafios do ensino de história". Estudos Históricos, vol. 21, pp.79-93, 2008.

    4. Entrevista com Francisco Falcon (2013). In: Ferreira, M. de M., A história como ofício. Rio de Janeiro: FGV editora, 2013.

    5. Pereira, D. M. "Boletim de História: uma experiência de vanguarda na Faculdade Nacional de Filosofia — 1958/1963". Rio de Janeiro, 1998. Dissertação (mestrado em história) — Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.

    6. Boletim de História, 1962.

    7. Boletim de História, 1963.

    8. Citação do Pedro Celso refere-se à entrevista publicada em Op. Cit. Ferreira, 2013.

    9. Coleção de livros didáticos que veio a se chamar "História Nova" e que foram destruídos pelo regime militar.

    10. Poerner, A. O poder jovem: história da participação política dos estudantes desde o Brasil colônia até o governo Lula. 5.ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2004. p.188.

    11. Entrevista com Maria Yedda Linhares. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Cpdoc/FGV, v. 5, n. 10, p. 216-250, 1992. Disponível em: www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/105.pdf

    12. Ver documentação do Dops, arquivo do Aperj, ficha de Maria Yedda Linhares.

    13. Depoimento ao Dops. Arquivo do Dops — Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). Dossiê de Eremildo Viana, Faculdade Nacional de Filosofia.

    14. Depoimento ao Dops. Arquivo do Dops — Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). Dossiê de Eulália Lobo, Faculdade Nacional de Filosofia.

    15. Abreu, A. A. de et al. (org.). Reforma universitária. Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: FGV, vol.4. 2001.

    16. Entrevistas com Miridan Falci Britto Falci (2013) In: Op. Cit. Ferreira, 2013

    17. Entrevista com Neyde Theml Tel (2012). In: Op. Cit. Ferreira, 2013.

    18. Ver Arquivo do Dops. Dossiê Emerildo Viana. Informação nº 184/69 da SOB datada de 28 jul. 1969.

    19. Entrevista com Nara Saleto (2010). In: Op. Cit. Ferreira, 2013

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Amado, J.; Ferreira, M. de M. (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

    "Boletim de História. Um pouco de luz sobre a educação no Brasil e suas causas". Boletim de História, Centro de Estudos de História, Faculdade Nacional de Filosofia, Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2/3, p. 133-145, jan.-mar./abr.-jun. 1959b.

    Fávero, M. de L. de A. Universidade e poder. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980.

    Miceli, S. História das ciências sociais. São Paulo: Sumaré, 1995. V. 2

    Motta, R. P. S. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahr, 2014

    Pinto, Á. V. Ideologia e desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: Iseb, 1959.

     

    ENTREVISTAS CONSULTADAS

    Arquivo Faculdade Nacional de Filosofia (Programa e Estudos e Documentação Educação e Sociedade — Proedes/UFRJ).

    Arquivo do IFCS/UFRJ — Documentação dos professores Eremildo Viana, Hélio Viana e Marina Delamare São Paulo de Vasconcellos.