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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.4 São Paulo out./dez. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000400013 

     

    Um personagem e suas histórias

    Helena Bomeny

     

    (...) aqueles que falam da decadência do ensino superior ou não têm memória, porque são velhos, ou não conhecem a história, porque são moços.

    Newton Sucupira (1)

     

    Newton Sucupira (1920-2007) é nosso personagem neste artigo. Sua trajetória se confunde, em muitos aspectos, com os caminhos da educação superior brasileira, com a democratização do acesso à universidade e, também, com a institucionalização da pós-graduação. O acesso mais amplo às universidades e a expansão da pós-graduação no país teriam que ser pensados em conjunto, insistia o professor Sucupira sempre que questionado sobre esses dois empreendimentos. Foi a reforma universitária de 1968 que viabilizou a expansão e a consolidação da pós-graduação, uma vez que previu, no âmbito da vida universitária, a associação de ensino e pesquisa. Antes da reforma de 1968, qual era o lugar da pesquisa no Brasil, se perguntava Sucupira? Havia uma demanda desde a década de 1950, ou seja, já se propagava a bandeira da organização institucional compatível com a exigência de pesquisa. Tal organização e, sobretudo, "esse fazer da pesquisa elemento fundamental veio com a reforma de 68", assegurava o educador. Quando a reforma estabeleceu, pela primeira vez no Brasil, indissociar ensino e pesquisa, instituiu a ideia, que foi se consolidando com o passar dos anos, de que a atividade de pesquisa é institucional, ou seja, que "uma universidade não pode ser universidade sem que tenha uma programação de pesquisa ou uma política de pesquisa" (1). Esse é o fundamento da crença de Newton Sucupira: que foi a reforma de 1968 que deslanchou o Parecer 977-65, do Conselho Federal de Educação, que instituiu a pós-graduação no Brasil tornando realidade o que era ainda uma intenção.

    Conheci o professor Sucupira por ocasião de uma entrevista que ele me concedeu e que seria base da escrita de um livro em sua homenagem que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) promovia quando o Parecer 977-65 completava quarenta anos (2). Ele nos recebeu, a mim e à Raquel Emerique, em sua residência no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, no dia 16 de fevereiro de 2001. Sabíamos da fama do educador de não estabelecer, com facilidade, uma conversa descontraída, desarmada. Homem de temperamento firme, católico, nascido da convencional e bem posta elite nordestina, adepto da filosofia alemã, confessadamente rígido no comportamento pessoal, e na educação de seus nove filhos, Sucupira foi autor de mais de 400 pareceres, muitos dos quais relativos à definição e regulamentação de políticas educacionais no período do regime militar (1964-1985). Em seu depoimento surpreendeu-nos a memória viva não só de nomes, episódios, argumentos intelectuais e referências bibliográficas, mas também, de números de decretos, pareceres, além dos conteúdos que lhes dão consistência.

    Encontramos o educador em um dos dias típicos de calor do Rio de Janeiro. Conduzimos a conversa guiada por um roteiro bem cuidado em seu escritório repleto de livros por todos os lados, em estantes que circundavam todo o ambiente, pela mesa de trabalho e por bancos adicionais. Sentamo-nos os três e iniciamos o diálogo marcado inicialmente pela tensão, com o pequeno gravador em uma das mãos e o roteiro em outra. Na sequência do roteiro, os pontos que deveríamos perseguir na trajetória do educador. Sucupira não entendia completamente o motivo daquela visita e, aos poucos, fui percebendo as razões de sua apreensão. Expliquei que estávamos ali a propósito do Parecer 977-65 que instituiu a pós-graduação no Brasil do qual ele havia sido o relator. Atento, o educador logo percebeu que havíamos cuidado da preparação da entrevista, que tínhamos um roteiro com informações detalhadas sobre sua biografia intelectual. Foi quando sentimos que se estabelecia uma relação de confiança e respeito. Ficou claro que seu depoimento era importante, e sua expressão de aceitação nos indicava que assim havia compreendido aquela iniciativa de conversa.

    A entrevista transcorreu normalmente. Eu diria que estávamos todos apreensivos. As entrevistadoras, naturalmente, inseguras de seus desempenhos diante de tamanha erudição, de verdadeiro repositório de memória e de argumentos logicamente estruturados. Mas, o entrevistado não estava menos sensibilizado. Tratava-se de um retorno a vivências antigas e, em alguns momentos, podíamos acompanhar em sua expressão relances de emoção seguidos de firmeza no relato que nos fazia. Ao final do primeiro encontro, havíamos percorrido sua biografia de professor e conselheiro. Eu sabia que um segundo contato teria valor inestimável para compor um quadro mais compreensivo de suas ideias e, basicamente, de suas filiações intelectuais. O professor Sucupira concordou em nos receber outra vez. Um mês ia se completar do primeiro encontro quando realizamos a segunda entrevista. Dessa vez, não trataria mais de sua biografia propriamente, mas o indagaria sobre pontos para os quais me preparara ao longo do trabalho que vinha fazendo.

    O encontro acabou sendo uma oportunidade para repassarmos episódios e situações que têm destaque na história da educação. Inevitável voltar a Anísio Teixeira (1900/1971) e recuperar a inspiração filosófica que o distinguia de Sucupira e que balizava sua intervenção no campo da educação no Brasil. Outro ponto dizia respeito à atuação ininterrupta de Sucupira no Conselho Federal de Educação ao longo do regime militar, o que o deixara como personagem público em posição de bastante reserva. Mas o educador não se intimidava com o segundo ponto, e se mostrou estimulado para conversar sobre o primeiro.

    De onde vem, com quem dialogou, e como trabalhou Newton Sucupira pela educação brasileira? Quais são os pareceres que o mantêm indissociavelmente ligado à estruturação do ensino superior no Brasil?

    UM PROFESSOR FILÓSOFO

    Tenho sido e continuo a ser, antes de tudo, o professor. Dezesseis anos de Conselho Federal de Educação, diretor de faculdade e pró-reitor para Assuntos Acadêmicos da Universidade Federal de Pernambuco, seis anos e meio em Brasília como diretor do ensino superior e presidente da Comissão de Assuntos Internacionais do Ministério da Educação, representante do Brasil no Conselho do Bureau Internacional de Educação da Unesco, em Genebra, primeiro e único brasileiro presidente desse mesmo Conselho, todas essas funções não me afastaram da sala de aula. A aposentadoria veio colher-me lecionando no doutorado da Faculdade de Educação, sendo seu coordenador (...) (3).

    Newton Lins Buarque Sucupira nasceu em 9 de maio de 1920, em Porto Calvo, Alagoas. Presenciou o final do declínio da economia açucareira. "As raízes rurais poucos traços deixaram no menino que se ambientou no meio urbano", disse dele o amigo Alberto Venâncio Filho (4). Sucupira, no entanto, se definia mais como pernambucano, sua terra de adoção, por ter ali se escolarizado, desde as primeiras séries, no Colégio Nóbrega dos padres jesuítas em Recife, onde, menino ainda, despertou para o gosto da erudição e o interesse pelos estudos. Filho de João Buarque Sucupira e de Fani Lins Sucupira, casou-se em 1946 com Odette Silveira Sucupira, constituindo uma família de nove filhos, seis mulheres e três homens, todos casados, dos quais tiveram netos e bisnetos. Católico praticante, Sucupira modelou a educação dos filhos dentro dos princípios religiosos do catolicismo. Não transigiu nessa tarefa formadora de mentalidades.

    A conclusão do ensino secundário em 1938, aos 18 anos, colocou-o diante do inevitável aos que conviviam em ambiente favorecido: escolher entre os três cursos disponíveis à então credenciada formação universitária – direito, medicina e engenharia. Naquela época, ainda não chegara ao Nordeste a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Optou pelo direito. Matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife, "o escoadouro natural de quem se interessasse pelos estudos especulativos", completa Alberto Venâncio Filho (5).

    Foi na Faculdade de Direito que se viu envolvido pelos problemas filosóficos, e esta vocação o afastou da prática forense, mantendo-se fiel aos estudos teóricos. Ao terminar o curso de direito em 1942, matriculou-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manuel da Nóbrega, portanto, dos jesuítas (hoje Universidade Católica de Pernambuco). No período de 1948 a 1964 exerceu a função de professor de filosofia da Faculdade de Filosofia em Recife, e em 1961 foi ungido no cargo de professor catedrático de história e filosofia da educação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

    O ensino de história e filosofia da educação no curso de pedagogia da Faculdade de Filosofia da UFPE selou seu compromisso definitivo com a educação. Sucupira vai, portanto, perfilando sua trajetória de educador, beneficiária dos estudos teóricos do direito, da convicção da importância da filosofia na compreensão das questões fundamentais do direito e da centralidade da educação no desdobramento para a vida ordinária das grandes questões postas pela filosofia. A educação seria, assim, o porto seguro no qual poderia reunir todas as vocações e veredas pelas quais se viu envolvido, sendo a história de sua vida pessoal e profissional uma confirmação dessa aposta mais geral. O mapa do direito tem sua fundamentação no campo da filosofia e sua aplicação na área da educação.

    Mas um encontro na década de 1950 impactaria sua vida profissional:

    Em 1955, conheci pessoalmente Anísio Teixeira ao debater sua conferência, "Ciência e humanismo", pronunciada na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada naquele ano em Recife. Desse debate, resultou constante e proveitoso diálogo com o mestre Anísio, apesar de estarmos em posições filosóficas distantes, ele discípulo fiel, mas independente de Dewey. "Diálogo que me abriu novas perspectivas sobre educação, principalmente, educação brasileira". (6)

    De fato, abria-se ao professor Sucupira uma nova perspectiva de vivência pessoal e atuação profissional. Em 1959, Anísio Teixeira dirigia a Capes e havia conseguido do governo norte-americano oito bolsas de estudos para que pessoas da área de educação fizessem observações sobre o ensino secundário daquele país. Entre os escolhidos estavam Alberto Venâncio, e também, Newton Sucupira, Valnir Chagas, Airton Gonçalves da Silva, Raimundo José da Mata, Grimaldi Ribeiro de Paiva, Ovídio de Andrade Júnior e Eduardo de Carvalho. Em uma direção mais especializada, encontramos nos textos de Anísio Teixeira e Newton Sucupira indicações reveladoras do quanto incorporaram em suas propostas e avaliações o que aprenderam da história da educação norte-americana. A convergência de opiniões positivas sobre o desenvolvimento da educação naquele país facilitou, sem dúvida, o diálogo entre os dois filósofos da educação brasileira, a despeito das diferenças entre as matrizes filosóficas que os orientavam na prática intelectual.

    Convertidos a credos muito distintos, os dois educadores mantiveram, ao longo de suas trajetórias profissionais e intelectuais, respeito intelectual e fervor dialógico a comprovar que a divergência cultivada no mundo das ideias nem sempre separa a convivência entre os homens. Ao contrário, suas distintas filiações filosóficas provocaram, em cada um deles, uma admiração recíproca, comprovada pelas iniciativas de cada um em expor respeitosamente as convicções ao outro. Alimentaram-se das diferenças e expuseram-se ao julgamento público, nem sempre favorável a um ou a outro. A intelectualidade "de esquerda" foi, muitas vezes, implacável com ambos. Até muito recentemente, até meados da década de 1980, Anísio foi pejorativamente classificado como "liberal", quando não, "de orientação pequeno-burguesa" por sua confessada e consciente adesão ao modelo norte-americano de democratização da educação. Como sabemos, a bandeira educativa norte-americana se pautou na extensão do direito da educação à maioria da população, no programa da escola única, na política de um ensino obrigatório, laico e público distribuído às comunidades da América. Anísio Teixeira foi absolvido, mais recentemente, no embalo da valorização, pelos próprios movimentos intelectuais de esquerda, da dimensão civil dos direitos humanos, da recuperação das minorias como atores políticos legítimos e das organizações da sociedade civil – nem sempre vinculadas aos partidos – como foros legítimos de expressão da vontade coletiva. O tributo à experiência norte-americana teve, ao menos, que ser considerado nesse novo arranjo de reflexão sobre a política. E a conjuntura desfavorável que se interpôs à reflexão mais crítica com a queda do Muro de Berlim e a derrocada do Leste Europeu facilitaram sobremaneira a inclusão de argumentos favoráveis aos ideais de Anísio Teixeira para a educação brasileira.

    Além dessa indicação para a visita especializada à América do Norte, Anísio Teixeira seria responsável também pela indicação de Sucupira para compor o Conselho Federal de Educação, instalado pelo Decreto nº 51 404 de 5 de fevereiro de 1962. Sucupira estava entre os conceituados intelectuais que compuseram o conselho onde permaneceu até 1978. Data desse período a discussão e a deliberação de duas regulamentações que redefiniriam o campo da educação superior no Brasil: o Parecer 977/65, que prescreveu as linhas de orientação para a montagem da pós-graduação e o relatório do grupo de trabalho criado pelo Decreto 62937/68 para estudo da reforma universitária, que deu origem à Lei nº 5.540/68. Dois decretos-lei antecederam o relatório do grupo de trabalho para a reforma de 1968: os de número 53, de 18 de novembro de 1966, e o de número 252, de 28 de fevereiro de 1967. Em ambos teremos que computar a participação ativa do professor Sucupira.

    A atuação no Conselho Federal de Educação não impediu que Sucupira assumisse outras responsabilidades no ensino superior. No período de 1968 a 1978, desempenhou a função de presidente da Câmara de Ensino Superior do Conselho Federal de Educação, e no período de 1970 a 1972 foi diretor da Divisão de Assuntos Universitários (DAU) – do Ministério da Educação, de onde se empenha na direção do órgão máximo executivo da educação superior, em promover e patrocinar condições à consolidação do ensino superior, particularmente, da pós-graduação. Sucupira passou à história da educação brasileira como mentor intelectual da regulamentação da pós-graduação e, também, autor do texto que deu base à Lei da Reforma Universitária de 1968. Sua função de direção na Divisão de Assuntos Universitários permitiu-lhe concretizar seus ideais de pós-graduação e de ensino superior. No período em que foi membro do CFE (1962-1978) assinou aproximadamente 400 pareceres, sendo os mais notórios o Parecer nº76/62, que trata da autonomia universitária; o Parecer nº 277/62, que estabelece o currículo mínimo do curso de filosofia e o Parecer nº 977/65 que traça as linhas de implantação da pós-graduação, além, obviamente, do relatório do grupo de trabalho que definiu os termos da reforma de 1968.

    Em 1972, Sucupira faz uma viagem de estudos à Inglaterra. Dessa viagem ele trouxe como novidade o projeto da universidade aberta, minuciosamente relatado por ele em artigo que ficou conhecido como "Relatório Sucupira". Nesse momento, Sucupira continuou exercendo intensamente suas atividades no Conselho Federal de Educação. Já havia passado o momento das maiores discussões sobre as diversas reformas que estavam em curso nos três graus de ensino. As faculdades de educação já estavam em andamento em diversas universidades. O Relatório Sucupira trata de um tema à época bastante polêmico. O entusiasmo e o desconhecimento a respeito dos métodos de ensino não convencionais se generalizavam e Sucupira dava as indicações precisas no relatório a respeito dos ganhos e dos cuidados necessários ao bom desempenho dessa nova maneira de ampliar o acesso ao ensino superior no Brasil, considerando os cursos abertos. O fato de ter trazido uma avaliação positiva da experiência inglesa e de ter sugerido a possibilidade de uma adaptação ao contexto brasileiro rendeu-lhe muitas críticas. O interesse que aquela experiência despertou no educador consistia na possibilidade de democratizar o ensino superior sem aviltamento da formação universitária. O relatório é minucioso na descrição do alto investimento em pessoal qualificado, trabalhando em tempo integral, e, especialmente, do empenho da universidade inglesa em garantir qualidade e excelência com esse novo formato de disseminação do ensino superior. O grande objetivo daquele empreendimento parecia responder à urgência que se fazia necessária na extensão da formação superior a uma camada mais ampla da população adulta: dar aos que trabalham a possibilidade de obter uma formação universitária. Professores de alta qualificação, recrutados na forma usual em que as universidades inglesas selecionam seus professores, distribuídos nos diferentes níveis da hierarquia acadêmica, tudo isso afastava a ideia de ser o programa da universidade aberta uma experiência pouco recomendável. Ao contrário, o que o relatório sugere é uma estreita relação entre alto padrão de formação superior, ou seja, uma estrutura desenvolvida de ensino superior e a implantação de uma estrutura baseada em novos instrumentos de transmissão e avaliação de conhecimentos.

    Em 1973, Sucupira é eleito presidente do Conselho do Bureau Internacional de Educação, órgão da Unesco, para o biênio 1973-1974. A nomeação para o Bureau Internacional resultou de uma indicação do governo brasileiro, mas a eleição ao cargo de presidente é uma delegação do grupo na Unesco. Sucupira recebeu a indicação de um dos membros do grupo, e assumiu a função em 1973. Em 1978, deixou o Conselho Federal de Educação para se dedicar à vida acadêmica, embora dela nunca tivesse se afastado, mesmo quando atuou no conselho, na Divisão de Assuntos Universitários ou mesmo no conselho da Unesco.

    DOIS EDUCADORES: DUAS RECEPÇÕES Newton Sucupira não se beneficiou da absolvição que foi dirigida ao educador Anísio Teixeira. Uma rápida menção a episódios das trajetórias pessoais dos dois educadores ajuda a entender as razões de tal assimetria. Anísio teve sua vida pública ferida pelos dois momentos de autoritarismo nos quais se insurgia como intelectual de ação. O período do Estado Novo (1937-1945) testemunhou sua inteira disposição e energia na montagem da Universidade do Distrito Federal (UDF), no governo Pedro Ernesto da cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. A experiência da UDF faz parte da memória de construção da universidade brasileira e até hoje é lembrada pela ousadia, descentralização, vigor intelectual e liberdade de pensamento que Anísio Teixeira pretendia imprimir ao ensino superior brasileiro. As forças da ditadura foram inexoráveis, e encontraram respaldo nos setores mais conservadores da Igreja Católica na perseguição que se impôs ao educador e na decisão que se seguiu de fechar a Universidade do Distrito Federal. Alceu Amoroso Lima, como a história e ele próprio registraram, personificou a reação de interdição ao projeto de Anísio Teixeira. O educador baiano se recolheu a seu estado natal e à sua vida privada até o final da ditadura de Vargas.

    O segundo momento de regime militar, o pós-1964, fez com que Anísio Teixeira fosse, uma vez mais, convocado pelas urgências de reforma educacional. O envolvimento se deu não só com a iniciativa governamental de aprimoramento de pessoal de nível superior, a Capes, mas também com o Inep – instituto criado para fomentar as pesquisas que deveriam orientar a implementação de políticas de educação no país. Mobilizou-se pelas discussões acaloradas do final da década de 1950 que deram vida aos debates em torno da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, finalmente aprovada em 1961. E, uma vez mais, na capital da República brasileira, dessa feita em Brasília, veria o projeto de criação da Universidade de Brasília (UnB) ser alvo da ira de ditadores. Anísio Teixeira, ao lado de Darcy Ribeiro, foi um dos protagonistas do projeto universitário inovador que ali se implantava. Em 30 de agosto de 1968 a universidade teve seu campus invadido pela Polícia Militar, mesmo dia, aliás, em que sofreria igual ação repressiva a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

    A trajetória de Newton Sucupira revela uma atuação incessante pela reestruturação e regulamentação do ensino superior no Brasil, de 1962 a 1978, sem solução de continuidade durante o regime militar. O Parecer 977/65 já é redigido sob o regime militar, mas foram os decretos 53/66, 252/67 e o Relatório do Grupo de Trabalho sobre a Reforma Universitária de 1968 que justificaram a associação comprometedora entre sua formulação e a vigência do período de maior recrudescimento do autoritarismo imposto ao Brasil entre 1964 a 1985. Diante de tal gravidade, não havia como considerar os argumentos, ponderações para maiores esclarecimentos, e sequer se arriscaria a matizar acusações sem que outras mais graves se impusessem ao interlocutor. Por isso, pensar em conjunto Anísio Teixeira e Newton Sucupira como personagens promotores de reformas e regulamentações para a área da educação no Brasil pareceu sempre mais do que impropério, heresia. Mas, a despeito das diferenças foram dois educadores que tiveram na filosofia a âncora de inspiração e de orientação permanentes. E, não menos importante, o empenho ininterrupto pela reflexão no campo educacional e pela atuação constante nos processos de regulação e institucionalização do sistema educacional brasileiro.

     

     

    A distinção talvez possa ser anotada em outros dois pontos: embora Anísio tenha se manifestado, inúmeras vezes, a respeito das faculdades de educação e do ensino superior, e embora tenha seu nome definitivamente associado à Capes, seu programa de reforma priorizou sempre a educação básica – a extensão do direito à educação ao conjunto dos cidadãos brasileiros. A escola pública foi sempre sua bandeira desde a década de 1920. Newton Sucupira está mais próximo de Fernando de Azevedo, em sua determinação de fortalecer o ensino superior como canal necessário e estratégico de garantir o desenvolvimento da cultura nacional. Certamente estará de acordo com a frase de Francisco Venâncio Filho de que "ou aperfeiçoamos as elites para melhorar o povo ou aperfeiçoamos o povo para melhorar as elites" (7). Anísio Teixeira apostaria na segunda opção, e Fernando de Azevedo consolida a trilha na qual percorreram Francisco Venâncio, Newton Sucupira e muitos mais. O catolicismo, abraçado pelos intelectuais que deram consistência ao modelo ancorado na formação da elite que educará o povo, é uma pista fecunda ao entendimento dessa opção.

    O segundo ponto da distinção entre Anísio e Sucupira nos é sugerido pelo depoimento de Sucupira. Diz respeito à inflexível convicção de Anísio Teixeira de que o Estado não deve e não pode despender recursos na manutenção da rede privada de ensino. Anísio não discutia a importância, a necessidade ou a oportunidade do florescimento e ampliação da rede privada de ensino no Brasil. O que não admitia era a decisão de investimento do Estado em iniciativas privadas no campo da educação. Que se mantivesse privada a iniciativa privada. Ao Estado deveria ser cobrada a oferta pública de um direito democrático ao conjunto da população, particularmente da população carente, que jamais teria como se beneficiar de uma educação de elite. Os Estados Unidos, uma vez mais, foram uma fonte indiscutível de reforço a tal convicção. Até hoje, os estudos que tratam do investimento em educação básica fazem menção aos Estados Unidos como o país onde, historicamente, o Estado não compareceu investindo nas iniciativas privadas em educação básica (8). Esta discussão no Brasil, como já sabemos através de muitos estudos, teve que passar pelo crivo da Igreja Católica, esta sim, historicamente interessada, não só na definição dos rumos da educação como norteadora de condutas, mas, igualmente, na proteção à rede privada de ensino, que incorporava as escolas confessionais, sendo a própria Igreja forte concorrente na distribuição das escolas no país. O fervor religioso de Sucupira e seu compromisso com a Igreja Católica, e a indeclinável defesa da educação laica de Anísio, o que atraiu para ele a ira da própria Igreja Católica em momentos cruciais da montagem do sistema educacional na década de 1930, ajudam a compor o quadro de distinção entre ambos. O olhar de Sucupira a processos de hierarquização de valores e competências, em grande medida, pode ser explicado por sua adesão incondicional ao desempenho da Igreja Católica na formação das almas, sendo a educação um dos pilares básicos nessa função evangelizadora. Anísio não compartilhava tal concepção. Desconfiou dos benefícios que a interferência da Igreja pudesse produzir nos processos de democratização e extensão da educação à massa. A educação básica foi sempre o centro a partir do qual Anísio construiu seu modelo de intervenção em políticas educativas; a educação superior seria tomada nessa perspectiva como a condição de aprimoramento necessário à construção sólida, não só da cultura e do desenvolvimento nacionais, mas, em igual medida, do aprimoramento da educação fundamental.

    Os dez anos de atuação de Sucupira no Conselho Federal de Educação, de um total de 16, foram dedicados a assuntos relacionados com a universidade, presidindo a Câmara Especial do Ensino Superior. Sua atuação na Divisão de Assuntos Universitários no MEC no período de 1970/1972 confirma essa especialização. Sucupira torna-se assim, um estudioso do que é a universidade brasileira, de suas normas, princípios, carências, progressos etc. Acabou sendo conhecido como um especialista da história da educação superior no Brasil. O interesse pela universidade o fez caminhar na direção de estudos comparados no tempo, como se pode acompanhar pelas claras referências à universidade medieval, renascentista e do século XIX, e também no espaço, como é o caso das análises comparativas das experiências de diversos países. De que maneira cada cultura construiu seu projeto de ensino superior e de que forma o Brasil, sem uma tradição forte e positiva, poderia construí-lo foram inquietações que perseguiu no percurso de sua vida acadêmica. Acompanhou, com entusiasmo e aposta positiva, a criação da Universidade de Brasília. Parecia-lhe um contraponto à organização de nossas universidades tradicionais. Contrastava também com qualquer outro modelo de universidade existente. Afinal, como claramente defendeu Darcy Ribeiro, a UnB deveria oferecer "a todos os estudantes, durante os seus dois primeiros anos de curso, tanto programas científicos, como humanísticos a fim de proporcionar ao futuro cientista ou profissional oportunidade de fazer-se também herdeiro do patrimônio cultural e artístico da humanidade e, ao futuro graduado de carreiras humanísticas, uma informação científica básica". Este era um aspecto entre os muitos mais que Darcy Ribeiro elegeu como exemplo do que era a "inovação" da UnB (9).

    Já estavam ali previstas as atividades de extensão, a interação entre ensino e pesquisa e a dinâmica da relação universidade/poderes públicos, quando se previa como propósito da universidade "proporcionar aos poderes públicos o assessoramento livre e competente de que careceriam em todos os ramos do saber e que, numa cidade nova e artificial, somente uma universidade madura e autônoma poderia proporcionar (...)" (9).

     

     

    Portanto, quando Sucupira atribuiu ao projeto da Universidade de Brasília a inspiração mais fecunda do projeto da reforma de 1968, e quando mencionou Darcy Ribeiro como autor daquele projeto estava ao menos sintonizado com a descrição do próprio Darcy. Sucupira é empossado no Conselho Federal de Educação no ano seguinte à inauguração da Universidade de Brasília (1961). Sucupira defendeu-a como o modelo de universidade mais contextualizado e eficiente daquele momento. Entendeu que a Universidade de Brasília era capaz de exercer eficientemente sua missão de ensinar, pesquisar, atender e retornar os conhecimentos para a sociedade. Estava preparada para exercer plenamente as funções que se espera de uma universidade. Certamente, Sucupira subscreveria a afirmação de que, não fosse pela UnB, nem o Decreto 977-65 nem a reforma de 1968 seriam desenhados como foram. Essa avaliação atravessou as décadas seguintes, como confirma em seu depoimento:

    (...) eu fiz questão de dizer no Conselho que eu seguia a orientação do projeto da UnB. Agora, ela entrou em execução justamente no momento mais tumultuado ou dos mais tumultuados que foi a criação do governo militar. Aí, se deu o choque, e então, a universidade foi muito atingida (...) se você vai fazer análise agora, você vê que foi uma experiência que deu certo. O projeto deu certo. E eu, no que diz respeito à estrutura da universidade, nós nos inspiramos exatamente no que foi a Universidade de Brasília (1).

    O fato de ter condicionado a autonomia à responsabilidade social da universidade rendeu a Newton Sucupira muitas críticas. As críticas não o demoveram de suas convicções. Sucupira não perdeu de vista em qualquer de seus escritos, a relação necessária que se deve estabelecer entre a universidade e seu entorno:

    A universidade deve ser livre para que possa realizar seus papéis e missões e, ao mesmo tempo, deve satisfações à sociedade que a mantém, que lhe propicia o desenvolvimento, devendo fornecer respostas necessárias aos problemas e/ou soluções relativos ao bem-estar coletivo. Essa ambiguidade induz, ontologicamente, a se perceber que a universidade deve ser livre do mesmo modo que é dependente, autônoma para pensar e fazer, pensando e fazendo sob a permanente vigilância das satisfações que deve a sociedade que a mantém" (10).

    Advogou em favor da interação que é preciso ser mantida entre a universidade e a sociedade que a sustenta.

    "(...) não existe universidade que não atenda aos interesses profissionais. Porque ela é uma instituição da sociedade.(...) a universidade alemã de Humboldt foi criada com as costas voltadas para a sociedade. Quer dizer, liberdade e solidão. (...)Você não pode agora querer fazer de uma universidade uma espécie de templo do saber puro (...)" (1).

    Os depoimentos de Sucupira, de Darcy Ribeiro e de Anísio Teixeira – a despeito dos temperamentos e das distintas filiações políticas e ideológicas – reforçam o consenso forjado nos anos 1950 e 1960 sobre a inexistência de uma universidade no Brasil que atendesse a esse quesito fundamental, em uma época em que, vigorava em todos os quadrantes ideológicos a expressão educação para o desenvolvimento. É nesse sentido que se pode afirmar que havia um reclamo mais geral por uma reforma universitária. Os exemplos de outros países fortaleciam a tese de Sucupira a respeito da adequação, do compromisso da universidade com seu entorno.

    LEI 5540/68 : A REFORMA QUE O CONDENOU

    A reforma de 1968 tem tido mais detratores do que propriamente críticos (...)

    Newton Sucupira (1)

    Apesar de ter sido resultado do trabalho de um grupo de especialistas e pessoas envolvidas com o ensino superior, a reforma universitária ficou definitivamente associada a Newton Sucupira, e não sem qualquer fundamento. O prazo curto que o grupo teve para redigir o anteprojeto, depois da solicitação feita ao conselheiro pelo presidente da República, Costa e Silva, só pôde ser vencido com êxito pelas incursões anteriores (Parecer 53/66 e Decreto 252/67) que contaram com o protagonismo de Newton Sucupira. Não foi gratuita, assim, a eleição de Sucupira como interlocutor da presidência nessa matéria. "Eu estava no conselho quando o presidente Costa e Silva telefonou e pediu para falar comigo. Perguntou se eu estava disposto a fazer essa coisa toda. Respondi que sim. Mas aí, ele me deu o prazo de 30 dias (...)" (1).

    Os efeitos provocados e os desvios sofridos na implantação do projeto original não escaparam à avaliação crítica de seu engenheiro. O governo não cumprira sua parte, concluía Sucupira, sem, e talvez não por inocência, tocar no autoritarismo vigente como inimigo bastante eficaz para inibir qualquer iniciativa mais flexível e criativa.

    Faltou, entre outras coisas, uma política universitária que correspondesse aos princípios inovadores da reforma. E o governo, que nos solicitou a reforma, logo após desinteressou-se pelo cumprimento de suas propostas, negando-lhe os recursos que tornariam possível a renovação das universidades, principalmente no que diz respeito às universidades federais. Essa frustração experimentei ao vivo quando ocupei a direção do Ensino Superior de junho de 1970 ao início de 1972, e dispunha de orçamento que apenas permitia a realização do funcionamento rotineiro do sistema universitário (1).

    Os intelectuais se mobilizaram pela formulação de políticas públicas em situações muitas vezes semelhantes, mas com posições distintas. Há os que resistem à crítica democrática, como foi o caso de Anísio Teixeira. Há os que são alvo de reserva e de resistência para serem incluídos na memória reconstruída dos processos nos quais se integraram. Newton Sucupira está mais associado ao segundo caso. Uma coisa é certa, porém. Uma recuperação distanciada da política educacional para o ensino superior no Brasil dificilmente seria possível sem se considerar o protagonismo de Sucupira. Esta menção por si só justifica plenamente a disposição desta revista em inserir sua trajetória em um dossiê dedicado ao impacto da ditadura sobre o sistema universitário.

     

    Helena Bomeny é professora titular de sociologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Newton Sucupira, depoimento concedido a Helena Bomeny, em 16 de fevereiro de 2001.

    2. Cf. Helena Bomeny. Newton Sucupira e os rumos da educação superior. Brasília, Paralelo 15, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), 2001, 128 p.

    3. Newton Sucupira, "Faculdade de Educação: origem e missão". Revista Perspectiva Filosófica. pp.181-197

    4. Alberto Venâncio Filho, "Prefácio para o livro do professor Newton Sucupira", escrito a propósito da edição de um livro sobre o educador organizado e editado pelo CESGRNRIO. O livro ainda não foi publicado até esta data.

    5. Alberto Venâncio Filho, Op.cit. A citação é do texto mimeografado, p.3.

    6. Newton Sucupira, "Discurso de professor emérito da UFRJ", Op. cit., p.48.

    7. Alberto Venâncio Filho, Op.cit., p.6.

    8. Ver a propósito o texto de Stephen Barro, "Como os países financiam suas escolas?" In: Financiamento da educação na América Latina/Preal; tradução de Paulo Martins Garchet. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getulio Vargas, 1999, 264 p., p. 19-92.

    9. Cf. Darcy Ribeiro. Confissões. São Paulo, Companhia das Letras, Ilustração de Oscar Niemeyer, 1997, 1ª impressão, 585 p., p.252-253.

    10. Apud. Fatima B. de Oliveria et al., "Concepção, amplitude e limites da autonomia universitária", p. 43-44. In: Oliveira, Fátima B. de. Ética e educação: o pensamento de Newton Sucupira. Rio de Janeiro: CESGRANRIO/FGV, 1996, pp. 41-49.