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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.66 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2014
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000400019
LITERATURA
CIENTIFICISMO NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
A obsessão pela ciência permeia várias personagens da obra machadiana, segundo constatou Mariella Augusta, doutora em literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora dos contos de Machado de Assis (1839-1908) em seu mestrado. "Há muitos trechos nos quais Machado faz uma sátira do positivismo. Muitas personagens são obcecadas pela ciência e elas são doentes", explica.
Essa característica, encontrada no conto-novela O alienista, permeia também seus romances e contos menos conhecidos, a exemplo do Ideias do canário, no qual o escritor põe em cheque a "verdade", no sentido filosófico, difundida pela ciência: "o protagonista [um ornitologista], ao encontrar um canário que fala, começa a estudar todos os pássaros. Ele quer do canário uma resposta sobre o que é a vida e o canário debocha do estudioso. Machado de Assis é cético no sentido de não admitir uma única verdade, como quer a ciência positivista", compara.
Em 2010, dois anos após o centenário da morte do escritor, a historiadora Daniela Magalhães da Silveira publicou sua tese de doutorado "Fábrica de contos: ciência e literatura" em Machado de Assis, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde investigou o processo de escrita de seus contos e como eles dialogavam com os principais debates científicos e filosóficos da segunda metade do século XIX.
Ao analisar duas coletâneas de contos, publicados originalmente na imprensa entre 1875 e 1884, a autora observa que, por meio de sua narrativa, o escritor criticava as "verdades" científicas da época: "Machado explorou o arcabouço que estruturava a fala dos principais homens envolvidos em pensar o futuro do país naquele momento. A linguagem científica servia para justificar medidas políticas e invalidar qualquer outra opinião que não coubesse naquele padrão de pensamento", defende Daniela em sua tese.
Foi no Iluminismo (século XVIII) que pensadores europeus passaram a utilizar o modelo de estudar as ciências naturais e suas leis para analisar a sociedade, com o intuito, num primeiro momento, de enterrar o obscurantismo da igreja. Mas foi apenas no século seguinte que o positivismo fincou suas raízes na forma de ver e compreender a realidade por meio de pensadores como o francês Auguste Comte (1798-1857) e o inglês Herbert Spencer (1820-1903), para quem a ciência seria a responsável pelo progresso que, com o advento do capitalismo e da incipiente tecnologia, aflorava para a humanidade.
Essas novas ideias desembarcaram no Brasil por volta de 1870 e, de acordo com Daniela, ganharam espaço em periódicos da época. Na Revista Brasileira, por exemplo publicação carioca onde foi publicado, em folhetim, o romance machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1880 , além de artigos sobre literatura, outra temática comum dizia respeito a questões relacionadas ao conhecimento científico e a autores como Spencer, Comte e Darwin.
O alienista foi publicado no jornal carioca A Estação em 1881 e, no ano seguinte, foi inserido por Machado de Assis na coletânea de contos Papéis avulsos, junto com mais 11 contos e todos eles faziam crítica ao cientificismo da época. Para Mariella Augusta, Machado de Assis tinha uma visão trágica do mundo, o que inclui a ciência. "Em O alienista, todo o conto é escrito em função da relação de um homem com a ciência e da relação da ciência com ela mesma. Achar que a ciência responde a todas as perguntas, ou que ela é a grande demolidora dos valores não científicos, é mentira para Machado e é isso que ele satiriza", analisa.
Além da crítica ao cientificismo feita por meio de ironia e da caracterização de personagens, a historiadora Daniela Silveira ressalta que o escritor explorava a própria forma narrativa para mostrar personagens que detinham conhecimento em contraposição a interlocutores cuja função era ouvir calados. "Em O espelho [conto publicado na mesma coletânea na qual entrou O alienista], Jacobina chegou a afirmar sua aversão por discussões. Para contar seu 'caso', exigia silêncio da parte de seus companheiros. [...] Com a anulação do outro, tais diálogos se aproximavam em grande medida de outra fórmula narrativa explorada por Machado de Assis, em Papéis avulsos, e cara aos doutos da ciência: a conferência".
Janaína Quitério