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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.4 São Paulo oct./dic. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000400021 

     

    URARIANO MOTA

     

    MAIS QUE IRMÃOS*

    Os seus olhos de sede bebem aquela cozinhazinha, da casinha, da salinha, do casalzinho onde está a mesinha para dois baixinhos gêmeos. Os dois reflexos na sua determinação. Ele soube depois, Maciel tão macho para Maria, tão pouco macho para outros homens, para o trabalho, para a vida. Sempre a olhar para baixo, para o chão, nas horas de enfrentamento. E com isso construindo uma sobrevivência custosa e repleta de humilhação, mas sobrevivência, porque de algum modo as pessoas têm que sobreviver, "não é? não é?" Maciel sempre falará na velhice, a pular os momentos dramáticos de vexame e submissão. Maria, no entanto, o seu outro lado no espelho, na medida do possível fala por ele. Isso quer dizer, Maria fala no limite da sua condição aprisionada de mulher, condição a que se somam outras, tidas como insultos: pobre e gorda, de coração valente.

    Na do seu destino naquelas horas, Maria fala como Maciel deve agir. Isso não é imagem ou frase corrida. O menino ouviu, muitas vezes, que depois de escutar e escutar as queixas de Maciel, sua mãe assim começava, como resposta:

    — Eu, se fosse você, agia assim.

    E delineava, na medida do seu entendimento, um programa de ação, como gostaria de dizer o Jimeralto maduro, nos encontros clandestinos de militância. "Eu, se fosse você, agia assim". Parecia então lhe dizer Maria, e Jimeralto compreendeu passados muitos e muitos dias no outro século, que o programa de Maria se filtrava em uma única frase: "Maciel, seja homem". E nisso a irmã gêmea, espelho, não fazia a Maciel qualquer recriminação ao lado fêmea dele, seu reflexo. Ela queria apenas dizer, "Maciel, não se deixe humilhar, Maciel, reaja, Maciel, mate, mate se não puder agir de outra maneira. Se for preciso, mate para ser um homem, Maciel. Mate como o nosso outro irmão. Mate para não se matar". E tio Maciel, o espelho, baixava os olhos enquanto Maria falava. Jimeralto não sabia, demorou muito a saber, demorou muito até o dia da meditação sobre uma verdade que sua mãe já lhe ensinara, mas o partido nunca aceitou, vale dizer, o sentido magnífico do que ele descobriu ao refletir sobre Maria: falar é um modo de agir. Falar é um programa de ação. Em vez do fala, fala, falador, fala falácia palavras não mais que palavras, Maria lhe mostrou que falar era um plano de futuro. Porque nela, pessoa nada ilustrada, assim como em todas as pessoas de escassa ou nenhuma leitura, os verbos no futuro tinham, têm o dom da profecia. Eram, são o momento anterior de uma transformação em atos. Assim como Deus manifestou "faça-se a luz", e a luz se fez, quando ela dizia, para as tarefas da vida, "vou fazer", ela de fato anunciava a vinda da luz, não tão imediata quanto para Deus, mas mediata, pois a luz chegava dias, meses ou anos depois. "Mate para não se matar", ela jamais disse. Mas havia um ambiente, um cenário a envolver Maciel, que assim o exigia, enquanto ele diante disso respondia com um encolhimento.

    Ao refletir sobre esse encolhimento do tio, Jimeralto passou a ter um entendimento mais largo, que se dirigia para a generosidade, e de tal modo que pulava a repulsa àquele olhar de malicioso convite que a tudo e a todos abarcava. Ele via como se fosse hoje, agora, a reação de Maciel frente aos berros, descomposturas do pai, marido de Maria. Tão pequeno ele era, Jimeralto, tão pequeno ele era, Maciel, ante a voz trovejante de Filadelfo, o negro que odiava homossexuais. Maciel se urinava de pavor diante do poderoso. Que dor no coração lhe dava essa lembrança, ao reeceber a consciência de que Maciel, homem feito, se urinara diante do pai, um negro macho repleto de ressentimento. Então Maciel baixou os olhos, desceu os longos cílios para a terra, para o chão, e se molhou nas calças, as calças que, segundo Filadelfo, para Maciel eram inúteis. Essas coisas Jimeralto recordava como uma passagem para a cruz, quando não a própria cruz, porque não podia ser feliz com essa carga, com a qual teria que atravessar o Gólgota. E Filadelfo gritara:

    — Maria, esse teu irmão baba na cama!

    E a cama era um leito de lona, sobre paus cruzados em X. Maciel não tinha onde dormir, não tinha mulher, casa ou casamento, ali estava na qualidade precária de irmão de Maria. Dormindo de esmola, vale dizer. E Maria respondera:

    — Que é que tem? Quem limpa sou eu.

    Para quê Maria respondeu dessa maneira? Filadelfo entrou num processo irreversível de raiva, que foi crescendo:

    — Não é sua obrigação limpar sujeira de irmão. A sua obrigação é com quem lhe dá de comer. A sua obrigação é pra quem você pariu.

    Essas coisas se passavam diante de Maciel, que apenas olhava. Pálido, ele estremecia no piso de cimento puro da sala, enquanto se mijava pela fúria que tomava conta de Filadelfo. E Filadelfo percebia, não lhe passava sem atenção o terror no cunhado, e por isso mais se arrojava na altura da raiva:

    — Quem já viu homem babar feito menino? Isso é falta de chupeta. Isso é falta de chupeta mais grossa.

    A isso inflamada, vermelha, de raiva e vergonha pelo que sabia ter sido atingida uma essência do irmão, Maria lançou um copo no marido. Que se esquivou, mas viu os estilhaços de vidro contra a parede. Ao que Filadelfo mais furioso, sabedor do que mais a ferira, trovejou para Maciel:

    — Está vendo o que você fez, babão? Fora! Fora!

    E Maria, chorando, partiu para arrumar os próprios trapos, que chamava de roupas:

    — Onde não cabe meu irmão, não me cabe.

    — Está vendo, babão? Quer me tomar da sua irmã?

    Então Maciel, mijado, apenas sussurrou baixinho para Maria, num fio de fala:

    — O enjeitado sou eu, Maria. Não destrua o seu casamento. Vou-me embora.

     

    * Do romance O filho renegado de Deus, publicado pela Bertrand Brasil, 2013.

    Urariano Mota é escritor e jornalista nascido no Recife em 1950. Autor dos romances Os corações futuristas, pela Bagaço, Soledad no Recife, pela Boitempo, e O filho renegado de Deus, pela Bertrand Brasil.

    O jornalista e escritor José Carlos Ruy observou que em O filho renegado de Deus o romancista "não se ilude; não confunde a vida imaginada no pensamento, com o vivido. 'A vida não era conceito'; ela 'sempre pula do conceito, a vida é mais magnífica e surpreendente que o maior e melhor enquadramento dialético'. Com este material e esta certeza, produziu um romance memorável".