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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100009 

    ARTIGOS
    PSICANÁLISE E FILOSOFIA

     

    Apresentação: a presença schopenhaueriana no pensamento de Freud

     

     

    Jassanan Amoroso Dias Pastore

     

     

    A influência mútua entre filosofia e psicanálise abarca grande complexidade e um extenso campo de discussão, por se tratar de um espaço transdisciplinar e, por isso, exigir certo conhecimento das duas disciplinas envolvidas. Este Núcleo Temático pretende limitar-se a discutir a repercussão de algumas questões filosóficas sobre a elaboração de certas noções psicanalíticas e vice-versa, de maneira que algo possa ser compreendido acerca dessa relação. Não se trata de fazer uma importação ipsis literis de conceitos filosóficos para aplicá-los na proposta teórico-clínica da psicanálise.

    Oswaldo Giacóia, filósofo, empreende uma aproximação entre as obras de Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud a partir da crítica feita por ambos à concepção tradicional de Eu, consciência e subjetividade, bem como da centralidade de conceitos como impulsos e afetos, com sua ancoragem corporal. Problematiza também o pretenso dualismo de alma (psiche, consciência, mente etc) e corpo, e elucida a noção de grande razão em Nietzsche, segundo a qual a alma é um efeito de superfície, uma cadeia semiótica produzida pela racionalidade corporal. Ines Loureiro, psicanalista, se lança no desafio de repensar o estatuto da experiência a partir da dimensão do inconsciente baseando-se em Michel Foulcault, Giorgio Agamben, John Dewey, entre outros. O texto da psicanalista Marilsa Taffarel examina a releitura efetuada por Ernst Cassirer de conceitos fundamentais da metapsicologia freudiana e sua repercussão na clínica. Leopoldo Fulgencio, psicanalista, coloca em evidência a penetração do existencialismo moderno no pensamento de Donald Winnicott. O filósofo Franklin Leopoldo e Silva mostra a contribuição da psicanálise como um dos instrumentos necessários para Jean-Paul Sartre realizar o entendimento de uma questão central em sua filosofia: a relação entre subjetividade e história. O artigo de Camila Gonçalves, psicanalista e filósofa, aborda a influência de pensadores da psicanálise sobre o pensamento filosófico atual, tomando Jacques Lacan como exemplo privilegiado. O psicanalista Rafael Daud problematiza as teorias do contrato social na obra de Freud.

    No presente artigo, o estudo dos textos freudianos, a partir da perspectiva estabelecida pelos encontros e desencontros que Freud promove entre a psicanálise e a filosofia schopenhaueriana, permite investigar as possíveis aproximações e os eventuais distanciamentos entre o pensamento do filósofo Arthur Schopenhauer e de Sigmund Freud.

    Pertinente aos afastamentos é preciso demarcar que lidamos com campos e métodos distintos, o que leva a diferentes pontos de vista e a diferentes níveis de discurso, com suas destinações específicas. Schopenhauer pretende desvendar a verdade cosmológica e existencial, ao passo que Freud se preocupa, primordialmente, com a investigação da vida psíquica atrelada ao inconsciente, a partir de sua clínica orientada para o tratamento dos neuróticos. Freud não faz metafísica como Schopenhauer, mas sim metapsicologia.

    A proximidade se dá na medida em que ambos os autores se inscrevem numa linha de pensamento que leva em conta os impulsos inconscientes na gênese da ação humana, a preponderância da sexualidade na constituição da psique e a força da corporeidade na formação das representações.

    Renato Mezan considera que "esses saberes não comportam uma redução recíproca, e nada há de ameaçador quando uma dessas disciplinas se debruça sobre a outra criando um jogo de perspectivas. No mínimo, é enriquecedor" (1). Ou seja, a psicanálise e a filosofia são dois âmbitos distintos de abordagem da psique, porém, uma vez mantidas as diferenças, podemos realizar um diálogo profícuo e lançar uma luz sobre a psicanálise a partir da filosofia, ou da própria história da filosofia.

    Embora Freud tenha sido acusado por alguns filósofos, em especial por Anatol Rosenfeld, de "ter 'recalcado' edipianamente a poderosa influência do seu pai espiritual" (2) - no caso, Schopenhauer -, mostraremos que o criador da psicanálise reconhece, ao longo de sua obra, por meio de inúmeras referências ao pensamento do filósofo, que Schopenhauer antecipa muitas ideias fundamentais que serão mais tarde incorporadas pela psicanálise.

    Freud é inovador ao transportar para a psique individual e para a clínica psicanalítica, constituída como uma técnica terapêutica, muitas das questões antes levantadas não só pelos cientistas e literatos como também pelos filósofos. Freud bebe dessas fontes, ora aproximando-as, ora distanciando-as do pensamento psicanalítico.

    Em meio à transição do século XIX, marcado pelo otimismo teórico do racionalismo e do primado da consciência, para o século XX, caracterizado pela crise da razão, Freud funda a psicanálise, uma nova ciência sobre a alma humana que tem como fundamentos o inconsciente e as pulsões. De maneira semelhante, cem anos antes, na passagem do século XVIII para o XIX, o filósofo Schopenhauer já havia problematizado não só as tentativas de se interpretar metafisicamente o mundo de maneira otimista, em especial a de Leibniz, como também as concepções dos idealistas românticos alemães - particularmente a de Hegel -, que, de modo geral, ao seguirem cada um deles, a criadora de todo o mundo visível e de toda a vida, porque seria o querer viver" (4). Além disso, "a Vontade em si é absolutamente livre e se autodetermina por inteiro, não havendo lei alguma para ela" (5), ou seja, a Vontade é soberana sobre a razão. A razão, tão celebrada pelos filósofos iluministas ocupa agora um papel secundário. Em suma, a Vontade é a substância do mundo e a essência do homem; é uma força inconsciente, indeterminada e livre que comanda o mundo e habita nosso corpo e nosso pensamento.

    Desta forma, Schopenhauer se afasta de certos idealistas alemães de sua época - como Hegel, Fichte e Schelling -, que apostavam na fé inabalável da razão, pois ele defende a subordinação da razão à intuição e, sobretudo, da representação à Vontade, sendo, "antes mesmo de Nietzsche, o primeiro a denunciar a metafísica pela prioridade que ela atribui à razão", conforme declara Roberto Machado (6). Schopenhauer critica severamente todos os filósofos que cometem o "velho erro fundamental" de postular o ser verdadeiro do homem no conhecimento consciente, com "a intenção de representar o homem como o mais distante possível do animal" (7). Ao despotencializar a razão, Schopenhauer "é, portanto, totalmente a tradição, postulavam um princípio racional absoluto do mundo. Schopenhauer, no entanto, em sua obra magistral O mundo como Vontade e como representação (1818), elabora um pensamento que situa a essência do homem não na consciência e na razão, mas na Vontade, considerada por ele como um impulso cego, irracional, indomável e sem fundamento, grundlos, que move o mundo (3). A Vontade, wille, concebida como a coisa em si, é definida por Schopenhauer ora como um "ímpeto cego", blinder drang, irresistível, ora como "impulso", trieb, gratuito. A Vontade é um querer incessante porque nunca se basta, uma pulsão que impregna o interior de tudo o que é real: é o verdadeiro móbil da natureza. Assim, o fio condutor do pensamento do filósofo é o pressuposto de que a realidade possui um fundo infundado, que é essencialmente uma fúria implacável, intratável, incontrolável que se apraz em atrair a nossa própria destruição, em devorar tudo e todos sem nenhuma racionalidade. Até mesmo a beleza está assentada sobre essa estrutura feroz. Nas palavras do romancista Thomas Mann, estudioso e difusor das ideias schopenhauerianas, a vontade é "a causa primeira e irredutível do ser, sua base mais profunda, a fonte de todos os fenômenos, a potência presente e operante em coerente com sua concepção imanente do discurso filosófico", afirma Jean-Marie Schaeffer (8). Para o pensador alemão, as formas racionais da consciência não passam de aparências, e a essência de todas as coisas é alheia à razão: "A consciência é a mera superfície de nossa mente, da qual, como da terra, não conhecemos o interior, mas apenas a crosta" (9), exercendo o inconsciente um papel fundamental em sua filosofia.

    Neste momento, cabe explicitar que o sistema filosófico de Schopenhauer é uma metafísica, porém imanente ao corpo, ou seja, que não ultrapassa a experiência. E leva em conta não só a experiência exterior como também a interior, não só o mundo objetivo como também o subjetivo. Para o autor, seus princípios "não ultrapassam, todavia, o mundo dado na experiência, mas apenas esclarece o que o [mundo] é, já que o decompõe em suas partes componentes" (10). O mundo é explicado a partir dele mesmo, e qualquer afirmação está fundamentada no próprio mundo. Assim, dizemos que seu pensamento se encaixa na esfera da filosofia imanente, que é distinta da transcendente. Assim, o termo "metafísico", na filosofia schopenhaueriana, não pode ser entendido ao modo da religião cristã, como a afirmação de algo além deste mundo, e sim como algo que se dá neste mundo mesmo das coisas. Esse lugar privilegiado concedido à experiência implica que sua filosofia é erguida no solo da realidade intuitiva que lança e consolida os conceitos abstratos. Metodologicamente falando, Schopenhauer está inserido no "método analítico" (11).

    Em sua metafísica ancorada no corpo, o filósofo postula que o primeiro objeto é o nosso próprio corpo, com a particularidade de ser o único objeto imediato. O corpo humano é objeto sentido, experimentado, vivido. É a partir da minha noção de Eu que eu represento o mundo. Cada ser humano não se encontra no mundo como um sujeito sem corpo; pelo contrário, cada homem habita um corpo que, segundo o filósofo, é comandado pela vontade. Assim, o conhecimento do sujeito é intermediado pelo seu corpo, que é o ponto de partida da intuição, e se dá por meio de uma apreensão imediata. Essa operação coloca a intuição como base do seu pensamento, e diferentemente dos idealistas de sua época, a intuição para Schopenhauer não é racional, mas representativa. A intuição implica uma configuração do mundo de acordo com nossa subjetividade (12). Mais do que dedução, sua filosofia é intuição e, nesse sentido, se aparenta mais com a arte do que com a ciência.

    Aliás, para Schopenhauer, a arte, uma forma especial de conhecimento, é considerada superior à ciência. Sua concepção de arte se aproxima da noção de sublimação da pulsão, ou melhor, de processo criativo em Freud. Porém, para o filósofo, o ato criativo não é suficiente para aniquilar totalmente a Vontade, exercendo uma função terapêutica de cessar, apenas momentaneamente, o sofrimento humano. A busca da vida ascética é a única maneira de se atingir a renúncia completa da Vontade e de se livrar de seu efeito: a dor interminável. Mas, neste ponto, a psicanálise irá se distanciar radicalmente do filósofo, na medida em que Freud recusará a ascese porque ela representa a perda da força vital.

    A poesia é o gênero literário que tem primazia na filosofia de Schopenhauer: "o poeta é o espelho da humanidade, e traz à consciência dela o que ela sente e prática" (13). O poeta dá conta da essência da humanidade, representando as ações humanas, "a luta da Vontade contra si mesma, tal como ela se encarna nos conflitos humanos", diz Machado (14). A poesia trágica, nesse caso, é a que melhor enuncia essa luta sem fim e possibilita ao ser humano a contemplação direta da ideia de sofrimento, das mazelas humanas.

    A problemática central da filosofia de Schopenhauer é: "O mundo é minha representação" (15) e, sobretudo, "O mundo é minha Vontade" (16), ou melhor, o mundo é vontade. Se a vontade é a coisa em si, o indivíduo é somente fenômeno, e então a minha vontade - a vontade individual, a vontade de cada ser humano - é sempre contaminada pela vontade universal, que é permanente na diversidade dos fenômenos: "há uma unidade essencial em todos os seres" (17). Como representação, que é a aparência, o mundo é compreendido a partir do princípio da causalidade, tempo e espaço, e é sempre representação para um sujeito e submetida à vontade. A Vontade humana pode ser parcialmente conhecida, pois, ao se manifestar diretamente no corpo, ela se dá a conhecer por meio dos atos dele, que são os atos da Vontade. Notemos que Schopenhauer faz uma distinção crucial entre a Vontade e a representação: a Vontade é primordial, primária, fundamental, e a representação é secundária, subordinada, condicionada.

    Mann salienta que Schopenhauer, ao se referir ao desejo inconsciente, "fala do sofrimento do mundo em geral, fala também do teu e do meu sofrimento" (18). Sim, porque Schopenhauer, e depois Freud, já discorre sobre coisas que desejamos ou tememos e que não são, muitas vezes, conhecidas por nós: "Muitas vezes não sabemos o que desejamos ou tememos. Podemos acalentar um desejo por muitos anos sem confessá-lo para nós, sem mesmo chegar a ter dele uma clara consciência, é que sua revelação parece perigosa para nosso amor próprio, para a boa opinião que precisamos ter de nós mesmos, mas tão logo o desejo se concretize, a alegria sentida nos ensina, não sem alguma confusão, que havíamos desejado aquele acontecimento com todas as nossas forças: seria o caso, por exemplo, da morte de um parente próximo de quem somos herdeiros" (19). O filósofo continua explicitando que a maioria de nossos desejos não é satisfeita, e, quando a satisfação ocorre, cessa o prazer e surge o tédio. Schopenhauer utiliza a imagem do balanço de um pêndulo, retomada mais tarde por Marcel Proust, para ilustrar como a nossa vida oscila entre a dor da carência e o tédio, e vice-versa, que são, na realidade, seus componentes básicos. Schopenahuer ainda acrescenta que a satisfação de um desejo não é duradoura, não é uma última satisfação, e, então, cada desejo satisfeito nos empurra para um novo desejo e assim por diante, e o homem vive num processo doloroso de infinita insaciedade, de contínuas frustrações que causam sofrimento, o que torna sua vida extremamente infeliz. Mann lembra que o filósofo metaforiza que o sujeito de desejo "jaz sob a roda de Íxion, enche incansavelmente o tonel das Danaides; é Tântalo com sua sede eterna" (20). Schopenhauer ainda distingue que se a vontade encontra dificuldades para atingir seu objetivo, surge em nós o sofrimento; contudo, se ela alcança seu alvo, experimentamos a satisfação: "Nomeamos sofrimento a sua travação por um obstáculo, posto entre ela e o seu fim passageiro; ao contrário, nomeamos satisfação, bem-estar, felicidade, o alcance do fim". E, como esse processo é interminável, Schopenhauer conclui que, se "não há fim último para o esforço humano, não há nenhuma medida e fim para o sofrimento" (21). Daí decorre a máxima schopenhaueriana de que o sofrimento é o fundo da vida: "Toda vida é sofrimento" (21). As vivências de satisfação e de dor constituirão, em Freud, dois resíduos: os estados de desejo e os afetos. De certa maneira, essa concepção de vida como sofrimento será adotada por Freud, em O mal-estar da civilização (1930), ao dizer que "o desejo de que o homem 'seja feliz' não está incluído nos planos do 'Criador'". Freud prossegue e reafirma que o destino do homem está mais próximo da infelicidade que deriva de várias fontes, dentre elas a natureza insaciável das pulsões: "nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é mais fácil de ser experimentada" (22).

    Para o filósofo, embora a vontade seja una, ela apresenta uma discórdia essencial consigo mesma. Assim, nossa vida é um conflito contínuo, um combate contra a Vontade, uma guerra perpétua, já que "deve o mundo vegetal servir de alimento para o mundo animal e cada animal, por sua vez, de presa e alimento para outro - e, assim, a Vontade de vida não cessa de se devorar a si mesma" (23). O homem, por sua vez, também contribui para acirrar com a mais espantosa evidência "o horror do combate de todos contra todos, do autoestilhaçamento da vontade, segundo a máxima hobbesiana Homo homini lupus" (24), "a guerra de todos contra todos" (25). Essa ideia de Hobbes, contida em seu Leviatã (1909), é partilhada também por Freud em O mal-estar na civilização (26), ao radicalizar que o ser humano traz consigo uma potência de destruição. Com a noção de pulsão de morte, que traduzimos por destruição voltada para o próprio sujeito, e, quando exteriorizada, dirigida contra o objeto, Freud inscreve a violência como um forte elemento do aparelho psíquico. Pulsão de morte que inclui não só o retorno ao inorgânico como também o prazer pela destruição de si mesmo e do outro. Freud declara tanto a onipresença da pulsão de morte quanto sua autonomia. Trata-se de uma disposição pulsional destrutiva autônoma, originária do ser humano, de caráter silencioso, e o grande obstáculo à civilização. Paradoxalmente, o próprio homem surge como o inimigo potencial da civilização.

    Diversos comentadores admitem um elo inegável entre certas noções do pensamento de Schopenhauer e o de Freud. Entre eles, Clément Rosset, autor do prefácio da edição francesa da obra capital de Schopenhauer, Le monde comme Volonté et comme représentation, ao considerar que "a filosofia de Schopenhauer contém o germe do pensamento de Nietzsche e de Freud" (27).

    Paul-Laurent Assoun, em seu livro Freud, a filosofia e os filósofos (1976), salienta a presença constante do personagem Schopenhauer na memória de Freud: "Nesse filósofo maldito, Freud identifica secretamente o reflexo do pária excluído da comunidade científica, que era ele" (28). Para Assoun, trata-se de uma clara identificação de Freud com Schopenhauer, no que tange à solidão enfrentada por ambos diante da recusa na aceitação das ideias deles pela comunidade científica, da época específica de cada um, banhada pelo racionalismo: "Na realidade, é o 'solitário de Frankfurt' que é evocado e que, a partir de 1831, e durante uns vinte anos, conheceu uma existência e produziu uma obra quase totalmente desconhecida. O que surpreende Freud é a dissonância entre o homem e seu tempo, entre a certeza da importância da mensagem e a incompreensão do século. Ora, essa simpatia repousa num mecanismo de identificação notável entre 'o solitário de Frankfurt' e 'o solitário de Viena'" (29), conforme descreve Freud em sua Selbstdarstellung (1925) : "Por mais de dez anos, após meu afastamento de Breuer, não tive seguidores. Fiquei completamente isolado. Em Viena, fui evitado; no exterior, ninguém me deu atenção" (30). Para Assoun está em jogo um parentesco ideológico em que Schopenhauer e Freud são os sujeitos e os emissários, com mais ou menos um século de intervalo, de uma verdade fundamental que, por seu conteúdo, inflige uma ferida ao narcisismo humano, e os condena a uma espécie de maldição ideológica. A primazia da Vontade sobre a razão, no filósofo, ou da pulsão sobre a razão, em Freud, e o poder do inconsciente e da sexualidade na vida psíquica configuram a questão maldita recusada pela tradição filosófica marcada pelo racionalismo.

    Jean Hyppolite, em seu livro Ensaios de psicanálise e filosofia (1971) diz que as ideias de Freud já tinham sido pretendidas por pensadores anteriores, mas sublinha que é Freud quem clareia o caminho para que se faça notar em seus predecessores, como Schopenhauer, aquilo que o antecede. Hyppolite considera Freud não só o descobridor de uma nova terapêutica aplicada às neuroses como também um pensador raro que abre um novo caminho para interpretar a realidade humana: "Um desses homens de gênio (tão raros) que desvelam, descobrem um novo caminho. Muito antes e retrospectivamente, pode-se muito bem dizer que outros já haviam pressentido ou indicado o que foi assim descoberto, mas de qualquer maneira foi necessário este esclarecimento novo para que se notasse em seus predecessores o que Freud pela primeira vez exprimiu claramente" (31). Hyppolite concorda com Assoun que Freud teve o mérito de perseguir o desvelamento de uma verdade antes pressentida, mesmo que esse desvelamento fosse penoso e decepcionante, na medida em que desmistificava o homem.

    Jair Barboza, filósofo da atualidade, reafirma que "a psicanálise de Freud absorve por completo a teoria dos impulsos inconscientes, o papel nuclear da sexualidade na vida humana, o retorno ao inorgânico etc de O mundo como Vontade e como representação" (32). Schopenhauer é o pioneiro das chamadas filosofias do impulso, como a de Nietzsche, e é quem lança as bases sobre as quais será erguida a psicanálise: "Schopenhauer, de fato, está na base do pensamento contemporâneo. Ora, se ele abre o horizonte para as filosofias do impulso, como a de Nietzsche, e a psicanálise de Freud, então em vez de dizer que os pilares do pensamento contemporâneo são Nietzsche, Freud e Marx, como o quer Foucault, talvez mais acertado seria dizer que esses pilares são Schopenhauer e Marx. Sem o primeiro a filosofia da vontade de poder e a psicanálise seriam impensáveis" (33).

    Schopenhauer no texto freudiano A seguir, a partir da investigação de diversos textos freudianos, faremos um cotejamento para mostrar, pela pena do próprio Freud, como se dá, ou não, o parentesco entre o seu pensamento e o de Schopenhauer.

    A primeira referência a Schopenhauer feita por Freud já comparece em um de seus textos iniciais, o célebre A interpretação dos sonhos (1900). Nele, Freud declara a colaboração decisiva de Schopenhauer em sua reflexão sobre as origens dos sonhos ao dizer: "a linha de argumentação desenvolvida pelo filósofo Schopenhauer, em 1851, exerceu decisiva influência em grande parte dos escritores. Nosso quadro do universo, segundo seu ponto de vista, é alcançado por nosso intelecto tomando-se as impressões que estão ligadas a ele e remodelando-as sob as formas de tempo, espaço e causalidade. Durante o dia, os estímulos do interior do organismo, do sistema nervoso simpático, exercem, no máximo, um efeito inconsciente sobre o nosso estado de espírito. Mas à noite, quando não estamos mais ensurdecidos pelas impressões do dia, as que surgem de dentro são capazes de atrair atenção - do mesmo modo que, à noite, podemos ouvir o sussurrar de um regato que é abafado pelos ruídos do dia. Mas como irá o intelecto reagir a esses estímulos, senão executando sua própria função peculiar sobre eles? Os estímulos são, em consequência, remodelados em formas que ocupam espaço e tempo e obedecem às regras da causalidade e assim surgem os sonhos" (34). Nessa citação, Freud reconhece o lugar de importância ocupado pelo sonho no pensamento de Schopenhauer, lugar esse sempre renegado pelo racionalismo ocidental, mas que será incorporado mais tarde por Freud. Ao afirmar que "temos sonhos", o filósofo se indaga não só se "não seria toda a vida um sonho" como também se haveria "um critério seguro para distinguir o sonho da realidade, os fantasmas dos objetos reais". Schopenhauer responde que "sonho e realidade fluem conjuntamente, confundindo-se", e assim traz bastante próximo de nós, psicanalistas, "o parentesco íntimo entre vida e sonho". Schopenhauer recorre a várias passagens poéticas consonantes com sua teoria sobre os sonhos. Dentre muitas, evoca Píndaro ao dizer que "O homem é o sonho de uma sombra", e Sófocles, que no verso 125 de Ájax declama: "Vejo que nós, viventes, nada somos senão figuras ilusórias, imagens de sombras fugidias". Ao lado deles, Shakespeare, em A tempestade (1610/1611), ao falar que "Somos feitos do mesmo estofo que os sonhos, e a nossa breve vida está rodeada de um sono". Também, Calderón de la Barca, que, tão profundamente imbuído da mesma visão, a expressa, por assim dizer, através de um drama intitulado A vida é sonho (1635). Por fim, metaforiza que "a vida e os sonhos são folhas de um mesmo livro. A leitura encadeada se chama vida real". Ao evocar os poetas, diz que "somos obrigados a conceder aos poetas que a vida é um longo sonho" (35). Provavelmente, Freud vislumbra aí o princípio de continuidade entre as atividades psíquicas da vigília e o sonho.

    Prossigamos com nossa pesquisa. O filósofo se refere a um corpo com impulsos inconscientes, e o principal deles é o impulso sexual, ou seja, o impulso sexual é o foco da vontade, esse ímpeto cego desejante, eternamente insatisfeito. Ao dar um lugar central aos impulsos inconscientes e sexuais do corpo, Schopenhauer adquire uma relevância epistemológica na filosofia ocidental, incluindo o corpo do investigador, sua subjetividade, no conhecimento. No prefácio à quarta edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud enfatiza o lugar central desempenhado pela sexualidade na vida psíquica, inclusive na da criança de tenra idade, o que custou a ele a acusação de que a psicanálise era um pansexualismo. Nesse texto, ao tratar da influência do sexual nas ações humanas, Freud também identifica Schopenhauer como o seu antecessor:

    "Contudo, precisamos ainda ter em mente que muito do que este livro contém - sua insistência sobre a importância da sexualidade em todas as realizações humanas e a tentativa que faz para ampliar o conceito de sexualidade - forneceu, desde o início, os mais fortes pretextos da resistência contra a psicanálise. Certas pessoas chegaram ao extremo, em sua busca de termos pomposos e de fácil aceitação, de mencionar o "pansexualismo" da psicanálise e de acusá-la levianamente de "tudo" explicar pelo sexo. Isto poderia nos espantar se nos fosse possível esquecer como os fatores emocionais tornam as pessoas confusas e esquecidas. Pois, já faz muito tempo que Arthur Schopenhauer, o filósofo, mostrou à humanidade o quanto suas atividades são determinadas pelos impulsos sexuais, no sentido comum da expressão" (36).

    Posteriormente, no texto "Uma dificuldade no caminho da psicanálise"(1917), Freud reafirma que o filósofo Schopenhauer é aquele que, mais do que outros, não só inaugura a ideia da vontade inconsciente, que Freud equiparará textualmente às pulsões da psicanálise, como também anuncia aos homens "o seu ser sexual" ao ressaltar a gênese sexual da vontade: "Provavelmente muito poucas pessoas podem ter compreendido o significado, para a ciência e para a vida, do reconhecimento dos processos mentais inconscientes. Não foi, no entanto, a psicanálise, apressemo-nos a acrescentar, que deu esse primeiro passo. Há filósofos famosos que podem ser citados como precursores - acima de todos, o grande pensador Schopenhauer, cuja 'Vontade' inconsciente equivale às pulsões mentais da psicanálise. Foi esse mesmo pensador, ademais, que, em palavras de inesquecível impacto, advertiu a humanidade quanto à importância, ainda tão subestimada pela espécie humana, da sua ânsia sexual. A psicanálise tem apenas a vantagem de não haver afirmado essas duas propostas tão penosas para o narcisismo - a importância psíquica da sexualidade e a inconsciência da vida mental - sobre uma base abstrata, mas demonstrou-as em questões que tocam pessoalmente cada indivíduo e o forçam a assumir alguma atitude em relação a esses problemas. É somente por esse motivo, no entanto, que atrai sobre si a aversão e as resistências que ainda se detêm, com pavor, diante do nome do grande filósofo" (37).

    Em "As resistências à psicanálise"(1925), Freud retoma a acusação de pansexualismo e interpreta que a resistência da maioria dos filósofos frente às suas ideias se deve a um motivo duplo: a admissão da psique restrita à esfera da consciência e a recusa do papel da sexualidade na vida psíquica. Mas, Freud destaca a posição inovadora de Schopenhauer e sua contribuição não só no âmbito dos processos psíquicos inconscientes como também no largo alcance do seu conceito de sexualidade. Freud declara: "A significação incomparável da vida sexual havia sido proclamada pelo filósofo Schopenhauer em uma passagem intensamente marcante. Ademais, aquilo que a psicanálise chamou de sexualidade não era em absoluto idêntico ao impulso no sentido de uma união dos dois sexos ou no sentido de produzir uma sensação prazerosa dos órgãos genitais; tinha muito mais semelhança com o Eros, que tudo inclui e tudo preserva, do Banquete de Platão" (38). Cogita-se que a tal passagem marcante de Schopenhauer, em que o filósofo atribui o predomínio do desejo sexual sobre os demais desejos, que Freud teria em mente é: "ele (desejo sexual) é diferente de qualquer outro desejo: ... ele não é apenas o mais forte, é, porém, mesmo especificamente, de um tipo mais poderoso que qualquer outro" (39). Para Assoun, a sexualidade em Schopenhauer não se reduz à "concepção estreita de uma sexualidade genital e procriadora" (40). Maria Lucia Cacciola é outra comentadora a concordar que Schopenhauer não pensa a sexualidade de forma redutora, pois, para o filósofo, "a sexualidade expande-se e amolda-se nas várias manifestações da vida afetiva e intelectual" (41).

    Gérard Lebrun, em Passeios ao léu (1983), lembra que as ideias de Schopenhauer pairavam na atmosfera de Viena na época de Freud, e que a leitura de seu pensamento "foi frutífera, e Freud homenageia Schopenhauer por ter sido capaz de ver que a pulsão sexual representa a encarnação da vontade de viver. O que é mera justiça, pois o Eros freudiano já está em ampla medida presente em O mundo como Vontade e representação", conforme segue: "O instinto sexual é a substância da vontade de viver e representa a sua concentração. Assim, chamei justamente as partes genitais de foco da vontade. Mais, até pode-se dizer que o homem é um instinto sexual que tomou corpo... só este instinto liga e perpetua o conjunto dos seus fenômenos. Sem dúvida, a vontade de viver manifesta-se inicialmente enquanto esforço para a conservação do indivíduo; mas aí se trata apenas de um degrau no esforço para a conservação da espécie" (42).

    Continuando nosso cotejamento, veremos que por meio da teoria do recalque podemos evidenciar, ao mesmo tempo, uma aproximação e um distanciamento entre os dois pensadores. Em A história do movimento psicanalítico (1914), em que há o registro da teoria do recalque como a pedra angular sobre a qual repousa a estrutura da psicanálise, Freud designa Schopenhauer como seu precursor nessa teorização, porém, com hesitação, devido ao fato de Freud ter nela efetuado transformações que a distanciaram da concepção schopenhaueriana de recalque, que havia sido pensada de modo muito preciso a partir de pressupostos metafísicos. Freud diz: "A teoria do recalque, sem dúvida alguma, ocorreu-me independentemente de qualquer outra fonte; não sei de nenhuma impressão externa que me pudesse tê-la sugerido, e por muito tempo imaginei que fosse inteiramente original, até que Otto Rank ... nos mostrou um trecho da obra de Schopenhauer World as will and idea na qual o filósofo procura dar uma explicação da loucura. O que ele diz sobre a luta contra a aceitação da parte dolorosa da realidade coincide tão exatamente com o meu conceito de recalque que, mais uma vez, devo a chance de fazer uma descoberta ao fato de não ser uma pessoa muito lida. ... Tive, portanto, de me preparar – e com satisfação – para renunciar a qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo reconheceu por intuição" (43).Uma década mais tarde, em Um estudo autobiográfico (1925), Freud reafirmará "O alto grau em que a psicanálise coincide com a filosofia de Schopenhauer – ele não somente afirma o domínio das emoções e a suprema importância da sexualidade, mas também estava até mesmo cônscio do mecanismo do recalque (...)" (44).

    Sabemos que a teoria das pulsões ocupa um lugar privilegiado na psicanálise freudiana e nos remete ao centro da atividade criadora de Freud, àquilo que nele há de mais inovador, mais perturbador e de ruptura com os saberes de sua época. E é exatamente na elaboração de sua concepção dualista da vida pulsional, em Além do princípio do prazer (1920) – texto significativo em que Freud opera uma guinada em seu pensamento ao enfatizar a força da pulsão de morte na psique –, que Freud diz encontrar abrigo na baía da filosofia de Schopenhauer, selando, assim, sua filiação fundamental com o filósofo: "Detenhamo-nos por um momento nessa concepção notadamente dualista da vida pulsional. De acordo com a teoria de E. Hering, na substância viva operam ininterruptamente dois tipos de processos, em direções opostas – uns construtivos, anabólicos, os outros destrutivos, catabólicos. Podemos ousar reconhecer, nessas duas direções dos processos vitais, a atividade de nossos dois movimentos pulsionais, das pulsões de vida e das pulsões de morte? E há outra coisa que não podemos ignorar: que inadvertidamente adentramos o porto da filosofia de Schopenhauer, para quem a morte é 'o autêntico resultado' e, portanto, o objetivo da vida, enquanto a pulsão sexual [sexualtrieb] é a encarnação da vontade de vida" (45). Desta forma, Freud revela a influência da filosofia de Schopenhauer na constituição de sua visão dualista da vida pulsional, Eros e Thanatos, e reconhece a existência da pulsão sexual, de vida, e da pulsão de morte no pensamento de Schopenhauer.

    Em suma, para Schopenhauer, na esfera humana, o inconsciente, a vontade, a sexualidade e o recalque são conceitos que se recobrem e tomam a dianteira sobre os processos racionais.

    No texto "Ansiedade e vida pulsional", a XXXII das Novas conferências introdutórias (1933), Freud traz inovações teóricas e aprofundamentos metapsicológicos, e enfatiza o estatuto e o lugar fundamental da teoria das pulsões como uma mitologia. Freud irá agora problematizar o parentesco com Schopenhauer, contido em Além do princípio do prazer, relativo às pulsões eróticas e às pulsões de morte: "Se é verdade que - em alguma época incomensuravelmente remota e de um modo irrepresentável - a vida se originou da matéria inorgânica, então, de acordo com nossa suposição, deve ter surgido uma pulsão que procurou eliminar a vida novamente e restabelecer o estado inorgânico. Se reconhecemos nessa pulsão a autodestruição de nossa hipótese, podemos considerar a autodestruição como expressão de uma pulsão de morte que não pode deixar de estar presente em todo processo vital. Ora, as pulsões, nas quais acreditamos, dividem-se em dois grandes grupos - as pulsões eróticas, que buscam acumular cada vez mais substância viva em unidades cada vez maiores, e as pulsões de morte, que se opõem a essa tendência e levam o que está vivo a um estado inorgânico. Da ação concorrente e antagônica entre essas duas pulsões procedem os fenômenos da vida que chegam ao seu fim com a morte" (46). Ao prosseguir, Freud faz uma distinção: "Talvez os senhores venham a sacudir os ombros e dizer: 'Isso não é ciência natural, é filosofia de Schopenhauer!' Mas, senhoras e senhores, por que um pensador ousado (Schopenhauer) não poderia ter entrevisto algo que depois se confirma por intermédio de uma pesquisa séria e laboriosa?", e demarca, em seguida, o que é próprio do lugar freudiano investigativo: a contradição e a dualidade fundamental das pulsões, em oposição a uma intuição totalizante. "E mais, o que estamos dizendo não é nem mesmo Schopenhauer autêntico. Não estamos afirmando que a morte é o único objetivo da vida; não estamos desprezando o fato de que existe vida, assim como existe morte. Reconhecemos duas pulsões básicas e atribuímos a cada uma delas a sua própria finalidade. Como as duas se mesclam no processo de viver, como a pulsão de morte é posta a serviço dos propósitos de Eros, especialmente quando voltada para fora como agressividade - estas são tarefas reservadas à investigação futura" (47).

    Barboza, ao nos lembrar da presença do monismo da vontade schopenaueriana, faz um esclarecimento a respeito dessa diferenciação operada por Freud: "De fato, para Schopenhauer não existem dois impulsos autônomos que jogam entre si para constituir o mundo, mas apenas a vontade de vida é o mais real dos objetos, e o jogo entre vida e morte é emanação dela - é o chamado monismo da vontade. E aquele jogo, enquanto fenômeno no espaço e no tempo vinculados pela causalidade, é uma aparência não essencial, é uma grande ilusão" (48).

    Para terminar, não podemos deixar de lado a tão conhecida fábula dos porcos-espinhos de Schopenhauer: "Um grupo de porcos-espinhos ia perambulando num dia frio de inverno. Para não congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhamento e o enregelamento" (49). A metáfora diz respeito à ideia de um ciclo, que se repete constantemente na convivência entre as pessoas. Em consonância com Schopenhauer, Freud também elenca o vínculo entre as pessoas como a fonte, dentre outras, mais espinhosa, no sentido de ser aquela que produz mais sofrimento no homem, e em "Psicologia de grupo e análise do ego", Freud retoma a fábula schopenhaueriana e explicita: "Mantenhamos perante nós a natureza das relações emocionais que existem entre os homens em geral. De acordo com o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo. Os dados da psicanálise mostram que quase toda relação afetiva íntima de certa duração entre duas pessoas - casamento, amizade, relações entre pais e filhos - contém um depósito sedimentar de sentimentos de aversão e hostilidade, que só escapa à percepção em decorrência do recalque" (50).

    No vaivém de convergências e divergências, é preciso deixar claro que "Freud jamais fez uma importação selvagem da filosofia schopenhaueriana para a psicanálise, nem pretendeu que a psicanálise se reduzisse a um prolongamento terapêutico da doutrina de Schopenhauer" (52), estabelecendo, portanto, uma descontinuidade entre as intuições totalizantes do filósofo e as pesquisas psicanalíticas. Referente ao pensar metapsicológico, Freud adverte em 1925, em seu Selbstdarstellung: "Mesmo quando me afastei da observação, evitei cuidadosamente qualquer contato com a filosofia propriamente dita" (51).

     

    Jassanan Amoroso Dias Pastore é psicanalista clínica, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Instituto de Psicanálise Sedes Sapientiae. Autora do livro O trágico: Schopenhauer e Freud . Ed. Primavera Editorial. 2015.

     

    Notas e Referências Bibliográficas

    1. Mezan, R. Tempo de muda: ensaios de psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras. p. 78. 1998.

    2. Rosenfeld, A. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva. pp. 174-175. 2009.

    3. Jair Barboza, tradutor da obra de Schopenhauer, esclarece que Schopenhauer escreve "Vontade" com "V" maiúsculo porque é a coisa em si, a natureza toda, e também para diferenciá-la da vontade individual, grafada com "v" minúsculo, que vem a ser uma objetidade da Vontade (2005, p. 169, nota 8).

    4. Mann, T. O pensamento vivo de Schopenhauer (P. F. do Amaral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. p. 19.1951.

    5. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. p. 370. 2005.

    6. Machado, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 170. 2006.

    7. Schopenhauer, A. Le monde comme volonté et comme representation (A. Burdeau, Trad.). Paris: PUF. pp. 894-895. 2009.

    8. Jean-Marie Schaeffer, citada por Machado, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 170. 2006.

    9. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. p. 368. 2005.

    10. Schopenhauer, A. Fragmentos para a história da filosofia (M. L. M. e O. Cacciola, Trad.). São Paulo: Iluminuras. p. 118. 2003.

    11. Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral (M. L. M. e O. Cacciola, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. p. 209. 2001.

    12. Machado, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 175. 2006.

    13. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. p. 329. 2005.

    14. Machado, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 181. 2006.

    15. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. p. 43. 2005.

    16. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. p. 45. 2005.

    17. Machado, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 168. 2006.

    18. Mann, T. O pensamento vivo de Schopenhauer (P. F. do Amaral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. p. 24.1951.

    19. Schopenhauer, A. Le monde comme Volonté et comme representation (A. Burdeau, Trad.). Paris: PUF. pp. 907-908. 2009.

    20. Mann, T. O pensamento vivo de Schopenhauer (P. F. do Amaral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. p. 25.1951.

    21. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. pp. 399-400. 2005.

    22. Freud, S. "O mal-estar na civilização". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 21,). Rio de Janeiro: Imago. p. 95. 1929.

    23. Mann, T. O pensamento vivo de Schopenhauer (P. F. do Amaral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. p. 23.1951.

    24. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. p. 447. 2005.

    25. Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral (M. L. M. e O. Cacciola, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. p. 123. 2001.

    26. Freud, S. "O mal-estar na civilização". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. p. 133. 1929.

    27. Rosset, C. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. p. 35. 1989.

    28. Assoun, P.-L. Freud, a filosofia e os filósofos (H. Japiassu, Trad.). São Paulo: Francisco Alves. p. 172. 1978.

    29. Assoun, P.-L. Freud, a filosofia e os filósofos (H. Japiassu, Trad.). São Paulo: Francisco Alves. p. 172. 1978. Schopenhauer viveu em Frankfurt de 1831 até sua morte em 1860.

    30. Freud, S. "Um estudo autobiográfico". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. p. 63. 1925.

    31. Hyppolite, J. (1989). Ensaios de psicanálise e filosofia (A. Telles, Trad.). Rio de Janeiro: Taurus-Timbre. p. 88. 1989.

    32. Barboza, J. (2005). Prefácio. In: A. Schopenhauer, O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad., pp. 7-18). São Paulo: Unesp. p. 11. 2005.

    33. Barboza, J. (2005). Prefácio. In: A. Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação (J. Barboza, Trad., pp. 7-18). São Paulo: Unesp. pp. 11-12. 2005.

    34. Freud, S. "A interpretação dos sonhos". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vols. 4-5). Rio de Janeiro: Imago. p. 38. 1900.

    35. Schopenhauer, A. O mundo como Vontade e como representação (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Unesp. pp. 59-61. 2005.

    36. Freud, S. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. p. 134. 1905.

    37. Freud, S. "Uma dificuldade no caminho da psicanálise". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. pp. 178-179. 1917.

    38. Freud, S. "As resistências à psicanálise". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19). Rio de Janeiro: Imago. pp. 270-271. 1925.

    39. Freud, S. "As resistências à psicanálise". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19). Rio de Janeiro: Imago. pp. 277-278. 1925.

    40. Assoun, P.-L. Freud, a filosofia e os filósofos (H. Japiassu, Trad.). São Paulo: Francisco Alves. p. 183. 1978.

    41. Cacciola, M. L. M. e O. (1995). "A Vontade e a pulsão em Schopenhauer". In: A. H. de Moura (Org.), As pulsões (pp. 53-63). São Paulo: Escuta. p. 59. 1995.

    42. Lebrun, G. Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense. p. 91. 1983.

    43. Freud, S. "A história do movimento psicanalítico". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. pp. 25-26. 1914.

    44. Freud, S. "Um estudo autobiográfico". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. pp. 75-76. 1925.

    45. Freud, S. "Além do princípio do prazer". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. pp. 219-220. 1920.

    46. Freud, S. "Novas conferências introdutórias sobre psicanálise". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22). Rio de Janeiro: Imago. p. 133.1933.

    47. Freud, S. "Novas conferências introdutórias sobre psicanálise". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22). Rio de Janeiro: Imago. p.134.1933.

    48. Barboza, J. Prefácio. In: A. Schopenhauer, Metafísica do amor, metafísica da morte (J. Barboza, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. p. XXII. 2004.

    49. Schopenhauer, A. Le monde comme volonté et comme representation (A. Burdeau, Trad.). Paris: PUF. p. 1467. 2009.

    50. Freud, S. "Psicologia de grupo e análise do ego". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. p. 56. 1921.

    51. Freud, S. "Um estudo autobiográfico". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. p. 75. 1925.

    52. Pastore, J. A. D. O trágico:Schopenhauer e Freud. São Paulo: Primavera Editorial, p. 326, 2015.