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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100010 

    ARTIGOS
    PSICANÁLISE E FILOSOFIA

     

    O infinito campo hermenêutico

     

     

    Oswaldo Giacóia Junior

     

     

    Um diálogo entre Nietzsche e a psicanálise não pode prescindir de uma menção à erosão por este filósofo do campo tradicional da psiché. Com efeito, a crítica disruptiva a que Nietzsche submete a modernidade cultural e a história da filosofia tem como alvo privilegiado o núcleo espiritual da metafísica, isto é, a subjetividade e os processos de subjetivação. Não se trata, de modo algum, de simplesmente inverter a valoração que sempre foi dada à alma (ao espírito ou intelecto) em relação ao corpo e à carne. Trata-se de subverter inteiramente a própria ideia de uma oposição entre mente e corpo, fazendo deste a "grande razão" e daquele um instrumento e um brinquedo - um efeito de superfície - um signo, ou melhor, uma cadeia semiótica da prodigiosa racionalidade corporal.

    "O corpo humano, no qual torna-se de novo vivo e corpóreo o passado inteiro e remoto de todo vir-a-ser orgânico, por meio do qual, por sobre o qual, para além do qual, parece fluir uma imensa e insondável corrente: o corpo é um pensamento mais admirável do que a antiga 'alma'" (1). Nesse sentido, o corpo é, para Nietzsche, não um mero objeto disponível e sujeitado à curiosidade teórica; ele é, antes, "um pensamento admirável". Insondável em sua natureza labiríntica, o corpo é, ao mesmo tempo, o fio de Ariadne, que nos guia pelos percursos mais abissais e inauditos, pelo labirinto do universo entendido como feixe de configurações e ramificações da infinitamente proteiforme vontade de poder. Em Nietzsche, o corpo não pode, pois, ser adequadamente tomado no mero registro do físico-somático, biológico, daquilo que stricto sensu se determina como o objeto da fisiologia. O corpo tem a impalpável concretude de um campo de forças, ou de uma superfície de cruzamento entre múltiplas perspectivas. No corpo fala a linguagem do inconsciente, sua natureza íntima é apresentar-se como semiose infinita.

    Como unidade de organização, o corpo nos abre a perspectiva para a compreensão da totalidade do orgânico, pois o homem não é senão essa mesma totalidade continuando a viver numa determinada direção.

    Com isso, em última instância, também se tornaram inutilizáveis as antigas oposições entre "natureza" e "espírito", e até mesmo as diferenciações meramente formais entre "orgânico" e "inorgânico"; a saber: na medida em que encontramos no homem todo orgânico já como síntese incorporada de forças inorgânicas, e com isso - para além de causa e efeito - sempre reencontramos novamente tudo aquilo que em nós está tão "firmemente incorporado". "Que o gato homem sempre de novo recaia sobre suas quatro pernas - eu quis dizer sobre sua única perna "Eu" -, isso é apenas um sintoma de sua unidade fisiológica, mais corretamente, de sua "reunião": nenhum motivo para se crer numa "unidade anímica".

    Este si mesmo corporal, de que o "Eu/consciência" é apenas uma projeção mental, não é o contrário da racionalidade, mas sua verdadeira figura, mesmo que ignorada. A pequena razão é apenas instrumento da "grande" razão, cuja extensão, fronteiras e possibilidades permanecem desconhecidas para a consciência. Um dos efeitos da inversão operada pela genealogia nietzscheana vai consistir, pois, em indicar essa dimensão inaudita, sobre cujo pano de fundo a consciência (a pequena razão) aparece como uma ilha pequena e frágil num oceano infinito. Nessa indicação, podemos encontrar um ponto de apoio para nossa aproximação com Freud, uma vez que também para este o ego forma parte da superfície do corpo, sendo ele próprio projeção de uma superfície. E, nesse sentido, uma aproximação com a metapsicologia de Freud torna-se prodigiosamente fecunda.

    O ego é sobretudo um ego corporal; ele não é apenas uma entidade de superfície, senão que é, ele próprio, a projeção de uma superfície. Se procurarmos uma analogia anatômica para ele, poderemos identificá-lo antes de tudo com o "homúnculo cortical" dos anatomistas, que fica de cabeça para baixo no córtex, estende os calcanhares para cima, olha para trás e, como sabemos, possui a zona da fala no lado esquerdo. Dedicou-se atenção repetidamente à relação do ego com a consciência, todavia existem aqui alguns fatos importantes que devem ser novamente descritos. Acostumados como estamos a levar conosco, por toda parte, nossa escala social ou ética de valores, não ficamos surpresos em ouvir que a cena das atividades das paixões inferiores se acha no inconsciente; esperamos, ademais, que quanto mais alto uma função mental se coloque em nossa escala de valores, mais facilmente encontrará acesso seguro à consciência. Aqui, contudo, a experiência psicanalítica nos desaponta. Por um lado, temos provas de que mesmo operações intelectuais sutis e difíceis, que ordinariamente exigem reflexão vigorosa, podem igualmente ser executadas pré-conscientemente e sem chegarem à consciência. Outra experiência, porém, é muito mais estranha. Em nossas análises, aprendemos que existem pessoas nas quais as faculdades de autocrítica e consciência moral (Gewissen) - portanto, atividades mentais que são avaliadas como extremamente elevadas - são inconscientes e inconscientemente produzem efeitos da maior importância (3).

    Trata-se, portanto, em Freud, como já em Nietzsche, de interpretar o "ego/consciência" a partir do corpo e corporalmente, e fazê-lo tanto do ponto de vista topológico quanto, sobretudo, dinâmico e econômico. Se, para Nietzsche, um indivíduo é um prodigioso campo de forças, esse indivíduo, em sentido psicanalítico, deve ser considerado como um "id psíquico desconhecido e inconsciente, sobre cuja superfície assenta-se o ego, desenvolvido a partir do sistema percepção-consciência. Se desejarmos uma apresentação gráfica, então acrescentaremos que o ego não envolve completamente o id, mas apenas na medida em que o sistema percepção forma a sua [do ego] superfície; portanto, como a gema fica instalada no ovo. O ego não está pronunciadamente separado do id, mas mistura-se com ele, fluindo para baixo. Mas também o recalcado mistura-se com o id, é apenas uma parte dele. O recalcado é pronunciadamente separado do ego por meio das resistências do recalque, e pode comunicar-se com ele por meio do id (4).

    Encontramos, como em Nietzsche, relações dinâmicas entre forças somato-psíquicas, jogos de oposições e resistências, correntes energéticas investidas em sistemas, que neles se especificam espacialmente (profundidade, superfície), deslocam-se entre os mesmos, neles desempenham funções (percepção, consciência, registro de qualidades psíquicas), instâncias que recebem aportes e sofrem subtrações de quantidades de energia (investimentos, contra-investimentos etc); mas que também se deixam interpretar em termos de escalas valorativas (alto e baixo, superior e inferior), inclusive em termos de estimativas de valor ético-político (dominantes e dominados).

    O mais notável, porém, nessa aproximação teórica entre a hermenêutica nietzscheana e a metapsicologia de Freud, é que as categorias ontológicas que servem de base para a construção das respectivas teorias acabam por perder seu teor de substancialidade, mesmo também a aparente unidade que lhes deve ser ficcionalmente atribuída, para fins heurísticos, dissolvendo-se em processos interpretativos sem sujeito fixo:

    Nos primórdios originários (uranfänglich), na primitiva fase oral do indivíduo, o investimento de objeto (objektbesetzung) e a identificação são bem separáveis um do outro. Mais tarde, pode-se apenas admitir que os investimentos de objeto partem do id, que sente as pressões (strebungen) eróticas como carências (bedürfnisse). O ego, inicialmente ainda tíbio, toma conhecimento dos investimentos de objeto, toma agrado por eles, ou procura defender-se deles por meio do processo de repressão (verdrängung) (5).

    Percebemos, portanto, que aqui não existem unidades estáveis, substâncias ou sujeitos, em sentido ontológico, o que há são sistemas que se formam, com suas energias e suas funções de reservatório ou de descarga, processos de identificação, ou, ao contrário, de separação; união, assimilação ou rejeição comandadas inteiramente não por sujeitos substanciais ou unidades lógicas, como a apercepção transcendental em Kant; o que temos, nesses sistemas, são atuações de quanta de energia fisio-psíquica, forças e pressões,
    impulsos e resistências sentidas (o verbo empregado por Freud na citação acima é empfinden), isto é, interpretadas como carências - a saber, significadas, tomadas em estruturas de sentido, colhidas em perspectivas, que justamente não são referidas a interpretantes últimos com o estatuto de sujeitos ou unidades, senão como unidades plurais de organização.

    Em virtude do esquecimento de que só existe um avaliar perspectivo, fervilham miríades de avaliações contraditórias e consequentemente de impulsos contraditórios em um homem. Isso é a expressão da enfermidade no homem; ao contrário do animal, no qual todos os instintos presentes prestam-se a tarefas totalmente determinadas; - aquela criatura repleta de contradições tem, porém, em seu ser (wesen) um grande método de conhecimento: ele sente muitos prós e contras - ele se eleva à justiça - ao compreender para além do avaliar em termos de bem e mal. O homem mais sábio seria o mais rico em contradições, o que tem como que órgãos do tato para todas as espécies de homem: e, em meio a isso, tem seus grandes instantes de enorme consonância - o elevado acaso também em nós! - Uma espécie de movimento planetário (6).

    Portanto, tanto para Nietzsche quanto para Freud, aquilo que a tradição confundia com a estrutura nuclear da subjetividade - a consciência, razão, ou espírito, a alma (psiché) - nada mais é que a tênue superfície de uma profundidade insondável, daquela grande razão, que é o corpo. Ao contrário da ilusão subjetiva da consciência, que é um efeito induzido pela gramática da linguagem (um "eu" que é meramente discursivo, portanto, que é apenas dito), o corpo, como unidade produzida a partir da multiplicidade não é apenas discurso, mas um fazer (o corpo faz "eu").

    Nesse movimento do pensamento, o "eu/ego/consciência" pode ser comparada a uma frágil embarcação, permanentemente ameaçada, que se mantém na superfície do oceano infinito e inóspito, confiante em sua possibilidade de manter-se à tona. E, no entanto, é a essa formação psíquica vulnerável que se deve a epopeia da cultura. Se retirarmos agora o foco da atenção da subjetividade insubsistente para a relação entre sujeito e interpretação, atingiremos um extrato ainda mais profundo da crítica nietzscheana da metafísica, na qual se opera uma dissolução integral da subjetividade, tal como foi pensada pela tradição filosófica. A divisa freudiana "Wo es war, sol ich werden" ("Onde estava o id, ali deve advir o ego") (7), bem poderia ter sido também o lema de Nietzsche.

     

    Oswaldo Giacóia Junior é professor titular de filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor de Nietzsche: o humano como memória e como promessa. Petrópolis: Vozes, 2014 e Heidegger urgente. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

     

    Notas e Referências Bibliográficas

    1. Nietzsche, F. "Nachlass fragment", no. 36[35], de junho - julho de 1885. In: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Ed. G. Colli und M. Montinari. Berlin, New York, München: de Gruyter, DTV. 1980, vol. 11, p. 565.

    2. Schipperges, H. Am leitfaden des leibes. Zur anthropologik und therapeutik Fr. Nietzsches. Stuttgart: Ernst Klett Verlag, 1975, p. 62s.

    3. Freud, S. "Das ich und das es". In: Freud, S. Studienausgabe. Band III. Ed. A. Mitscherlich; A. Richard; J. Strachey. Frankfurt/M: Fischer Verlag, 1982, p. 294.

    4. Freud, S. "Das ich und das es". In: Freud, S. Studienausgabe. Band III. Ed. A. Mitscherlich; A. Richard; J. Strachey. Frankfurt/M: Fischer Verlag, 1982, p. 292s.

    5. Freud, S. "Das ich und das es". In: Freud, S. Studienausgabe. Band III. Ed. A. Mitscherlich; A. Richard; J. Strachey. Frankfurt/M: Fischer Verlag, 1982, p. 296s.

    6. Nietzsche, F. Fragmento póstumo do verão-outono de 1884, número 26 [119]. In: KSA, vol. 11, p. 181s.

    7. Freud, S. "Novas conferências introdutórias sobre psicanálise". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22). Rio de Janeiro: Imago. p. 102. 1933.