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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100012 

    ARTIGOS
    PSICANÁLISE E FILOSOFIA

     

    O pensamento de Isaías Melsohn

     

     

    Marilsa Taffarel

     

     

    Para Isaías Melsohn existem dois Freud e é fundamental distingui-los uma vez que entre eles há uma fratura.

    Um deles é o Freud voltado para a captação do sentido. Este, presente nas grandes obras publicadas em torno dos anos 1900, amplia grandemente o espectro das manifestações humanas dotadas de sentido. Faz uma revolução semântica no campo da significação dos fenômenos psíquicos e da cultura.

    O outro Freud, presente nos textos metapsicológicos, irá fundamentar o sentido apreendido no relato do sonho, na psicopatologia da fala, no sintoma neurótico, nos gestos e na conduta humana, em uma psicologia que o século XX ultrapassou, a psicologia clássica ou empirista.

    A psicologia clássica pela sua herança empirista, só pode conceber a consciência com uma superfície receptora de impressões e a percepção como uma espécie de decalque do mundo. O estrato elementar das sensações simples e suas regras de associação seriam a origem segura de todo conhecimento do mundo. A garantia da objetividade e da verdade, concebida como uma adequação da representação mental ao mundo (adequatio rei et intelectus).

    Por que inexiste uma reflexão crítica interna à psicanálise sobre a noção de percepção que ela adota? Por que os grandes teóricos da psicanálise não consideram a revisão total feita pela fenomenologia nos fundamentos epistemológicos e também na concepção de homem da psicologia clássica? Pergunta-se Melsohn.

    Há, em geral, uma convicção da independência da psicanálise em relação a toda psicologia. Isaías mostra que esses conceitos estão presentes e são determinantes daqueles propriamente psicanalíticos, os conceitos metapsicológicos, sobretudo o de inconsciente representacional e seus correlatos, tais como repressão.

    A existência de "dois Freud" foi também objeto de reflexão para George Politzer em sua obra, tornada clássica, Crítica dos fundamentos da psicologia de 1928. Ele critica a redução, feita pela teorização freudiana, da psicanálise à psicologia clássica, cientificista. A metapsicologia é, para ele, uma abstração, padece de realismo. Com ela, Freud abandona sua descoberta: a descoberta do sentido individual e concreto do sonho.

    Politzer é retomado em 1960, no IV Colóquio de Bonneval sobre o inconsciente, por Serge Leclaire e Jean Laplanche que fazem uma homenagem ao momento inicial de seu pensamento, o da obra citada acima. O que é criticado é a ideia de Politzer da imanência do sentido: "nossa experiência se opõe à redução de um gesto, de um símbolo, de uma palavra, tais como se apresentam na análise, a ser só um signo original inventado pelo sujeito para expressar em uma linguagem única, uma intenção significante, ela mesma marcada de particularidade."

    (1) Politzer praticaria uma redução, um achatamento da dimensão subjetiva ao propor uma estrutura de duas dimensões: a letra (o manifesto) e seu sentido, que ocuparia o lugar de inconsciente.

    Bento Prado, importante filósofo e estudioso da psicanálise, em seu artigo "George Politzer: Crítica dos fundamentos da psicologia", denomina a abordagem de Laplanche e Leclaire de neolacaniana ortodoxa.

    (...) o, que se critica em Politzer é uma concepção dualista ou expressivista - e não ternária como deveria - do sentido, que pensa apenas a relação vertical entre conteúdo manifesto e um sentido latente. Os tempos agora são os da lógica e da linguística, em que importa menos a imanência significativa num signo qualquer que os esquemas de substituição dos signos entre si (2).

    Escreve ele criticamente.

    Este é o ponto crucial que Isaías irá retomar, instrumentado pela sua clínica e por recursos inovadores, na concepção de linguagem e de simbolismo.

    Isaías, para atingir o seu objetivo de fazer uma reflexão crítica sobre o estatuto epistemológico e ontológico do conceito de representação inconsciente, segue um caminho que passa necessariamente pelo exame dos conceitos básicos como imaginação, percepção, sentimento, imanência da consciência (a ideia de que as representações perceptivas ou imaginárias são internas à consciência). Depois de examiná-los no âmbito da psicologia clássica mostra sua refundição, possibilitada pelas novas investigações.

    As concepções clássicas da psicologia entram em conflito com os dados das experiências perceptivas. Por exemplo: uma mancha colorida nos parece da mesma cor em toda sua superfície, quando os limiares cromáticos das diferentes regiões da retina deveriam fazê-la, vermelha num certo ponto, alaranjada em outro etc (3). Explica Isaías que, embora se possa apelar para a lei da constância e explicar esses fenômenos pela atenção ou pela função do julgamento, verificou-se, examinando os fenômenos, que a apreensão de uma qualidade está ligada ao contexto perceptivo mais do que a sensações elementares.

    A psicologia da forma com seus trabalhos experimentais, sistemáticos, contribuiu muito para a crítica das teorias da psicologia clássica. Köller, na década 1920, ao analisar as hipótese empiristas, segundo as quais todo fato sensorial local é estritamente determinado por seu estímulo, visa a evidenciar que, ao contrário, as características dos estímulos, nas sua relações mútuas, têm um papel central na experiência sensorial local,

    (...) de sorte que certos aspectos de seu conteúdo virão em primeiro plano, ao passo que outros serão suprimidos em grau maior ou menor. (...) (Isto) Equivale a uma transformação real de certos fatos sensoriais em outros (...). (4)

    Mesmo quando se trata de pura receptividade, há uma seleção dos estímulos sensíveis. Não temos nem nesse nível a reprodução de um simples dado.

    A percepção de expressões, a captação afetiva do mundo é primária e geneticamente anterior à percepção de coisas. O "fato expressivo" tem um significado que reside nele mesmo. A expressão não é um signo referencial, que se remete a um significado diferente dele próprio. Percebemos diretamente sem recorrer a experiências anteriores - inferências ou mediações de algum tipo - as propriedades expressivas inerentes aos objetos.

    A primeira maior influência sobre o pensamento de Melsohn foi o filósofo Edmund Husserl (fundador da fenomenologia) e sua crítica à imanência psicológica. A sua concepção de consciência aberta para o mundo (consciência é "consciência de"), os seus conceitos de ato noético ou ato intencional e noema, um sentido ou uma significação relativos a um objeto intencional apreendido como externo. Ou seja, o objeto da percepção ou da imaginação não está dentro da consciência. A partir de sensações internas apreendemos qualidades sensíveis de objetos externos. As qualidades sensíveis dos objetos externos, como a cor e a luminosidade, são apreendidas pelas sensações internas. As sensações não são imagens, bilder (em alemão). Elas são a base sensorial para representar objetos transcendentes à consciência que podem ser perceptivos ou imaginários.

    Melsohn pode pensar, a partir da crítica à imanência, um mundo interno consistente com uma ordem, uma organização complexa de impulsos, uma delicada organização de estruturas de movimentos intencionais (noésis) que, projetados e espacializados, possibilitam a determinação dos objetos. O interno encontra sua forma nos objetos e cenas que o mundo oferece (noema).

    Isaías Melsohn chega à psicologia da forma através de Ernst Cassirer, sua segunda influência maior. Esse filósofo alemão, de origem neo-kantiana, é influenciado por Hegel, Dilthey, Husserl, Goethe, entre outros. Para construir sua obra filosófica principal Filosofia das formas simbólicas, ele reúne e aprofunda os conhecimentos acumulados pelos psicólogos da forma, pelos fenomenólogos que, a partir do método criado por Husserl, também trabalharam sobre a nova concepção de percepção do mundo e do outro, do "tu".

    Ernst Cassirer irá se voltar para a fundamentação (as condições de possibilidade) de vários universos culturais: a ciência, a arte, a religião, a linguagem, o mundo mítico, e para a forma de consciência que corresponde a eles. Para Cassirer é o conceito de símbolo e de forma simbólica que une e diferencia essas várias esferas da produção humana. O projeto do filósofo de abranger todas as formas de objetividade (de produção humana nas diferentes formas de cultura) e da subjetividade (que sujeito produz essas culturas) o leva ao estudo do mito e da linguagem através do qual chega ao mais originário estrato a consciência, às formas mais básicas da subjetividade. Ele irá diferenciar dois tipos de percepção: a percepção objetiva e a percepção expressiva. Essa forma de percepção é plenamente vigente no mundo do mito. Porém, persiste nas esferas da cultura do dito mundo "civilizado", nas superstições dos adultos, e nas crianças. Para Isaías, ela está presente na neurose.

    Na percepção expressiva não pensamos o objeto, estamos nele. Trata-se de uma imagem (ou palavra) que toma toda a consciência. Trata-se de uma pura presença.

    Eu passo numa rua, por uma construção. Cai um objeto, eu me apercebo, eu de repente fico transido, eu me desvio, ativa-se um esquema interno, próprio de uma estrutura funcional assim chamada esquizo-paranóide, para me pôr a salvo, ou eu fico paralisado, ao sabor do perigo. Eu sequer me dou conta se é um tijolo colorido, um pedaço de concreto, um

    caibro. Talvez eu me dê conta vagamente de uma forma, mas trata-se de uma forma perigosa, despojada das demais qualidades sensíveis dos objetos da percepção trivial. O que me acontece neste estado? Há uma total contração da experiência, tudo o mais que pertence ao acervo subjetivo se eclipsa e desaparece, só aquele objeto é centro da minha atenção e absorve a totalidade da minha consciência (5).

    Isaías, em várias passagens de seu livro, examina a fobia do pequeno Hans. Retoma Freud para quem as representações que dizem respeito ao complexo edípico - tais como o desejo em relação à mãe, impulso de castrar o pai, o terror de ser castrado - estão no inconsciente. Representações derivadas destas e modificadas pelo processo primário como as representações da fobia têm acesso à consciência. Essas revelam e escondem as verdadeiras representações edípicas de Hans que, através do processo analítico, viriam à consciência articuladas e com clara significação. As verdadeiras representações edípicas estavam no inconsciente. O aterrorizante cavalo caindo e esperneando, esconde (e mostra) a verdade da fobia: o pai como objeto das motivações afetivo-pulsionais de Hans. O cavalo, na cena que motiva a fobia, exprime, para Freud, outro contexto perceptivo, as percepções que envolvem o pai.

    A postulação de uma representação do pai no inconsciente seria, para Isaías, produto de uma análise intelectualista resultante da adoção da teoria psicológica vigente.

    Melsohn entende a fobia de Hans como uma produção originária na qual uma emoção intensa - os impulsos mobilizados no menino pela vida sexual dos pais, o pavor da castração, o desejo de eliminar o pai, de possuir a mãe - ganham forma através de uma imagem propícia, da cena do cavalo que escorrega e cai.

    A construção fóbica de Hans é perceptiva - percepção expressiva - e imaginária. Ela objetiva os impulsos contraditórios e as vivências do menino. É uma objetivação simbólica do mundo interno de impulsos em suas relações com o mundo externo. As estruturas internas de impulsos (noéticas) se fixam através do conteúdo fóbico (noema). A forma da experiência emocional, para Isaías, se organiza de um modo peculiar, como um símbolo presentificador da experiência, com sentidos ambíguos, numa linguagem não discursiva, não literal, condizente com o universo mítico em que se passa.

    Enfim,

    (...) a fobia do pequeno Hans tem por função construir um determinado nível de conflito e não mascará-lo. Impulsos e sentimentos, aqui, adquirem consistência e forma definida mediante a criação de uma concepção, de um conteúdo de pensamento. A realidade - para nós - do significado da fobia, se faz realidade para Hans, por meio desta concepção fóbica (6).

    No trabalho sobre a afasia de 1891 está o que Melsohn considera a concepção "epistemológico-psicológica" central de Freud: a representação de coisa. Fundamento da teoria psicanalítica, a representação de coisa é, para Freud, o registro sensorial inconsciente do objeto.

    Como todos sabemos, para Freud, a condição para que a representação de coisa seja passível de consciência é associar-se à representação de palavra, ela precisa entrar no circuito da linguagem. A concepção de linguagem de Freud é a mesma da psicologia empírica do século XIX: recepção e registro de sensações auditivas de som, de sequência de letras, palavras, frases e a emissão articulada de sons ouvidos. O nome liga-se firmemente à representação do objeto que é, por sua vez, resultado de associações de sensações visuais, olfativas, auditivas, tácteis, cenestésicas etc que provêm do objeto. Decorre disso que o registro de um objeto é independente da significação linguística. Haveria uma realidade inominada no inconsciente. A linguagem apenas denotaria o que a percepção fornece.

    Cassirer retoma essa questão da relação da linguagem com o mundo da percepção apoiado em Wilheim von Humboldt, quem, a partir de investigações sobre as formas da percepção, mostra que não podemos conceber a linguagem como nomeando o que a percepção nos dá. Ao contrário, a linguagem tem um papel diretor na percepção e na compreensão do mundo. Para Cassirer (7), à medida que a linguagem avança em direção a uma unificação das diferentes palavras que designam um objeto visto em diferentes posições - uma casa vista de lado que tem um nome distinto de uma casa vista de frente ou de cima, por exemplo - é que o objeto pode ser percebido em sua totalidade. A unidade do nome é que permite a unificação da multiplicidade das representações, ensina e mostra Cassirer. A linguagem é, para ele, o instrumento de constituição da realidade. A linguagem nasce e está fundida com o mito. Mas o estudo minucioso que o autor faz do processo de desenvolvimento da linguagem, no segundo volume da Filosofia das formas simbólicas, mostra como a linguagem ultrapassa o mito, sua fase expressiva, e com seu desenvolvimento, conduz à racionalidade, à percepção objetiva e possibilita a construção da ciência.

    Isaías examina também a mudança na concepção do sentimento. Com James-Lange, cuja teoria data de 1885, teoria que Freud incorpora na metapsicologia, o sentimento era entendido como modificações orgânicas vegetativo-motoras, processos de descarga percebidos pela consciência como um "estremecimento" interior. Melsohn lembra-nos que mesmo quando Freud critica essa teoria, mantém-se a ideia do sentimento como processo interno que se liga a representações. Essa teoria sofre uma reviravolta com Husserl que a concebe como uma forma de apreensão do objeto, uma apreensão afetiva do mundo. Cassirer, por sua vez, seguindo essa direção aberta por Husserl, compreende a emoção e o sentimento como percepção de qualidades expressivas.

    Para Isaías a escuta a-teórica na sessão psicanalítica é fundamental uma vez que só ela permite a apreensão da esfera fenomênica da experiência. O analista deve fazer uma "suspenção", uma epoché das teorias psicanalíticas que dariam um sentido antecipado para sua escuta.

    Além disso, a atenção flutuante é um convite à suspensão própria aos valores semântico-referenciais do discurso, com sua organização sintáxica-horizontal. É um convite para abrir a sensibilidade para relações outras: contradições, repetição temática, assonâncias, polaridades, inversões. Como as que existem no mito e as que Freud via no processo primário e no sonho: ambivalências diretamente expressas coexistindo, elementos opostos presentes concomitantemente.

    O encontro analítico é o momento privilegiado da sessão. Um turbilhão emocional é desencadeado nele. Isaías, na sua descrição dos primeiros momentos do encontro lembra-nos a passagem em que Merleau-Ponty descreve o encontro com o outro: "tudo à volta é imediatamente visto de uma forma diferente, os dois corpos formam um único todo. Não existe mais um eu e um outro (8).

    Para Isaías é aí que são mobilizados impulsos insuspeitados que não teriam outra maneira de se constituírem.

    O analista, também invadido pela experiência emocional do encontro, enfrenta uma dupla exigência: aceitar a invasão acolhendo-a, a fim de poder, a seguir, apreender o seu sentido e formulá-lo numa interpretação. Porém, é essencial que a função expressiva esteja presente na comunicação do analista. Assim, o paciente poderá ouvir a si próprio falado por outrem; poderá se reconhecer dentro e através do outro numa nova fusão, desta vez simbólica. O efeito mutativo da interpretação resulta da união do sentido expressivo e da significação, do som e da letra, do poder musical e designativo da palavra.

    A apreensão do sentido de uma fala vai desvelar a articulação de impulsos e do valor emocional da relação humana que se configura naquele instante.

    Para Isaías a análise é análise do presente e não análise do passado.

     

    Marilsa Taffarel é psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e doutora em psicanálise.

     

    Notas e Referências Bibliográficas

    1. Leclaire, S. & Laplanche, J. "El inconsciente: un estudio psicoanalítico". In: El inconsciente freudianoy el psicoanálisis francês contemporâneo. Buenos Aires: Ed. Nueva Visión,1969.

    2. Prado Jr., B. "George Politzer: crítica dos fundamentos da psicologia", In: Filosofia da psicanálise. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991, pp.16-17.

    3. Melsohn, I. Psicanálise em nova chave, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001, p. 14.

    4. Melsohn, 2001. Op. Cit. p.175.

    5. Melsohn, 2001. Op. Cit. p. 92.

    6. Melsohn, 2001. Op. Cit. p. 24.

    7. Cassirer, E. "El lenguaje y la construcion del mundo de los objetos dos objetos", In: Psicologia dael lenguaje, Buenos Aires, Editorial Paidos, 1972.

    8. Merleau-Ponty, M. Fenomenogía de la percepción. Barcelona, Ed. Península, 1975.