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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100014 

    ARTIGOS
    PSICANÁLISE E FILOSOFIA

     

    Sartre e a psicanálise: subjetividade e história

     

     

    Franklin Leopoldo e Silva

     

     

    Como Sartre chegou à psicanálise? Ele a teria descoberto, depois de um certo percurso teórico em que ela apareceria como um outro modo de pensar as questões da existência? Ou apareceria, "naturalmente", ao longo de um percurso em que a subjetividade e as dimensões objetivas do mundo entrariam em tensão? Sem recusar a pertinência dessas perguntas, talvez seja mais esclarecedor tentar compreender a necessidade da psicanálise na economia interna da obra de Sartre. Nesse sentido podemos dizer que duas vertentes de sua obra, paralelas e confluentes, o teriam conduzido à psicanálise: a elucidação ontológica da subjetividade como processo existencial e a compreensão do caráter histórico da existência. Em outras palavras, a psicanálise aparece para Sartre como um dos instrumentos necessários para o entendimento de uma questão central: a relação entre subjetividade e história.

    Se entendermos que a filosofia de Sartre se constituiu em torno dessa questão, não cabe separar os termos que a compõem. Não podemos dizer, por exemplo, que em O ser e o nada, publicado em 1943, encontramos uma análise fenomenológica da existência na sua dimensão subjetiva, e que em Questão de método e na Crítica da razão dialética, em 1960, teríamos uma abordagem do sujeito histórico. Tal separação tem muito de artificial, e a leitura pautada pelo que poderia ser entendido como uma sequência de duas diferentes "fases" do pensamento de Sartre arrisca-se a deixar escapar algo fundamental: a subjetividade, como exercício de uma liberdade radical, deve ser sempre pensada historicamente, pois a existência é, por definição, histórica.

    Acontece que o modo de ser histórico da existência humana manifesta-se na existência individual como uma história. Cada um de nós é uma história porque a historicidade define a realidade humana; isso quer dizer que a afirmação de cada existência individual se dá como uma determinada história de vida, vivida na singularidade de cada escolha pela qual o sujeito afirma a sua liberdade, negando os obstáculos que se opõem à organização da práxis a partir das intenções subjetivas. Em suma, cada história subjetiva se desenrola no plano geral da história objetiva. Em vez de tentar estabelecer uma relação sintética entre essas duas esferas da realidade humana, a tradição filosófica se dividiu entre duas opções: ou a primazia da consciência subjetiva (substancial em Descartes, lógica em Kant), ou a primazia da realidade empírica objetiva (empiristas e positivistas). Habitualmente designamos a primeira escolha como idealismo e a segunda como materialismo.

    Para Sartre, essa dicotomia deve ser superada. Se a realidade humana é histórica, ela se dá por via da relação entre um sujeito, que é sempre um agente histórico, e o conjunto de condições objetivas que contextualizam e limitam a ação. Pois se é verdade que o homem está na história, também é verdade que é ele que faz a história. Ora, o marxismo com o qual Sartre se defronta em seu tempo caracteriza-se por uma tendência materialista que se quer radical - o que se expressa na subordinação da subjetividade, ou da consciência, às determinações materiais, principalmente de ordem socioeconômica. Sartre entende que esse menosprezo da realidade histórica do sujeito, fazendo-o simples reflexo das condições gerais, não corresponde ao pensamento dialético, que deveria pautar o conhecimento pela tensão entre elementos opostos, no caso a singularidade subjetiva e a história como contexto objetivo.

    Somente assim as duas instâncias apareceriam como efetivamente reais, exercendo função constituinte, tanto subjetiva quanto objetivamente. Os indivíduos não são meros efeitos das determinações gerais: estas somente os produzem na medida em que foram produzidas por eles. A psicanálise aparece então como a forma de tornar inteligível a história subjetiva, a contínua formação do sujeito, o modo pelo qual ele se constitui e, ao mesmo tempo, é constituído pelo meio histórico em que tem de viver.

    O conhecimento dessa formação subjetiva entui o processo de existir, a partir da liberdade originária e radical que define a subjetividade. Como se sabe, o sentido sartreano de liberdade inclui algo de fatalidade: podemos escolher qualquer coisa, me-nos a impossibilidade de escolher, como se estivéssemos destinados a ser livres, não podendo escolher não sê-lo. Constituímos a nossa subjetividade através de nossas escolhas; ao mesmo tempo somos constituídos em nossa subjetividade pelos limites dessas escolhas, ou, como diz Sartre, pela situação a partir da qual temos de escolher. A realidade humana, enquanto existência, define-se pela liberdade. Mas a realidade do indivíduo e o modo de exercício da liberdade que o define supõem sempre uma dada situação: fatores limitantes e determinantes da efetivação da liberdade.

    O componente de irrealização que é próprio do desejo também aparece no âmbito do exercício da liberdade: podemos escolher - e talvez de modo absoluto - mas a realização da escolha por meio de ações empreendidas a partir da liberdade é algo que diz respeito à contingência do mundo, ao entrecruzamento das ações, porque, se é verdade que faço a história, é verdade que o outro também a faz. Assim os limites da liberdade situada devem ser compreendidos principalmente como a questão da alteridade.

    Não se trata apenas de dizer que a liberdade do outro limita a minha, porque nesse caso já estaríamos no plano de regulações normativas da vida em comum na esfera objetiva, como sociabilidade, direitos etc. Trata-se de algo mais fundamental, que está na própria origem da constituição da identidade do sujeito. Todo indivíduo é sujeito na medida em que pode objetivar o outro; e é objeto na medida em que tem de se sujeitar à objetivação do outro. O fato de que todo sujeito é objeto para outro sujeito revela ao mesmo tempo o limite e a condição de constituição da subjetividade. Constituímos e somos constituídos. Subjetividade, identidade, liberdade só podem ser compreendidas por via dessa relação dialética entre a atividade e a passividade.

    Somente a psicanálise pode nos levar à compreensão dessa tensão fundamental que articula problematicamente o processo de identificação, isto é, a trajetória pela qual o indivíduo se torna sujeito, construindo as sínteses precárias que o revelarão a si e aos outros. E Sartre concorda com Freud acerca do peso decisivo da infância exatamente porque se trata da formação da subjetividade.

    Só a psicanálise permite, hoje, estudar a fundo o processo pelo qual uma criança, no escuro, tateante, vai tentar desempenhar, sem compreendê-lo, a personagem social que os adultos lhe impõem, só ela nos mostrará se a criança sufoca em seu pa-pel, se procura fugir dele ou se o assimila inteiramente. Apenas ela permite encontrar o homem inteiro no adulto, isto é, não somente suas determinações presentes como também o peso da sua história (1).

    Esse trecho de "Questão de método" é muito revelador quanto ao que designamos como a relação de tensão entre história subjetiva e história objetiva. Trata-se de compreender a gênese do indivíduo ou a formação do sujeito, processo que tem origem no contato inicial da criança com as expectativas que a aguardam em termos de projeto familiar, aquilo com que ela terá de se defrontar nesses primeiros momentos de vivência da situação histórica. A criança o faz no escuro, sem conhecimento, tateante: a intensidade do drama vivido na infância é proporcional ao peso que o adulto levará consigo durante a vida. A criança entra na vida e na história por um quarto escuro, povoado de fantasmas vivos que são as exigências às quais ela deve corresponder - e nesse jogo ela aposta, sem saber, a sua vida, empenha possibilidades ainda insuspeitadas.

    As metáforas da escuridão, do tateio, indicadoras de uma certa representação de si que vai nascendo no sujeito sem que ele saiba como nem por quê, levam a compreender também o ponto principal em que Sartre discorda de Freud. Não há inconsciente como reservatório pulsional dotado de certos poderes determinantes em relação ao sujeito consciente. A consciência não é um lugar, é puro ato, movimento, exteriorização, e não devemos supor que haja dados acumulados na instância do inconsciente, que seriam de alguma forma introduzidos na vida consciente, como se o processo de subjetivação fosse determinado a priori. O que nos interessa nessa interpretação, porventura demasiado esquemática, da teoria freudiana, e certamente calcada na primeira tópica, é a recusa, por parte de Sartre, de qualquer determinação irredutível à tensão entre história subjetiva e história objetiva. Sartre vê na noção de inconsciente uma espécie de condição incondicionada que viria a determinar as condutas do sujeito, uma instância interior que seria ao mesmo tempo anterior a qualquer processo subjetivo. "A psicanálise empírica determinou seu próprio irredutível, em vez de deixá-lo revelar-se por si mesmo em uma intuição evidente", diz Sartre em O ser e o nada (2), ao contrastar essa opção da psicanálise freudiana com o simples encontro do irredutível na contingência, como será o caso da psicanálise existencial.

    Tal encontro é um exercício de decifração. A condição dessa decifração é saber interrogar as condutas. Essas duas palavras, decifração e interrogação, significam que não precisamos supor, para conhecer as condutas humanas, determinações no nível de pulsões inconscientes, que seriam por definição inacessíveis ao sujeito. A consciência, por não ser coisa, não pode ser dividida em partes; tampouco as representações devem ser interpretadas como elementos contidos em algum receptáculo, parte do qual seria algo como um reservatório de pulsões. A consciência é movimento intencional de constituição de si mesma. Muitas vezes, esse movimento é obscuro, no sentido de não ser inteiramente conhecido pelo próprio sujeito. Para Sartre, essa relativa falta de clareza quanto à presença da consciência a si teria sido interpretada como inconsciente. Tal hipótese estaria então fundamentada na confusão entre uma consciência, em parte pouco clara para si mesma, e um inconsciente, que seria a parte oculta do aparelho psíquico e a sede das motivações pulsionais.

    São várias as objeções feitas por Sartre no sentido de assinalar as dificuldades da teoria freudiana quanto a esse ponto, mas a base filosófica de seu desacordo refere-se à concepção substancialista de consciência, herança do dualismo cartesiano que, reforçado pelo cientificismo do século XIX, levava a supor a necessidade de que a objetividade do conhecimento implicasse sempre a presença de uma coisa. Essa coisa nos seria em parte acessível, em parte conhecida apenas indiretamente por via de suas manifestações. Enfim, subjetividade significa consciência, mas o fato de ser o sujeito sempre consciente não lhe faculta o conhecimento absoluto de si mesmo. Daí a necessidade de um procedimento interrogante que venha a realizar, na escala do possível, a decifração do sujeito através de suas condutas. É esse o significado de psicanálise existencial. Podemos defini-la examinando quatro pontos essenciais que a constituem.

    O princípio da psicanálise existencial está na concepção de que o homem não é somatória ou coleção, mas sim totalidade. Em termos de condutas e de elementos que as compõem, isso significa que o ser humano não pode ser visto como uma aglutinação de qualidades ou atributos extrinsecamente relacionados, e sim como um conjunto sintético cuja totalidade é expressa por cada conduta e, assim, por todas as condutas, desde as mais corriqueiras até as mais complexas. Isso não significa que a totalidade do homem possa vir a ser conhecida de modo definitivo e acabado; mas devemos ver em todo e qualquer gesto a manifestação significativa dessa totalidade em si inapreensível.

    Em cada conduta ou em cada gesto o homem se revela; a psicanálise existencial tem como objetivo decifrar essas revelações para constituir um conhecimento ao mesmo tempo fundado em bases antropológico-históricas traduzíveis conceitualmente, e vinculado à experiência concreta dos sujeitos.

    Por isso o ponto de partida da psicanálise existencial é a experiência como fundamento da compreensão original que cada homem tem da condição humana, compreensão esta, evidentemente, não objetiva nem susceptível de ser enunciada formalmente, mas presente na subjetividade e na intersubjetividade como a própria condição da experiência, e das revelações que, por meio dela, alcançamos acerca de nós mesmos e dos outros. Com efeito, as manifestações da conduta humana não são eventos quaisquer, mas são assimiladas e compreendidas a partir de um valor revelador de que são especialmente dotadas.

    A partir da visão sintética da condição humana, podemos falar de algo como um método, que consistiria na comparação das condutas particulares, na apreensão de seu valor revelador e na interpretação dessas condutas como expressões simbólicas de escolhas feitas a partir da liberdade situada do sujeito. Convém salientar que o sujeito não existe antes de sua livre manifestação nas escolhas que deve realizar diante da contingência do mundo. O sujeito não existe antes que comece a elaborar a sua história, fruto da tensão entre a liberdade e os limites da situação em que cada um a exerce. A compreensão dessa história nos fornece a gênese e a estrutura da pessoa, na singularidade em que cada indivíduo vive a experiência da sua personalização.

    Sartre chegou à psicanálise exatamente para atender à necessidade de que o conhecimento atinja tanto as condições objetivas de formação do sujeito histórico quanto às condições subjetivas de singularização da experiência histórica numa história pessoal. Daí a polêmica com o marxismo, na medida em que este põe toda ênfase na objetividade histórica, ou nas condições gerais da vida histórica, menosprezando a dimensão subjetiva da experiência enquanto produção do sujeito singular. Ao aceitar que todo indivíduo é um produto histórico, devemos aceitar também que a história é produzida pelos indivíduos - o que significa fidelidade plena à dialética enquanto tensão entre as instâncias objetiva e subjetiva, mesmo que essa tensão tenha de ser vivida - e compreendida - como a contradição entre liberdade e determinação.

    Como a realidade humana é processo existencial e histórico, não podemos entender a relação entre o objetivo e o subjetivo nos termos tradicionais da oposição entre exterioridade e interioridade. Pois a interioridade subjetiva, não sendo uma entidade (alma ou coisa pensante) só pode ser um processo de formação da subjetividade. Por isso, diz Sartre que a interioridade nada mais é do que a interiorização da exterioridade. Com efeito, desde a infância e durante toda a vida, tornamo-nos sujeitos porque estamos sujeitos ao mundo que nos rodeia, aos fatos de toda espécie que configuram a nossa situação, a qual não escolhemos. Mas se por esse processo nos tornamos sujeitos é porque, da mesma forma que interiorizamos o meio exterior, exteriorizamo-nos a nós mesmos: a exterioridade nada mais é do que a exteriorização da interioridade. Se a exterioridade nos forma, na medida em que a interiorizamos, a exterioridade se forma, de alguma maneira, por nós, pelos sentidos que atribuímos às coisas e aos outros - até pelo simples fato de os representarmos para nós mesmos.

    Essa reciprocidade, que deve ser compreendida como relação dialética, permite entender que tanto o sujeito quanto a história são realidades efetivas, e que nenhuma das duas instâncias pode ser inteiramente subordinada à outra. Nesse sentido materialismo histórico e psicanálise se complementam, pois é uma exigência do conhecimento da realidade humana que ela seja conhecida como individualidade produtora da realidade histórica comum e como comunidade produtora de indivíduos historicamente definidos.

    Essa reciprocidade é, também, a única maneira de compreender a carga de universalidade que cada indivíduo traz em si, e que o faz humano e histórico, bem como o teor de singularidade da experiência individual enquanto portadora de universalidade. A universalidade que simplesmente paira sobre indivíduos que não a encarnam é apenas uma ideia abstrata; e o indivíduo que apenas reflete as determinações universais sem singularizá-las existencialmente não é mais do que um número abstrato. Cada ser humano, "na sua hora", exprime a humanidade, recriando-a na trama das escolhas que configuram o drama da existência. Na confluência da história e da psicanálise, podemos decifrar condutas e chegar a compreender algo da complexidade e dos rumos dessa aventura - talvez para tentar mudá-la.

     

    Franklin Leopoldo e Silva é professor aposentado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e professor do curso de filosofia da Faculdade de São Bento.

     

    Referências Bibliográficas

    1. Sartre, J-P. Questão de método. Editora Nova Cultural, São Paulo, 1987. (Coleção Pensadores), pg. 138.

    2. Sartre, J-P. O ser e o nada. Editora Vozes, Petrópolis, 2001, pg. 699.