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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100016 

    ARTIGOS
    PSICANÁLISE E FILOSOFIA

     

    Freud versus o contratualismo

     

     

    Rafael Rocha Daud

     

     

    As teorias do contrato social, ou contratualismo, constituem, conjuntamente, um procedimento teórico surgido no século XVII, desenvolvido principalmente por Thomas Hobbes, John Locke e, finalmente, Rousseau (1). Parece que as razões do sucesso e prevalência desse procedimento na explicação da formação e manutenção dos Estados reside em certos aspectos interessantes, cuja análise, ainda que breve, deverá nos ajudar a compreender a apropriação que Freud, e com ele a psicanálise, faz dessas ideias.

    Em primeiro lugar, cabe observar que o contratualismo cria um mito de origem para os Estados modernos. Com ele, pretende-se, a um tempo, justificar sua legitimidade e definir limites para o poder soberano. Em sua teorização típica (relevadas as diferenças entre os teóricos citados), o Estado funda-se a partir de um contrato, realizado entre indivíduos livres, os quais viviam, anteriormente, em um "estado de natureza", submetidos unicamente aos limites que se podiam impor uns aos outros, em especial por meio do uso da força física. Já com vistas a uma colaboração maior entre si e a uma limitação recíproca de suas forças, de tal forma a estarem cada qual protegidos contra a tirania de seus pares, independentemente de sua força individual, abrem mão, livres como eram, de uma parte dos direitos de que gozavam no estado de natureza, transferindo-os a um soberano, que passa a deter, entre outras, a exclusividade no uso da violência. Dá-se o nome de pacto ou contrato social à lei que institui esse poder soberano, representado pelo Estado.

    Conforme as distintas versões do contratualismo, os direitos existentes no estado de natureza - para cuja proteção o pacto social é instituído - podem ter sido atribuídos ao homem por Deus, provenientes de sua própria constituição ou ser dedutíveis racionalmente a partir da essência do caráter humano; seja como for, a hipótese base, de que se trata de direitos inalienáveis, ao menos na parcela que restou intocada e preservada pelo pacto social, tem como consequência a necessidade de enumerar tais direitos, ditos então naturais, para que tenham efeitos positivos, o que se lê, por exemplo, nas diversas Declarações dos Direitos do Homem redigidas em função das revoluções liberais.

    É forçoso notar, entretanto, que a despeito de sua influência e atualidade, o contratualismo e a hipótese dos direitos naturais, que lhe serve de corolário, continuam sendo nada além disso, ou seja, uma hipótese ou démarche teórica, devendo submeter-se às críticas que eventualmente consideremos pertinentes. Das muitas críticas dirigidas a essa teoria feitas pelos pensadores do direito e do Estado, parece-nos de superior relevância aquelas que põem em xeque precisamente o caráter natural que se atribui ao estado pré-contratual.

    Efetivamente, quando os teóricos contratualistas criam seu mito garantindo uma "continuidade entre o direito privado - que as pessoas possuem por causa de sua natureza humana - e o direito público" (2), supõem uma comunicação plausível, senão histórica, entre um anterior "estado de natureza" e o atual estado civilizado, organizado sob a soberania estatal, justificando-a ao modo como está. Entretanto, conforme observa Marx em outro contexto (3), ao explicarem o status quo, seu caráter e seu limite, referindo-o a um estado natural, perdem de vista todo o aspecto histórico de sua formação. Ainda que possa não haver naquela teoria qualquer pretensão de verdade histórica, fundar o caráter do Estado atual por apelo ao estado natural tem como consequência indevida tomar como condição eterna e fatal o que não é senão uma etapa no desenvolvimento da sociedade.

    Enunciando um pacto social como origem e fundamento da organização social em geral, inventa-se a contrapartida, logicamente necessária, do estado de natureza anterior ao pacto. O apelo feito pelos diversos teóricos, ora à origem divina, ora à essência humana dos diretos originários desse estado de natureza, revela a necessidade de encobrir o que aparece nessas teorizações como aporia. O estado de natureza, que sustenta as demais abstrações do contratualismo, revela-se uma tautologia. Não sendo observável diretamente, já que nos achamos no estado pós-contratual, civilizado, podemos apenas pressupô-lo teoricamente.

    Ora, quaisquer que sejam os pontos de partida para essa pressuposição, certo é que dizem muito mais respeito ao estado atual de coisas que ao estado de natureza propriamente dito. Este é apenas derivado, como seu contraponto, a partir do estado atual. O suposto homem natural é, assim, muito menos um ser originário que o próprio homem do Estado moderno, liberal, despido artificialmente de suas amarras institucionais. É dele que podemos esperar que seja "lobo do próprio homem", não daquele outro, do qual pouco sabemos.

    A tautologia do contratualismo está, portanto, em descrever um estado de coisas, uma condição humana abstratamente construída e, ao invés de lançá-la adiante como meta ou utopia a ser alcançada, lançá-la para trás como origem e fundamento. Em seguida, esquecer o caráter hipotético dessa construção e tomá-la como natural, inerente ao homem, para que justifique e explique as formas atuais de organização. O construto teórico ganha status de realidade atual.

     

    O contratualismo no mito do assassinato do pai da horda

    É verdade que os mitos não precisam estar em consonância com a realidade, nem isentos de tautologias e outros vícios da argumentação. Será preciso, entretanto, averiguar as consequências teóricas e práticas, ou seja, no caso da psicanálise, as consequências clínicas, desses pressupostos metodológicos.

    A abordagem operada por Freud nos ensaios de Totem e tabu (4), que nos apresenta a bela hipótese do assassinato do pai da horda primitiva, parece-nos reproduzir, em matéria e espírito, a hipótese contratualista no que esta tem de mais problemático, ao propor um mito de origem do processo civilizatório.

    Não nos interessa opor-nos à ideia de que "o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo", pois "o que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos", criando assim "os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa mesma razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo" (5).

    Entretanto, não estaria Freud reproduzindo, talvez inspirado por suas leituras, num período ainda inicial de suas investigações, o equívoco contratualista, derivando de seu próprio mito consequências que se fundam para além dele? Lembremos que Totem e tabu foi publicado em 1913, sendo portanto apenas o primeiro de uma série de textos dedicados a essa investigação, entre os quais salientamos a Introdução ao narcisismo (1914), a Psicologia das massas (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939).

    O crucial da questão reside em opor o estatuto do estado de cultura ao estado de natureza, estabelecendo, ao mesmo tempo, uma continuidade entre eles. Entretanto, em Lévi-Strauss (6) verificamos que ao estado de natureza não se atribui qualquer positividade, tratando-se tão somente de referir-se ao momento inaugural da civilização, esta sim objeto de pesquisa. O pré-cultural não interessa senão como contraste, mas sem relacionar-se propriamente com a cultura.

    Para os contratualistas, ao contrário, o estado pré-civilizatório interessa positivamente na medida em que oferece as bases sobre as quais se sustentam e justificam as condições sociais atuais, especialmente no que diz respeito ao contrato social e às normas. Um contratualista se valerá de atributos específicos do estado de natureza para sustentar, a cada vez, a falta de justificativa para a pena de morte ou a legitimidade incontestável da propriedade privada.

    Cabe notar ainda que a distinção radical estabelecida pelo contratualismo entre o estado de natureza e o estado civilizado seria antes melhor entendida como a existência de dois estados distintos de civilização, um dos quais aquela teoria visa privilegiar em relação ao outro.

    Conforme lemos em Foucault, "a passagem a uma agricultura intensiva exerce sobre os direitos de uso, sobre as tolerâncias, sobre as pequenas ilegalidades aceitas, uma pressão cada vez mais cerrada"(7). O cercamento dos campos, introduzindo a propriedade privada onde antes havia um espaço de uso comum, faz entrar para o campo das condutas juridicamente relevantes toda uma série de tolerâncias ou práticas anteriormente consolidadas, como o direito de pasto livre e de recolher lenha, para condená-las. A ordem jurídica anterior aparece como ausência de ordem, ou estado de natureza, quando referida a partir da ordem posterior.

    Freud pareceria acompanhar a démarche contratualista ao supor a existência de uma comunidade pré-cultural, desorganizada, cujas relações se fundam na "guerra de todos contra todos" (8). Apenas o compromisso entre os irmãos, após o banquete que se segue à morte do pai da horda, teria posto fim a esse estado, ao renunciarem ao lugar do pai deposto, submetendo-se, todos e cada qual, a uma lei comum que proíbe simultaneamente o assassinato e o incesto.

    A similaridade entre o mito freudiano e o mito contratualista, parece-nos, não é apenas de forma. Também no Freud de Totem e tabu o estado pré-civilizatório parece carregar uma certa positividade que é transmitida ao estado civilizado, ao modo de uma espécie de "direito natural". Tal positividade se evidencia quando Freud sustenta a necessidade da "renúncia instintual" (9) que o pacto entre irmãos passa a exigir como condição de civilização. Tal renúncia seria estruturalmente equivalente à renúncia de direitos que exige o pacto social, conforme a hipótese contratualista (10).

    No mesmo sentido, recusar-se a essa renúncia significaria, para o indivíduo, uma recusa deliberada do pacto civilizatório. Em termos clínicos, enquanto a renúncia pode resultar em neurose, sua recusa, embora em tese poupe o indivíduo da patologia, obriga-nos a considerá-lo intratável e fora do alcance da psicanálise. Sua conduta, conforme esse raciocínio, seria melhor agenciada no campo social, seja na forma de sanções morais, seja na forma de submetimento estatal (11).

    A ideia de um Freud contratualista, portanto, embora parecendo corroborar-se em alguns textos, especialmente naqueles anteriores à Primeira Grande Guerra, tem como consequência uma leitura moral do estado civilizatório e, ainda mais, a suposição de um ato de vontade envolvido na recusa ou adesão de cada indivíduo ao pacto social. Tais consequências não parecem ter sido pretendidas por Freud e serão por ele frontalmente contraditadas a partir do momento da Guerra, com as observações e reflexões que provoca, registradas em alguns textos que gostaríamos de examinar brevemente (12).

    A cooperação para nos manter aquecidos (13) Freud, analisando o mito prometeico do furto do fogo dos deuses (14), identifica nessa transgressão não um crime mas, ao contrário, a exigência de uma renúncia instintual feita aos homens no passo entre o estado de natureza e o estado de cultura. Refere-se tal renúncia, especificamente, ao impulso, de fundo viril e homossexual (15), de apagar as brasas com um jato de urina. É evidente a importância, como requisito da cultura, da manutenção das brasas acesas, passo primeiro no controle do fogo, o que inclusive permitiu o cozimento da carne e a subsequente reserva proteica necessária ao desenvolvimento da inteligência humana. Assim como o uso do pasto e a recolha da lenha, trata-se de etapas na manutenção das condições de civilização.

    É digno de nota, porém, que Freud faça referência (16) a um grupo social, o dos antigos mongóis, entre os quais essa mesma proibição, ao invés de mascarada e convertida em transgressão pelo mito, apareça explicitada em suas leis. É enganoso achar que Freud faz tal referência a fim de corroborar sua hipótese. Ao contrário, parece-me que, com ela, ele pretende salientar a disjunção radical entre os fundamentos e pré-condições da cultura, renúncias de caráter absoluto que ecoam no mito prometeico assim como no mito edipiano, e as condições materiais de uma dada civilização, de acordo com seu particular desenvolvimento tecnológico e social, que inclusive distingue graus de renúncia entre seus diferentes membros.

    À parte os antigos mongóis, nenhuma civilização necessita jamais se sustentar numa proibição ulterior contra urinar nas brasas. Que frágil nossa confiança numa tal civilização seria! Conforme o mito, trata-se de uma condição prévia, mas que não se atualiza a cada momento da cultura. Mesmo o incesto e o parricídio prescindem disso, e não porque sua proibição esteja suficientemente internalizada em nossa psique, como querem alguns, mas porque a cultura, uma vez estabelecida, já conta com os ganhos simbólicos desse passo, uma vez dado, e se transmite por essa via a todas as suas instâncias, independente das condições particulares em que se achem. Prova e exemplo disso é a circunstância, que verificamos, segundo a qual as parcelas das populações de quem se exige as maiores renúncias são também, justamente por esse motivo, as que vivem nas condições mais próximas à barbárie.

    Isso afasta radicalmente a concepção freudiana da hipótese contratualista. Para esta última, o contrato social precisa ser constantemente atualizado e reiterado, sendo passível de rompimento por um ou outro indivíduo, o qual estaria, em consequência de sua própria recusa em participar dele, desabrigado de sua proteção. Para Freud, ao contrário, estamos, para o bem e para o mal, condenados sem saída à cultura e à civilização.

    É neste sentido que devemos ler o tratamento dado por Freud à questão dos instintos a partir do período pós-Guerra. Se, por um lado, a renúncia instintual estabelece as bases da civilização, não é nunca completa. Assim, a guerra permite aos homens "atos de crueldade, fraude, traição e barbárie tão incompatíveis com seu nível de civilização, que qualquer um os julgaria impossíveis" (17).

    Julgá-los impossíveis, entretanto, é para Freud tão somente uma ilusão da qual a guerra teve o benefício de nos libertar: "nossos concidadãos não decaíram tanto [da civilidade] quanto temíamos, porque nunca subiram tanto quanto acreditávamos". Para nós, portanto, não se trata de legislar a fim de preservar a civilização, como queriam os contratualistas, mas de melhor redistribuir as renúncias, para que o excesso destas não torne insuportável a própria civilização.

     

    Rafael Rocha Daud é mestre em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em direito pela Universidade de São Paulo (USP). Psicanalista e escritor, é autor de Freud e seus fantasmas: a autoanálise e o que os sonhos dizem sobre nós e Poemas para o século XX (no prelo).

     

    Notas e Referências Bibliográficas

    1. Châtelet, F. et al. História das ideias políticas. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

    2. Châtelet, F., op. cit. p. 47. 2009.

    3. Marx, K. "Bastiat e Carey". In: Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.

    4. Freud, S. (1913). "Totem e tabu". In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

    5. Freud, S., (1913), op. cit., p. 146-7.

    6. Lévi-Strauss, C. As estruturas elementares do parentesco. 5. ed. São Paulo: Vozes, 2008.

    7. Foucault, M. Vigiar e punir. 39. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 82.

    8. Hobbes, T. Leviatán o la materia, forma y poder de una república, eclesiástica y civil. 2. ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 102.

    9. Freud, S. (1908). "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna". In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

    10. Hobbes T., op. cit., p. 107.

    11. Para uma discussão mais aprofundada dessas consequências, sugerimos a leitura de Enfraquecimento da lei ou aumento do poder punitivo? Uma reflexão acerca do discurso psicanalítico sobre a crise do simbólico na contemporaneidade (Neri, R. In: Tedesco, S.; Nascimento, M. L. (org.). Ética e subjetividade. Novos impasses no contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2009), assim também Ética e política: a psicanálise diante da realidade, dos ideais e das violências contemporâneos (Rosa, M. D.; Carignato, T. T.; Berta, S. L. In: Ágora. Rio de Janeiro, vol. IX, n. 1, jan/jun 2006, pp. 35-48) e, finalmente, nossa própria dissertação de mestrado, "Incidência da lei, norma, ideal e superego. Fundamentos para um diálogo entre direito e psicanálise" (Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013).

    12. Uma reflexão mais detida sobre essa questão ainda se faz necessária e poderia balizar-se nos textos anteriormente por nós apontados, iniciando na Introdução ao narcisismo e finalizando em Moisés e o monoteísmo. Ao invés disso, tomaremos como base dois textos menores, à moda de atalhos, permitindo-nos apontar um caminho que nos parece promissor para desenvolver este tema.

    13. Os textos freudianos em que se baseia a reflexão seguinte são A aquisição e o controle do fogo e Reflexões para os tempos de guerra e morte. O primeiro foi por nós examinado em nossa dissertação de mestrado e o segundo foi-nos trazido à atenção por Joel Birman, em sua conferência durante o V Congresso Internacional de Filosofia da Psicanálise, realizado em outubro/novembro de 2013, reforçando o ponto de vista que então sustentávamos.

    14. Freud, S. (1932). "A aquisição e o controle do fogo". In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

    15. Notemos o paralelo entre essa condição e aquela reinante na fraternidade da horda primitiva, previamente ao assassinato do pai, cf. Freud, S. (1913), op. cit., p. 144 e ss.

    16. Freud, S. (1932), op. cit., p. 182.

    17. Freud., S. (1915). "Reflexões para os tempos de guerra e morte". In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 290.