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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo enero/mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100017 

    A&E

     

    Da caridade ao welfare state: um breve ensaio sobre os aspectos históricos dos sistemas de proteção social ocidentais

     

     

    Ismael Gonçalves Alves

     

     

    Desde a estruturação dos modernos Estados ocidentais, a assistência aos necessitados tem sido um dos principais focos de atuação governamental destinado às parcelas mais pobres da população. Buscando controlar e dirimir os impactos negativos ocasionados pelas mudanças estruturais da sociedade capitalista, as administrações públicas paulatinamente passaram a se dedicar a um espaço que até então era exclusivo da Igreja Católica, o auxílio aos miseráveis.

    Desde a Idade Média, dar esmolas e amparar os indigentes fazia parte de um conjunto de práticas cristãs associadas à bem aventurança e à redenção dos pecados. Difuso e desorganizado, o socorro aos desvalidos era exercido de maneira individual e estava simbolicamente ligado à purgação das iniquidades, ou seja, ajudar aos pobres significava, antes de tudo, a salvação da alma por meio da boa obra, e não uma preocupação social com a pobreza. De acordo com Thompson (1), no período medieval, o pobre - e todas as mazelas inerentes à sua condição de vida, doenças, fome, privação - se firmou no imaginário social como alguém digno de piedade e misericórdia. A pobreza estava envolta por uma mística que despertava sentimentos de caridade e compaixão nos mais afortunados.

    Segundo a ótica religiosa, os pobres adquiriram uma funcionalidade específica no interior da sociedade cristã, pois o ato de dar ou receber a esmola constituía uma espécie de contrato social que garantiria ao benfeitor um status privilegiado dentro do cristianismo, deixando-o mais próximo da salvação. Dessa forma, não existia a intenção de erradicar a pobreza, mas de manobrá-la. Os indigentes deveriam existir e tinham a obrigação de permanecer em tal condição social, para que, cotidianamente, a sociedade pudesse fazer, com sucesso, seu ato de contrição. O que na Antiguidade era visto como solidariedade ao próximo tornou-se, com o cristianismo, ato de caridade, que, em conjunto com a fé e a esperança, formaram as três virtudes teologais.

    Solapada por inúmeras mudanças estruturais, como o início da urbanização e as alterações nos sistemas econômicos e monetários, a sociedade ocidental europeia do século XVI presenciou um câmbio significativo de suas estruturas de assistência que, juntamente com a pobreza, receberam um novo status. Nesse contexto, a figura social do pobre perdeu sua aura mística. A pobreza passou a ser associada às mazelas urbanas - cabendo ao poder público, em conjunto com a Igreja, prover os meios de subsistência dessas populações. Segundo Helena Mouro (2), a nova realidade imposta pelas mudanças políticas e econômicas desse período forçou a reestruturação dos sistemas de caridade, que deixaram de ser progressivamente praticados de maneira meramente informal, episódica e desorganizada, para serem concretizados mediante uma prática que poderia ser reproduzida e organizada de acordo com as necessidades sociais de controlar determinadas camadas da sociedade.

    Dessa forma, a esmola deixava de ser oferecida diretamente ao pobre, e passava a ser administrada por grupos religiosos dedicados à caridade, objetivando criar mecanismos que permitissem que a pobreza fosse regulada enquanto modo de vida e controlada como problema social. Essa nova dinâmica em torno dos necessitados fez com que a sociedade europeia assistisse à difusão dos leprosários e dos hospitais urbanos que procuravam afastar o pobre e suas marcas da indignidade e fracasso do convívio comum, limpando as cidades de seus traços degradantes (3).

    Se num primeiro momento a pobreza era santificada por se reportar ao desapego material e refletir as virtudes de Cristo, sob a nova ética do labor, essas concepções mudaram. O pobre passou a ser classificado de acordo com sua invalidez ou sua falta de integração ao processo produtivo. Para os indivíduos incapazes de trabalhar ou que não possuíam renda suficiente para sustentar a si mesmos e aos

    seus, continuou a ser promovida uma assistência baseada na compreensão e na piedade. No entanto, para aqueles cuja pobreza advinha de sua suposta inadaptação ao sistema laboral ou que mendigavam por escolha própria, mesmo sendo fisicamente saudáveis e úteis para o trabalho, foi destinado "um tratamento social que se particularizou por ser descapitalizado na sua natureza religiosa e por ser politicamente discriminatório" (4).

    Dentre as diversas mudanças que sacudiram o Ocidente a partir do século XVI, podemos afirmar que a Revolução Industrial foi aquela que desencadeou o mais importante processo de precarização da vida, impulsionando o surgimento dos sistemas estatais de ajuda. O descobrimento de novas técnicas laborais aplicadas a diversos segmentos produtivos impulsionou um vertiginoso crescimento econômico dos países europeus e também da América anglo-saxônica. Esse processo acelerado de desenvolvimento industrial provocou a rápida estafa dos grandes centros urbanos, nos quais uma grande massa de trabalhadores diuturnamente se fixava em busca de emprego. De acordo com Eric Hobsbawn (5), esse contexto de vertiginoso progresso material intensificou a existência de uma série de mazelas urbanas que envolviam principalmente o proletariado. As péssimas condições de trabalho nas fábricas, os baixos salários e as moradias precárias, mostraram-se insuficientes para garantir um modo de vida digno, provocando uma situação de calamidade sanitária. Esse descompasso, entre desenvolvimento econômico e precarização da vida, provocou inúmeras críticas e reivindicações por parte do operariado, que via as benesses do capitalismo atingirem apenas a burguesia. Foi nesse clima de insatisfação popular que as primeiras medidas de assistência social para a população mais pobre, partindo do Estado, se articularam.

    Da assistência à estruturação do Welfare State No contexto de paulatinas mudanças provocadas pela estruturação da sociedade moderna, a provisão de serviços sociais tornou-se gradativamente um direito social prestado pelo Estado com a finalidade de garantir condições mínimas de qualidade de vida para todos os cidadãos. Visando atender às parcelas mais precarizadas de sua população - como idosos e crianças - uma das primeiras leis de proteção social instituídas em países capitalistas avançados foi a Poor Laws britânica. A Poor Laws ou Lei dos Pobres era um conjunto de regras assistenciais que visava fornecer auxílio aos mais necessitados. Tanto a Old Poor Law (1601) como a New Poor Law (1834), tinham por objetivo principal prestar assistência social para aqueles indivíduos que comprovadamente não possuíam condições de sustentar a si próprios e nem parentes e amigos a quem pudessem recorrer. O principal critério eletivo para o recebimento de tais auxílios era a pobreza extrema e, para recebê-los, seus beneficiários deveriam prestar serviços obrigatórios em instituições de caridade. Com forte caráter estigmatizante, ambas as leis ficaram sobre a administração das igrejas e das instituições de caridade que vasculhavam e vigiavam a vida de seus beneficiários como uma forma de garantir que os mesmos se adequassem às normas e aos padrões do mundo burguês. Alcoólatras, prostitutas e mendigos estavam fora dessa assistência, pois seu estilo de vida era considerado imoral e pouco dado ao trabalho, o que os qualificava como indivíduos preguiçosos e indignos da providência pública.

    Esse tipo de auxílio contribuiu para a construção de uma espécie de gradação da pobreza, um sistema social no qual a ajuda era destinada exclusivamente a indivíduos inválidos, velhos e doentes, com impedimentos e restrições a parentes. Os desempregados ou aqueles que, por algum motivo, não quisessem trabalhar deveriam ser socialmente integrados através de sua inserção compulsória no mercado laboral, haja vista que naquele momento o trabalho representava uma tênue linha que separava os socialmente aceitos dos outros.

    É importante salientar que nem a preocupação das elites com a "questão social" nem o início dos programas de bem-estar na Europa deram respostas às novas demandas populares ou a problemas sociais recém-criados pela industrialização, urbanização e mudanças concomitantes à organização familiar. Segundo Marta Arretche (6), ainda que alguns países tenham dado origem a programas de seguro social no final do século XIX - Alemanha, França e Inglaterra - e que políticas de proteção às mulheres, aos incapacitados e aos idosos tenham se desenvolvido em muitos países ocidentais no início do século passado, é incontestável que o fenômeno do welfare state sofreu uma incrível expansão, e até mesmo institucionalização, no período pós-Segunda Guerra. As novas contingências sociais, surgidas após o conflito, pressionaram os governos centrais a generalizarem e universalizarem os sistemas de proteção social que, por sua vez, articularam um conjunto de políticas estatais, assegurando o acesso da população aos sistemas de saúde e educação de ampla cobertura e a programas habitacionais, entre outros.

    O termo welfare state (estado de bem-estar), como conhecemos hoje, é uma expressão de tradição anglo-saxônica utilizada para designar as políticas sociais instituídas para garantir o "mínimo" de proteção contra velhice, invalidez, problemas de saúde, desemprego e outros problemas relacionados à insuficiência de renda. Conforme ressalta Ann Orloff (7), welfare state foi cunhado pelos britânicos em 1939 para se contrapor ao "warfare state" nazista, agrupando, sob um mesmo mecanismo institucional, seguros, assistência social e programas de cidadania universal. Após a derrota do nazi-fascismo, a Grã-Bretanha e a maioria dos países europeus reformaram e ampliaram seus sistemas de proteção social, com a finalidade de prover uma cobertura assistencial universal para seus trabalhadores.

    No entanto, essa forma de se referir aos programas de gastos sociais é bem mais recente que do que sua análoga francesa l'etat de providence. De acordo com o cientista político Pierre Rosanvallon, esta última foi usada no ano de 1860, pelo deputado republicano francês Émile Ollivier, para criticar a constante intromissão estatal na esfera da vida pessoal. Logo depois, o termo é retomado pelo economista Èmile Laurent, que defendia a atuação de um Estado erigido sobre uma espécie de providência, entendido por ele como uma alternativa às associações previdenciárias existentes, colocando o Estado como principal mediador dos interesses individuais e coletivos.

    Já o termo alemão wohfahrstaat, juntamente com sozialstaat, é utilizado desde a década de 1870 para se referir às reformas dos sistemas de proteção social implementadas a partir do período bismarckiano (8). Essas mudanças, em sua grande maioria, foram uma das respostas governamentais ao crescente poder de grupos organizados de trabalhadores que pressionavam o Estado por melhorias sociais, levantando tais questões como bandeiras políticas. Frente ao aumento e popularidade dos grupos de esquerda, o governo imperial alemão resolveu se adiantar aos socialistas e comunistas, concedendo alguns benefícios e os estendendo ao maior número possível de cidadãos. Assim, em 1883 foi aprovada no parlamento alemão a Lei de Seguro Saúde, que tinha por objetivo reunir sobre um único mecanismo securitário de assistência as diferentes categorias de trabalho: operários, artesãos, agricultores, aprendizes, mão de obra temporária, entre outros. Nos anos seguintes a proteção social foi ampliada ainda mais, garantindo também o seguro acidente e pensões por velhice e invalidez. Em 1911, esses benefícios foram reunidos sob a égide da Lei de Consolidação de Seguro.

    De acordo com configuração articulada no final do século XIX e início do século XX, tanto nos programas de proteção social instituídos na Alemanha e na Grã-Bretanha, quanto em outros países, observa-se um claro vínculo entre trabalho e direitos sociais. Assim, só eram considerados cidadãos de plenos direitos aqueles que, de alguma forma, estivessem alinhados ao mercado laboral e que contribuíssem economicamente para o desenvolvimento da nação.

    No caso britânico e norte-americano, os valores liberais do laissez-faire foram hegemônicos durante todo o século XIX e XX, mitigando a atuação estatal com relação à assistência à população. O Estado só interviria em último caso, quando todas as possibilidades de ação individual estivessem esgotadas. Conforme aponta Pat Thane (9), tanto a Old Poor Law quanto a New Poor Law tinham a capacidade de fornecer uma ampla gama de serviços, mas que eram estritamente destinados àqueles considerados muito carentes e que podiam comprovar a inexistência de outras possibilidades assistenciais, como o trabalho remunerado, ajuda da família, amigos ou caridade. A esmagadora maioria dos assistidos eram pessoas idosas, viúvas e crianças - reconhecidos como pobres "merecedores".

    Buscando aperfeiçoar seu sistema securitário e para garantir maior estabilidade das relações entre mercado e trabalho, nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha organizou novas medidas sociais de proteção (welfare policy) que incluíam indenizações aos trabalhadores (1906), pensões de velhice (1908), seguro saúde e desemprego (1911). Essas inovações surgiram sob comando do Partido Liberal britânico, intelectual e politicamente guiado pelos valores do neoliberalismo, estendendo-se posteriormente para outros países de origem anglo-saxônica.

    Embora existam menções ao welfare policy (políticas de bem-estar), desde meados do século XIX, o termo welfare state popularizou-se no meio político-social entre as décadas de 1940 e 1950 através do Plano Beveridge (10). Fruto de um trabalho minucioso sobre a proteção social e seguridade na Grã-Bretanha, esse plano apresentava, em 1942, os resultados e propostas de ação de um comitê interministerial criado para analisar a situação e a abrangência das políticas assistenciais em território britânico. O plano levou o nome do economista William Beveridge que coordenou os trabalhos do comitê. O relatório apresentado para o gabinete de Churchill identificava cinco grandes entraves para a reconstrução e desenvolvimento da sociedade: miséria, doença, desamparo, ignorância e ociosidade; aconselhando adequação e classificação dos benefícios conforme os diferentes meios de vida e segmentos sociais.

    Cabe salientar que, mesmo que os programas de assistência social tenham se transfigurado, buscando abarcar o maior número possível de pessoas e profissionalizar sua gestão, boa parte das políticas sociais arquitetadas nos séculos XIX e XX privilegiaram a ação do mercado e o sucesso individual, em detrimento do Estado. Como descreve Michel Foucault (11), em sua forma fundamental as políticas sociais não deveriam contrabalançar as políticas econômicas ou compensá-las; não poderiam ser mais generosas quanto maior fosse o desenvolvimento econômico. Este sim é que deveria assegurar que todos os indivíduos alcançassem um nível de renda que garantisse o acesso a seguros individuais, a propriedade privada, a capitalização individual ou familiar, com as quais se poderia absorver por conta própria os riscos gerados na sociedade capitalista. Segundo essa lógica, cada indivíduo, ao perseguir seus impulsos pessoais, asseguraria o interesse coletivo, contribuindo para o aumento da riqueza nacional.

    Por fim, apesar de suas intenções homogeneizadoras e a progressiva diminuição de seu aspecto caritativo, os sistemas de proteção social constituíram-se em um emaranhado operacional que abarca desde as ajudas tradicionais onde o Estado não é o agente interventor - cabendo à sociedade civil a administração da assistência - até os complexos sistemas de redistribuição comandados pelo Estado e sua burocracia especializada. Assim, podemos afirmar que o estado de bem-estar que conhecemos hoje é fruto de uma longa construção histórica e que nem sempre possui a mesma força ou as mesmas estruturas nas variadas nas sociedades onde existe, variando de acordo com determinados contextos históricos e com determinadas estruturas socioeconômicas.

     

    Ismael Gonçalves Alves é historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico (PPGDS) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc).

     

    Referências Bibliográficas

    1. Thompson, E. P. "Folklore, antropología e historia social". In: Revista Historia Social. Nº.3. Valencia: Fundación Instituto Historia Social, 1989. p. 63-86.

    2. Mouro, H. "Sistemas e modelos de proteção social: da caridade à assistência". In: Revista Interacções. Nº.5. Coimbra: ISMT, 2003. p. 131-159.

    3. Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2010.

    4. Mouro, H., op. cit. p. 138.

    5. Hobsbawm E. J. A era do capital - 1848-1875. 5 ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2000.

    6. Arretche, M. T. "Emergência e desenvolvimento do welfare state: teorias explicativas". Boletim Informativo e Bibliográfico das Ciências Sociais. Nº 39. Rio de Janeiro: Anpocs, 1995. p. 01-65.

    7. Orloff, A. S. Social provision and regulation: theories of states, social policies and modernity. (Working Papers Series). Illinois: Institute for Policy Research Northwestern University, 2003. p. 01-44.

    8. Nogueira, V. M. R. "Estado de bem-estar social - origens e desenvolvimento". In: Revista Katálysis. N 5. Jul/Dez. Florianópolis: UFSC, 2001. p. 89-103.

    9. Thane, P. "Histories of welfare state". In: Today's Welfares. University of London. s/d, s/l. 10. Cf. Gladstone, D. (Org). Before Beveridge: welfare before welfare state. Wiltshire: The Comwell Press/Civitas, 1999)

    11. Foucault, M. Nascimento da biopolítica: Cursos do Collège de France, 1978-1979. São Paulo: Martins Fontes, 2008.