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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.2 São Paulo Apr./June 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000200002 

    TENDÊNCIAS

     

    A nova legislação de acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais

     

     

    Beatriz de Bulhões Mossri

    Doutoranda em política científica e tecnológica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora de políticas e gestão da biodiversidade no UniCeub e interlocutora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Congresso Nacional

     

     

    Após 20 anos de debates, o país está perto de ter uma lei que regule o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso aos conhecimentos tradicionais associados e a repartição de benefícios. Uma nova proposta de marco legal tramita no Congresso Nacional, em regime de urgência, e está na iminência de ser aprovada. É uma proposta que traz avanços, mas que não obteve consenso entre os diversos segmentos sociais, em especial no que diz respeito ao uso do conhecimento tradicional dos povos indígenas e comunidades tradicionais. No intuito de contribuir com o debate, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) tem participado ativamente dos debates públicos e se manifestado publicamente quanto a suas posições, apresentando propostas que equilibrem as preocupações e demandas das diferentes áreas da ciência, ao mesmo tempo que respeite e proteja os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.

    O Brasil, país com maior biodiversidade do mundo, é parte da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) desde 1994 e, com isto, assumiu o compromisso de internalizar seus objetivos e diretrizes por meio de medidas legislativas, políticas ou administrativas. Os objetivos da convenção são a conservação da biodiversidade, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição, justa e equitativa, dos benefícios advindos dessa utilização, este último por meio do acesso adequado aos recursos genéticos e da transferência de tecnologia. Em 2010, a 10ª Conferência das Partes da CDB aprovou o Protocolo de Nagoia, acordo internacional vinculante, que define diretrizes para operacionalizar este que se configura como o terceiro objetivo da convenção. Em outubro de 2014, o protocolo entrou em vigor e, até o momento, já conta com 59 partes. O Brasil assinou o protocolo, mas ainda não o ratificou. Houve uma demanda do setor de agronegócios de que o Brasil aprovasse a legislação de acesso, antes de assumir novos compromissos ao ratificar o protocolo.

    A primeira tentativa de regulação dessa matéria no Brasil foi em 1995, quando a então senadora Marina Silva apresentou um projeto de lei (PLS 306/1995) que até hoje encontra-se no Congresso Nacional. Em 2000, para responder uma denúncia dos termos do contrato, considerado lesivo ao país, entre uma instituição nacional e uma multinacional farmacêutica, o governo federal editou a Medida Provisória 2052 que, após sucessivas reedições, vigora há quase 15 anos como MP 2186- 16/2001. Nesse período, várias tentativas ocorreram para transformar a MP em uma lei, com maior segurança jurídica, mais clara e menos burocrática, e com menor custo de transação, pois tal MP foi severamente criticada por diferentes segmentos da sociedade brasileira, entre eles a comunidade científica.

    Em junho de 2014, a presidente da República encaminhou uma nova proposta de marco legal para o Congresso Nacional em regime de urgência constitucional, ou seja, cada casa legislativa tem 45 dias para analisar e votar a proposta do executivo e, caso isso não aconteça, o projeto tranca a pauta da casa em que se encontra o projeto. Entendendo que esse ato presidencial não iria permitir o debate com os diferentes segmentos sociais impactados por essa lei, a SBPC solicitou, em 17 de julho, a retirada da urgência. Outras várias instituições, em seguida, fizeram o mesmo.

    No entanto, a urgência foi mantida. Na Câmara dos Deputados, a proposta tramitou como PL 7735/2014. Em agosto de 2014 expirou o prazo para análise dos deputados mas, devido à falta de consenso em relação à proposta do executivo, o projeto de lei só foi aprovado como substitutivo (projeto alterado pelo relator, deputado Alceu Moreira) em 11 de fevereiro de 2015.

    É fato que o projeto aprovado na Câmara traz avanços em relação às atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) com patrimônio genético, retirando a necessidade de anuência prévia do proprietário da terra onde se obteve o componente do patrimônio genético e de autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), o que agilizará enormemente a pesquisa no país. As atividades de P&D poderão ser iniciadas e, antes da remessa de amostra de patrimônio genético, do requerimento de qualquer direito de propriedade intelectual, da divulgação dos resultados, parciais ou finais, em meios científicos ou de comunicação, ou da comercialização de produto intermediário desenvolvido em decorrência do acesso, o pesquisador deverá realizar o cadastro das suas atividades por meio eletrônico. Isto se deve, em parte, à mudança do conceito do projeto, estabelecendo que o patrimônio genético é "bem de uso comum do povo", e que a União será a única provedora e gestora de tal patrimônio, e não mais o titular da terra. Outro avanço do projeto aprovado foi a inserção, em seu escopo, dos recursos genéticos para alimentação e agricultura. Na proposta encaminhada pelo executivo, esses recursos estavam fora do escopo do projeto. Ficariam ainda no âmbito da MP 2186-16/2001, o que deixaria a pesquisa agrícola sob as velhas regras burocráticas. Também se considera um avanço a mudança na composição do CGen, incluindo como membros efetivos plenos os representantes da comunidade científica, empresas, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, criando um espaço de negociação e de controle social.

    No entanto, o texto aprovado pelos deputados, ao tratar de conhecimentos tradicionais, desrespeita claramente os direitos dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, como também traz uma série de novos conceitos difíceis de serem aplicados na prática. Além disso, o projeto também abriu a possibilidade de que pessoa jurídica estrangeira realize atividades de P&D sem estar associado a uma instituição nacional de pesquisa científica e tecnológica, ponto fortemente criticado pela SBPC, pois, além de ameaçar a soberania nacional e colocar em risco os interesses nacionais, não estimula a parceira internacional e a cooperação científica e tecnológica, a apropriação do conhecimento gerado sobre a biodiversidade brasileira, como também vai na contramão de programas nacionais, como o de internacionalização da educação e da ciência brasileira.

    Já no Senado, a proposta aprovada na Câmara tramita, concomitantemente, em cinco comissões, como PLC 2/2015. O projeto recebeu 116 emendas na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), além de outras nas demais comissões. Dos cinco relatores, os senadores Jorge Viana, Douglas Cintra e Telmário Mota alteraram a proposta da Câmara, aperfeiçoando o texto com a incorporação de demandas dos grupos que não participaram da discussão no âmbito do executivo. Mas o plenário terá ainda que analisar e votar os relatórios. Se os senadores aprovarem alterações no texto da Câmara, o projeto volta a ser analisado pelos deputados, somente no que se refere às alterações do Senado. Se aprovado como veio da Câmara, vai para sanção presidencial, e aí teremos uma nova legislação, que necessitará ser regulamentada em diversos pontos para que seja implementada.

    Uma das críticas mais recorrentes em relação à proposta do executivo foi a de que, no processo de elaboração, o governo priorizou a participação das empresas, o que refletiu em um texto com claros interesses empresariais e, ao mesmo tempo, que o texto ignorou os interesses dos provedores de conhecimentos tradicionais associados, além de ferir direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais assegurados em tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, como a CDB e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre povos indígenas e tribais. E, ao encaminhar a proposta para o legislativo em regime de urgência, o governo insistiu no equívoco de coibir o debate de forma mais ampla com a sociedade brasileira.

    Só o tempo nos dirá se a nova legislação promoverá a conservação e o uso sustentável da biodiversidade brasileira e do conhecimento tradicional associado, de modo a gerar, como se anuncia, benefícios efetivos para serem repartidos. É o que todos esperam.