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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000200007 

    NOTÍCIAS DO MUNDO
    LIVRE DE AGROTOXICOS

     

    Crise impulsionou criação de modelo sustentável na agricultura de Cuba

     

     

    Chris Bueno

     

     

    Um modelo de agricultura que maximiza o uso de produtos ecologicamente corretos, minimiza o uso de agrotóxicos e pesticidas químicos, recicla os compostos orgânicos, promove o uso adequado de biofertilizantes e enfatiza o uso sustentável dos recursos biológicos. Parece utopia, mas não é. Este é o modelo de agricultura adotado em Cuba desde meados da década de 1980, quando o país teve que modificar sua produção agrícola após uma grave crise econômica, que colocou em risco a segurança alimentar da população, cuja ingestão de calorias chegou a cair quase 65%. O governo cubano buscou, então, formas alternativas para aumentar a produção de alimentos. Assim, incentivou o cultivo em qualquer espaço vazio nas cidades: pátios, praças e casas abandonadas passaram a ser tomados por hortas. O governo ainda permitiu que famílias ou cooperativas utilizassem terrenos públicos de graça para produzir técnico, sementes e ferramentas a um custo mínimo. Além disso, incentivou as instituições públicas a se envolverem na agricultura - escolas, hospitais, asilos e até fábricas passaram a plantar hortas. Foi assim que surgiram os "organopônicos", hortas em espaços públicos produzidas por cooperativas e famílias. "Em resposta a essa situação de crise, iniciou-se um processo de transformação das relações de produção, o que possibilitou o desenvolvimento das forças produtivas. Entre as medidas adotadas está a criação das Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBPC)", explica a bióloga Lilliam Otero, pesquisadora da área de produção vegetal da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp) e ex-pesquisadora do Instituto de Investigações em Fruticultura Tropical, de Cuba.

     

     

    Entretanto, por conta do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba, essas hortas urbanas não podiam contar com insumos como agrotóxicos ou fertilizantes para garantir sua produtividade. Assim, as famílias e cooperados tiveram que buscar outras soluções. Restos de comida são usados para produzir compostos que alimentam minhocas usadas para produção de húmus. Já o controle de pragas é feito utilizando recursos biológicos. Algumas cooperativas criam joaninhas e louva-deus e até utilizam bactérias para combater alguns insetos, além de produzir inseticidas naturais extraídos do alho e da cebola para controlar fungos e doenças das plantas. As hortas chegam a produzir mais de 50 tipos de produtos, entre vegetais, frutas, plantas medicinais e ornamentais. Hoje, há mais de 10 mil hortas urbanas em Cuba. "Existem várias modalidades de produção de agricultura urbana em Cuba: organopônicos, hortas intensivas, pátios, parcelas etc. Os organopônicos e hortas intensivas constituem as modalidades mais destacadas nos últimos anos em todo o país, contribuindo de maneira significativa para o resgate do acervo hortícola, sendo considerado um exemplo de como se deve acionar, de forma conjunta, os cientistas e os produtores", apontam Adriana Maria de Aquino e Renato Linhares de Assis, pesquisadores do Embrapa Agrobiologia, no artigo "Agricultura orgânica em áreas urbanas e periurbanas com base na agroecologia".

    O PASSADO NO PRESENTE Mas as mudanças não ocorreram apenas nas cidades. O campo também teve que mudar seu modo de produção. Os agricultores tiveram que diminuir a utilização de insumos químicos e buscar agentes de controle biológico integrados, desenvolver procedimentos para recuperar energia e melhorar a disponibilidade de espécies de planta (especialmente as nativas). Um exemplo dessas mudanças foi a adoção de equipamentos com tração animal (como o boi), utilizados para arar, fertilizar o solo e que ainda podem entrar nos campos quando a terra está muito molhada, no lugar dos tratores. "A crise econômica na qual Cuba mergulhou tornou necessária a revitalização de antigas práticas. Por exemplo: em Cuba, o conceito de 'conuco' significa tradicionalmente uma pequena parcela agrícola ou horta típica da estratégia alimentar familiar. Essas práticas foram então acolhidas, resgatadas, apoiadas e estimuladas pelas ações de instituições estatais, científicas, não governamentais etc.", explicam Mario González Novo e Gunther Merzthal, da Rede Latino-Americana de Pesquisas em Agricultura Urbana, do Peru. Todas essas mudanças foram deflagradas pela crise que atingiu o país em meados de 1980. Até então, Cuba copiava o modelo soviético na agricultura: os sistemas agrícolas no país estavam fortemente "industrializados". A ilha caribenha estava entre os países que mais utilizavam tratores e fertilização nitrogenada no mundo. Além disso, o país pouco diversificou sua produção agrícola durante as décadas anteriores. A maior parte dos insumos agrícolas e produtos alimentícios eram importados. Quando o regime socialista começou a entrar em crise e com a ampliação do embargo comercial, no governo do presidente Bill Clinton, na década de 1990, a entrada de insumos agrícolas passou a ser dificultada. Com a queda da União Soviética - principal fornecedora de alimentos, combustíveis e insumos agrícolas - a crise se agravou e tanto a produção agrícola como a disponibilidade de alimentos caíram a níveis alarmantes. "O fim dessa cooperação teve um impacto muito negativo na economia do país. As importações cubanas diminuíram 70% entre 1989 e 1993", diz Otero. "Outro fator que influenciou foi a expansão das medidas econômicas, como a Lei Torricelli, que proibia o comércio entre Cuba e filiais de empresas norte-americanas estabelecidas em outros países, criava sanções aos países que concedessem assistência econômica a Cuba, impedia que empresas norteamericanas pudessem importar produtos com matérias-primas cubanas e proibia a venda para Cuba de mercadorias produzidas em outros países que tivessem mais de 10% de matérias-primas de origem norte-americana", complementa.

    SUPERAÇÃO A crise, no entanto, somente agravou um cenário extremamente vulnerável, cujo modelo de produção agrícola já vinha dando sinais de impacto negativo na economia, na sociedade e na natureza, atestados pelo alto nível de desflorestamento, salinização, erosão e perda da fertilidade dos solos. Estava cada vez mais evidente que aquele modelo de agricultura não gerava autonomia ao país e que a dependência de insumos importados devia ser reduzida. Além disso, a complexa estrutura de pesquisa agrícola não era muito eficiente. "Para acelerar os processos de inovação e transmissão de experiências, adotou-se a metodologia 'de agricultor para agricultor'. Devido à grande receptividade que esse método teve, foi proposta a integração e o desenvolvimento de um 'Movimento Nacional de Produtores Agroecológicos'", conta Otero. Paralelamente, a pesquisa agrícola também foi incentivada. Centros de pesquisa, capacitação e fomento foram criados e o governo criou o Grupo Nacional de Agricultura Urbana (Gnau), composto por pesquisadores e produtores, com o papel de elaborar estratégias produtivas calcadas nos princípios da agroecologia. Uma década depois do início da crise, a agricultura cubana duplicou sua produção e a disponibilidade de alimento retornou a níveis aceitáveis. Com isso, Cuba deu um passo importante rumo à soberania de seu sistema de produção e fornecimento de alimentos.

    DESAFIOS A recuperação econômica de Cuba e a abertura comercial, no entanto, podem ameaçar esse sistema. Muitas empresas já demonstraram interesse em se estabelecer na ilha ou reatar as relações comerciais, o que pode acabar influenciando o retorno às práticas intensivistas e industrializadas. Hoje, o país importa cerca de 50% dos alimentos de que necessita. "A diversificação, a descentralização e a busca pela autosuficiência alimentar são tendências fundamentais da agricultura cubana. Porém, essas tendências devem ser sistematicamente promovidas pelas instituições científicas e pelas organizações políticas para garantir que o setor agrícola contribua significativamente para uma economia viável. Se a recuperação econômica se converte num pretexto para regressar às velhas práticas, então tudo o que se alcançou nos últimos anos sofrerá um impacto negativo", alerta Otero. Na opinião de Otero, o exemplo cubano demonstra que um modelo sustentável de agricultura é possível e também necessário, especialmente para os países de menor renda. Mas essas mudanças exigem uma decisão consciente e um esforço coletivo para se consolidarem. "A verdade é que não existem receitas prontas. Se o modelo cubano não pode simplesmente ser exportado para outro país, ele pode servir de exemplo. Sempre que houver vontade política em correspondência com os princípios de conservação, é possível desenvolver um modelo menos dependente de insumos químicos externos e isto é o melhor ensinamento que Cuba pode dar", finaliza.