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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.2 São Paulo Apr./June 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000200009 

    ARTIGOS
    DESLOCAMENTOS

     

    Apresentação: deslocamentos, desigualdades e violência do estado

     

     

    Bela Feldman-Bianco

    Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora nível 1 do CNPq, coordenadora do Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia e co-coordenadora do Comitê Antropologias Mundiais da Associação Americana de Antropologia, entre outras atividades

     

     

    Vivemos hoje num mundo globalizado caracterizado por intensos deslocamentos sociais e ecológicos, expulsões, brutalidade e precariedade da vida humana (1). Numa conjuntura marcada por um capitalismo corporativo altamente destrutivo, esses deslocamentos e expulsões refletem o surgimento de uma nova lógica de exclusão social que está ampliando as desigualdades e criando contingentes de despossuídos (2). Simultaneamente à predominância de ideologias e retóricas multiculturalistas ancoradas em "direitos humanos" e no humanitarismo, produzem-se categorias sociais e políticas de governança tecnocrata de securitização, criminalização e desumanização da pobreza.

    No cenário atual, os movimentos de capital, signos e a comunicação virtual aparentam dissolver fronteiras, enquanto certos fluxos de pessoas, produtos e lugares são focos de políticas restritivas e de controle seletivo. Estimativas da ONU indicam que o número de deslocados transnacionais alcançou cerca de 300 milhões em 2011. Esse número torna-se ainda mais elevado quando adicionamos os cerca de 740 milhões de migrantes internos, muitos dos quais foram removidos por projetos desenvolvimentistas e interesses imobiliários no campo e nas cidades. Não por acaso, questões relacionadas à circulação de migrantes transnacionais, refugiados e solicitantes de refúgio são presentemente consideradas prioritárias nas agendas públicas de agências multilaterais e de governos nacionais. Igualmente, os deslocamentos internos, seja no que se refere à remoção de territórios ou de pessoas consideradas à margem do Estado, se tornaram foco de políticas locais e nacionais que refletem agendas multilaterais.

    A compreensão desses processos e seus aparentes paradoxos requer novos olhares e paradigmas capazes de se contraporem à imanente fragmentação positivista que divide o conhecimento em diferentes campos e temas de estudos e reifica o Estado-nação. Assumindo esse desafio, apresentamos, neste Núcleo Temático, cinco artigos que, em seu conjunto, trazem à tona uma perspectiva global dos deslocamentos sociais como porta de entrada para se entender e expor os processos em curso (3). Quer seja examinando questões relacionadas às migrações transnacionais, deportações, tráfico de bens ilícito, tráfico de seres humanos, refúgio, desaparecimentos e assassinatos em favelas e periferias urbanas ou, ainda, em antigos regimes ditatoriais, procuramos discernir as relações entre essas diferentes mobilidades e imobilidades e a produção de desigualdades sociais. Buscamos, assim, lançar as bases comparativas para uma melhor compreensão de novas e antigas lógicas de exclusão social produzidas pelo capitalismo contemporâneo.

    Esse paradigma foi elaborado a partir de uma série de simpósios internacionais que reuniram estudiosos cujas pesquisas históricas ou contemporâneas focalizaram diversos tipos e escalas dos deslocamentos sociais em várias partes do mundo, seja na América do Norte, América do Sul, Ásia, Austrália ou Europa (4). As análises e discussões sobre essas investigações indicaram a inseparabilidade entre deslocamentos, racialização, colonialismo, capitalismo e suas estruturas de dominação e desigualdades que transpassam os Estados-nações. Implicaram também na necessidade de teorizar raça e racismo focalizando um conjunto de atores diversos, sejam eles indígenas, afrodescendentes, imigrantes ou refugiados, entre outras categorias, que igualmente tendem a ser estudados separadamente. Dado o protagonismo desses personagens, tornou-se essencial examinar as suas ações, reações e mobilizações sociais no que tange às ambiguidades entre acesso diferencial e exclusão aos direitos humanos e de cidadania. Como corolário, passamos a explorar as relações intrínsecas entre deslocamentos, desigualdades, securitização, militarização e violência de Estado e as mobilizações sociais, através de tempos e lugares.

    Informado por esses diálogos transnacionais, este Núcleo Temático dedica atenção especial às relações entre deslocamentos, desigualdades e violência do Estado a partir da América do Sul e especialmente do Brasil. Através de abordagens históricas ou comparativas, os vários artigos visam decifrar as aparentes contradições entre humanitarismo e securitização no âmbito de políticas de governança migratórias e de refúgio, no controle das fronteiras como parte de políticas desenvolvimentistas e de combate ao tráfico de bens ilícitos ou de seres humanos e na gestão de conflitos, disputas e assassinatos em favelas e periferias urbanas. Com esse intuito, os autores examinam a construção e desconstrução de categorias sociais - como migração-imigrantes legais/ilegais ou regulares-irregulares, deportados-deportação, tráfico de bens ilícitos, tráfico de seres humanos, refúgio-refugiados, moradores de favela, detenidos-desaparecidos, violência de Estado, inimigos internos, segurança pública, direitos humanos, vítima-denunciante, – e os modos pelos quais são acionadas e por quem, assim como seus significados diferenciais em contextos específicos, seja no que tange ao nível das legislações migratórias, de processos jurídicos e administrativos ou das mobilizações sociais. Buscam, assim, revelar os meandros e interstícios da dominação e da produção de desigualdades.

    Essas análises indicam que as políticas de governança que priorizam a securitização e militarização criminalizam protagonistas específicos - sejam eles migrantes indocumentados, inclusive solicitantes de refúgio, assim como prostitutas que estão no mercado internacional de trabalho -, ou, ainda, moradores de favela e das periferias urbanas. Essa lógica de exclusão social, ancorada numa racionalidade tecnocrata e na produção de categorias sociais - cujos componentes jurídicos e morais implicam também em racialização e desigualdades - descarta pessoas, lugares e bens considerados dispensáveis ou ameaçadores negando, no caso de pessoas, inclusive o direito de serem humanos. Cria, assim, contingentes de despossuídos.

    Tendo em vista o panorama atual, não por acaso, as políticas draconianas de migração e de controle de fronteiras vigentes na União Europeia e nos Estados Unidos são as que tendem a atrair maior atenção da mídia e também de pesquisadores, em detrimento do que ocorre no continente sul-americano. Além de um maior controle seletivo na emissão de vistos e passaportes, classificações e categorias dicotômicas - como as que diferenciam imigrantes legais/regulares e ilegais/irregulares e, no caso europeu, também entre cidadãos comunitários e extracomunitários - definem quem tem acesso e quem não tem acesso à circulação no território norte-americano ou no espaço comunitário europeu, assim como aos direitos humanos e de cidadania e às políticas multiculturais. Ao mesmo tempo, a prevalecente equação entre migração e crime legitima a produção da ilegalidade intrínseca a essas políticas. Como corolário, a fronteira transformada em campo de batalha, dramaticamente simbolizada por muros de segurança, como a que separa os Estados Unidos e o México, torna-se também metáfora de uma globalização da desesperança. Com o aumento do controle policialesco e militarizado, homens, mulheres e crianças têm sido presas, deportadas, devolvidas ou confinadas em centros de detenção, enquanto outras morrem afogadas ou brutalmente assassinadas em suas tentativas de atravessarem fronteiras, seja para escapar de conflitos violentos, seja em busca da realização de seus sonhos, esperanças e projetos de uma vida melhor.

    Nesse contexto, o artigo de abertura deste Núcleo Temático intitulado "Controle da imigração indesejável: expulsão e expulsabilidade na América do Sul", de Eduardo Domenech, expõe, com base em abordagem histórica, a recorrente formulação, também no continente sul-americano, de categorias dicotômicas para distinguir entre imigrantes con o branqueamento das nações sul-americanas através do recrutamento de determinados imigrantes europeus considerados agentes da civilização e progresso. Essas políticas classificavam como indesejáveis os chineses, os doentes físicos e mentais, os "subversivos" - nomeadamente os anarquistas, e os delinquentes, marginais e transgressores de leis jurídicas e morais, como as prostitutas, também conhecidas como escravas brancas, os traficantes de prostitutas ou ainda de entorpecentes. Apesar de eventuais mudanças de legislação, as políticas de segurança nacional se perpetuaram e se intensificaram no decorrer do século XX. Em contraposição, no limiar do século XXI, juntamente com o processo de regionalização da política migratória ligado à constituição de um regime global de controle das migrações internacionais, as políticas de regulação tecnocrata de fluxos migratórios engendraram novas formas de organizar e classificar os fluxos migratórios, adotadas também pelos países sul-americanos. As antigas categorias e classificações de indesejáveis foram subsumidas nas "novas ameaças" estabelecidas pela comunidade internacional, como o narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de pessoas e a migração indocumentada.

    Considerando essas transformações, Domenech argumenta que as políticas migratórias do passado, relacionando deportação e anarquismo, baseavam-se em uma construção hegemônica dos imigrantes anarquistas enquanto sujeitos perigosos cuja ideologia desafiava o Estado nacional e tornava legítima a violência do Estado. Em comparação, as deportações da atualidade se tornaram parte substantiva de um regime de controle das migrações que articula "securitização" e humanitarismo. As diferentes formas de expulsão (rejeições nas fronteiras, devoluções, retornos assistidos e voluntários) se tornaram parte de estratégias para combater os novos indesejáveis,isto é aquelas pessoas consideradas, pelo dogma tecnocrata, ameaças potenciais que sequer oferecem vantagens para a ordem estabelecida e, portanto, descartáveis.

    Enquanto alguns países sul-americanos, como a Argentina e o Uruguai, implementaram novas leis de imigração baseadas na retórica de direitos humanos, no Brasil, o Estatuto do Imigrante em vigor ainda é o de 1980, da época da ditadura militar, guardando referências à questão da segurança nacional do Estado Novo, apesar de algumas poucas modificações introduzidas em 1991. Contudo, com o processo de redemocratização do país, fortes mobilizações em prol dos migrantes internacionais como sujeitos de direito, iniciadas pelos movimentos sociais de emigrantes brasileiros no exterior por seus direitos no Brasil num contexto de políticas restritivas e de fechamento de fronteiras no Norte Global, resultaram em ações governamentais pontuais tanto no que tange aos emigrantes do Brasil quanto aos imigrantes no Brasil (5). Assim, num contexto de ausência de uma legislação baseada em direitos humanos, as várias ações governamentais são, em última análise, resultado de demandas da sociedade civil. Mas essas ações se tornaram insuficientes frente aos novos fluxos migratórios que estão chegando ao país.

    Se a crise econômica da década de 1980 havia direcionado os fluxos migratórios da América do Sul para o Norte Global - principalmente para a Europa e Estados Unidos, no bojo da crise de 2008-2009 e de novas mudanças das rotas migratórias -, o Brasil e suas políticas desenvolvimentistas, assim como outros países sul-americanos, passaram a atrair novos imigrantes. Juntamente com o retorno de brasileiros da diáspora, jovens profissionais europeus e norte-americanos foram atraídos pela oferta de trabalho em grandes projetos desenvolvimentistas. Ao mesmo tempo, o país passou a receber refugiados ambientais do Haiti, solicitantes de refúgio da África e do Oriente Médio, assim como contingentes da China, da África e de outros países do continente sul-americano à procura de uma vida melhor. No entanto, esses recém chegados se confrontam com a falta de políticas, de estrutura e de assistência social. Nesse contexto, o caso dos haitianos que estão sendo enviados pelo governo do Acre para São Paulo, é emblemático. Apesar de ser a primeira cidade do Brasil a contar com uma coordenação de políticas para migrantes, a prefeitura de São Paulo ainda não tem estrutura para receber imigrantes. Assim, haitianos, africanos, latino-americanos, entre outros imigrantes dependem majoritariamente da assistência de ONGs, principalmente daquelas dirigidas secularmente pelos scalabrinianos católicos, como a Missão Paz e a Casa do Migrante. Mas dado que esses imigrantes estão chegando diariamente e sem contrato de trabalho, não há inclusive espaço suficiente para abrigá-los. Essa difícil situação motivou a Missão Paz a iniciar uma campanha pela internet "Diga não ao abandono...e, sim, por uma gestão migratória", conclamando por políticas migratórias, aliás uma reivindicação de longa data dos movimentos sociais (6).

    É certo que essas mobilizações sociais, juntamente com o empenho de representantes governamentais, resultaram no encaminhamento de três diferentes anteprojetos de lei ao Congresso Nacional, o primeiro dos quais, ainda em 2009, cujo prazo de vistas já se encontra encerrado, o segundo, de 2013, que se encontra em tramitação e um terceiro em 2014 (7). Entrementes, o Brasil se alinhouà nova ordem mundial e à agenda global no combate ao tráfico de drogas, tráfico de seres humanos e contrabando. Diante desse cenário, Daniel Hirata, no artigo "Segurança pública e fronteiras: apontamentos a partir do Arco Norte", utiliza dados de um grande diagnóstico sobre essa região realizado no quadro da Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (Enafron, Ministério da Justiça), para examinar a questão da segurança pública e do militarismo como um problema no âmbito da atual hibridização entre políticas de povoamento, políticas de desenvolvimento e políticas urbanas contra o tráfico de drogas. Através de análise histórica dessa região que se distingue por grandes e sucessivos projetos de desenvolvimento invariavelmente abandonados, Hirata indica que a articulação entre segurança e desenvolvimento começa a apresentar descontinuidades a partir do final da década de 1990, num contexto marcado pela substituição de uma lógica bipolar, centrada em guerras entre nações, por políticas globais que intercruzam políticas de segurança contra oponentes internos e políticas de defesa nacional contra inimigos externos em torno do combate às drogas, ao crime organizado transnacional, tráfico de pessoas e o terrorismo que ameaçam os espaços urbanos. Esse entrelaçamento de políticas voltadas à proteção das fronteiras e ao combate aos chamados ilícitos fronteiriços que abastecem os mercados de drogas nas grandes cidades encontraram ressonância na história local reforçando, assim, a tendência histórica de povoamento da região através do estabelecimento de bases militares e a centralidade do militarismo. Nesse sentido, argumenta que, ao procurar seguir a agenda e o formato internacional de combate ao tráfico de drogas, tráfico de pessoas e o contrabando, a atuação estatal do Arco Norte deslocou-se de um projeto de desenvolvimento iniciado em 2004 que apenas tangenciava a segurança pública para um projeto de segurança pública voltado a combater a circulação dos assim chamados bens ilícitos que perigosamente margeia questões relacionadas ao desenvolvimento da região por seu potencial de entrar em conflito com a economia e o sistema de trocas locais.

    Por sua vez, Adriana Piscitelli e Laura Lowenkron, em "Categorias em movimento: a gestão de vítimas do tráfico de pessoas na Espanha e no Brasil", voltam-se à análise comparativa dos regimes discursivos e legais sobre tráfico de seres humanos predominantes nesses dois países, com base em dois estudos de casos: um, entre prostitutas brasileiras que migraram para a Espanha e, outro, sobre como a noção de tráfico é construída e desconstruída nos discursos e inquéritos da Polícia Federal brasileira. Dessa perspectiva, dedicam especial atenção aos modos pelos quais a noção de vítima do crime de tráfico de pessoas é produzida e acionada diferencialmente em cada um desses países no contexto de seus respectivos posicionamentos geopolíticos, políticas migratórias e marcos legais relativos ao tráfico de pessoas. Revelam que, apesar de diferenças significativas no que se refere à implementação do Protocolo de Palermo (principal instrumento de combate ao tráfico de pessoas e de proteção aos direitos fundamentais das vítimas), em ambos os países, as pessoas consideradas vítimas de tráfico tendem a ser paradoxalmente categorizadas, no decorrer de procedimentos estatais através de fronteiras, como migrantes indocumentadas e, por conseguinte, sujeitas, ao mesmo tempo, à criminalização e deportação. Na Espanha, apesar da predominância de uma retórica ancorada na proteção aos direitos humanos, a imagem essencializada da figura de vítima, construída a partir da justaposição de noções jurídicas e morais, abaliza a intensificação das inspeções policiais em locais de prostituição impondo às prostitutas um cotidiano de medo devido à sua precária condição de migrantes indocumentadas. Dada a perseguição, criminalização e violência estatal à migração indocumentada, o acesso ao humanitarismo, incluindo direitos à proteção e residência, depende de autorreconhecimento enquanto vítimas do tráfico de pessoas e às categorias vinculadas ao combate desse crime, seja como denunciantes ou como testemunhas. Comparativamente, no Brasil, a própria concepção do tráfico de seres humanos restringe-se às questões de gênero. Mesmo que a condição de vítima não esteja vinculada à denúncia, policiais tendem a justapor noções jurídicas com noções morais em sua percepção estereotipada do tráfico de pessoas, que parece ser mais influenciada por narrativas midiáticas e construções estereotipadas do que pela definição legal do Código Penal. Com base nessa comparação, as autoras argumentam que, em ambos os casos, a retórica humanitária avaliza o caráter de artefato político, moral e midiático da noção de vítima. Mas, ao mesmo tempo, essa noção, enquanto categoria administrativa de repressão ao crime, tem escassa relação com o discurso humanitário e, por isso, raramente propicia acesso a direitos. Levando em conta que as pessoas caracterizadas como vítimas raramente se identificam como tais, sugerem que essa negação configura uma forma de resistência.

    Noções de vítima e seus significados diferenciais são também examinadas por AdrianaVianna e Angela Facundo, em "Tempos e deslocamentos na busca por justiça entre moradores de favelas e refugiados",com base em processos judiciais e administrativos quer relacionados a assassinatos de moradores de favela praticados por policias - os chamados autos de resistência -, quer referentes aos trânsitos e condições de permanência no Brasil de solicitantes de refúgio e reassentados. De um lado, os autos de resistência trazem à tona uma narrativa dominante que define a favela como espaço de desordem caracterizado pela ausência ou presença precária do Estado. Esta precariedade é utilizada como justificativa para o estabelecimento de políticas de pacificação e militarização da favela. Em contraposição, os familiares e militantes buscam construir e denunciar tal morte como homicídio e estabelecer, através de provas documentais, um outro relato sobre os assassinados capaz de desfazer a narrativa do auto de resistência que os categoriza como traficantes, bandidos ou vagabundos para que possam ser reconhecidos como trabalhadores e respeitadores da ordem e ultimamente como vítimas. Por outro lado, as pessoas que chegam ao território nacional como solicitantes de refúgio, ou que são transferidas em condição de reassentados, passam por intensos e extensos processos administrativos a fim de provar aos administradores que se diferenciam dos migrantes econômicos por terem escapado de um território de guerra e conviverem com o "temor de perseguição" e, assim, convencê-los que preenchem a condição de vítima - categorização sine qua non para a concessão do status de refugiado. A partir dessa análise comparativa, as autoras argumentam que, em ambos os casos, estão lidando com processos de categorização espacial moral que constroem simultaneamente corpos e territórios, seja a favela (no caso dos assassinatos) ou o espaço nacional distinto definido como território de guerra e perseguição (no caso dos refugiados e reassentados). Essa produção espacializada de pessoas pressupõe também um conjunto de representações, gestões, práticas e disputas em torno de temporalidades que implicam em rupturas entre um "antes" e um "depois". Os longos períodos de espera causados por uma lenta burocracia expressam também uma profunda desigualdade entre os diferentes personagens envolvidos nos processos administrativos e revelam a impotência, vulnerabilidade e precariedade de vidas (ou de mortes) que precisam ser classificadas como vítimas.

    Finalmente, Liliana Sanjurjo e Gabriel Feltran em "Sobre lutos e lutas: violência de Estado, humanidade e morte em dois contextos etnográficos", refletem criticamente sobre as relações entre política e violência com base em um diálogo entre duas pesquisas que se debruçam sobre situações que, apesar de suas espacialidades e temporalidades diversas, têm em comum o fato de agentes do Estado terem provocado a morte de "inimigos internos". Uma centraliza atenção nos desaparecimentos forçados e assassinatos políticos durante a última ditadura argentina e a produção das categorias subversão política e detenidos-desaparecidos, enquanto a outra examina o desaparecimento e assassinatos de jovens nas periferias de São Paulo, no contexto de políticas estatais e criminais responsáveis pela especificidade paulista na questão de segurança pública. Continuando a discussão sobre diferentes concepções de vítima, os autores assinalam uma diferença fundamental entre os seus protagonistas, observando que, no caso argentino, os opositores do regime ditatorial foram reconhecidos pela comunidade nacional, ainda durante a Guerra Fria, como atores políticos. Seus desaparecimentos forçados se tornaram assunto político nacional e internacionalmente, enquanto os movimentos de familiares denunciando a violência impingida aos seus detenidos-desaparecidos obtiveram legitimidade pública. Da memória da ditadura, vivenciada por lembranças de injustiça e dor, marcadas pela criminalização, extermínio e desaparecimento de oponentes políticos, surgiu um luto coletivo, publicamente legitimado. Em contraposição, no caso brasileiro, a violência de Estado voltada contra grupos de favelados e das periferias está centrada numa criminalização seletiva marcada por clivagens sociais, sendo que, em um aparente paradoxo, as grandes medidas de controle policial em São Paulo foram produzidas pelo mundo do crime. Nesse contexto, enquanto o movimento de familiares na Argentina destaca a identidade política dos detenidos-desaparecidos, as mobilizações congêneres do Brasil enfatizam critérios raciais, de classe e de território usados pela repressão, ao mesmo tempo em que se esforçam em provar que as vítimas da violência policial eram pessoas honestas e sem relação com o tráfico. Ao criminalizar e racializar essas populações pobres das favelas e periferias para, em seguida, pacificá-las, encarcerá-las ou mesmo exterminá-las, as políticas estatais vigentes trazem à tona a atual lógica de exclusão subjacente no capitalismo corporativo contemporâneo que descarta massas de despossuídos consideradas inúteis e que sequer têm direito a serem humanos.

    Neste contexto, a adoção de uma perspectiva global dos deslocamentos possibilita expor os interstícios do poder e da dominação na produção de desigualdades nesta conjuntura do capitalismo global. Poder-se-á, assim, vislumbrar, através da leitura dos textos que compõe este Núcleo Temático, padrões similares nas restrições e controle dos deslocamentos de protagonistas diversos, sejam eles imigrantes indocumentados, especialmente no caso de profissionais do sexo e solicitantes de refúgio, ou moradores de favelas e de periferias urbanas. Ao compasso da atual lógica de exclusão, ao serem a priori considerados potenciais inimigos do Estado em vez de sujeitos de direitos, esses protagonistas (ou seus familiares, no caso daqueles que foram assassinados ou encarcerados e, portanto, descartados) precisam provar que suas trajetórias se encaixam em concepções jurídicas e morais subjacentes à categoria vítima para eventualmente obterem direitos a direitos ou serem criminalizados, encarcerados ou deportados. Embora exista uma relação intrínseca entre formação de capital, estruturas de dominação, racialização e desigualdades sociais desde a era colonial, vale notar que durante a Guerra Fria, quando imperava uma polarização entre capitalismo e socialismo, os inimigos do Estado, sujeitos à violência estatal, eram os que ideologicamente combatiam o sistema político estabelecido. Não por acaso, como o estudo de caso dos detenidos-desaparecidos do regime ditatorial argentino indica, com a redemocratização do país, são esses opositores políticos e os movimentos sociais de seus familiares que adquirem legitimidade pública nacional e internacional e se tornam símbolos da luta pelos direitos humanos. Em contraposição, osinimigos internos e externos de hoje, caracterizados como criminosos comuns e sujeitos às prisões, deportações, mortes nas fronteiras, assassinatos, são os expelidos da ordem social e econômica e formam a massa de seres descartáveis pelo capitalismo corporativo contemporâneo, não sendo sequer considerados humanos.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Sobre precariedade ver, por exemplo, Butler, J. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidos, 2006.

    2. Sassen, S. Expulsions: brutality and complexity in the global economy.Cambridge, MA, Londres: Harvard University Press, 2014; Piketty, T.Capital in the twenty-first century. Cambridge, MA, Londres: Harvard University Press, 2014.

    3. Esses textos foram originalmente apresentados na mesa-redonda "Deslocamentos, desigualdades e violência de Estado". Feldman-Bianco, B. & Feltran, G. (Orgs.) 29º Reunião Brasileira de Antropologia, ABA, Natal, agosto de 2014.

    4. Como, por exemplo, "Displacements and inequalities: comparative perspectives on global capitalism". Feldman-Bianco, B.; Narotzky, S. & Heller, M. (Orgs.). American Anthropological Meetings, San Francisco, November 2014; Displacements and immobility: international perspectives on global capitalism. Feldman-Bianco, B. (Org.), Reunião da IUAES, Manchester, Setembro de 2013; Deslocamentos: raça e racismo em perspectiva comparativa, Feldman-Bianco, B. & Rial, C. (Orgs.), 29º RBA, ABA, Natal. Agosto de 2014.

    5. Ver Feldman-Bianco, B. "Caminos de ciudadanía: emigración, movilizaciones sociales y políticas del Estado brasileño". In: (Org. Feldman-Bianco, B.; Rivera-Sanchez, L.; Stefoni, C. & Villa Martinez, M. I.) La construcción social del sujeto migrante en América Latina: Prácticas, Representaciones y Categorias . Quito: Flacso, Clacso y Universidad Alberto Hurtado, 2011, pp.235-280.

    6. Ver https://www.facebook.com/missaopazsaopaulo?fref=ts,missao-paz-lanca-peticao-online-por-gestao-migratoria-nacional-e-contra-o-abandono-de-imigrantes. Ver também novas soluções pontuais em http://migramundo.com/2015/03/14/carteira-de-trabalho-comemoracao-e-tristeza-ao-mesmo-tempo/

    7. A saber PL 5655/2009, conhecido como projeto Lula; PLS 288/2013 do senador Aluísio Nunes em tramitação desde dezembro de 2014, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional; e o Anteprojeto de Lei das Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, formulado em 2014 por uma "comissão de especialistas", criada no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça.