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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000200011 

    ARTIGOS
    DESLOCAMENTOS

     

    Segurança pública e fronteiras: apontamentos a partir do "Arco Norte"

     

     

    Daniel Hirata

    Professor de sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF)

     

     

    Um dos elementos que faz das fronteiras lugares estratégicos de pesquisa para se pensar o mundo contemporâneo é o que poderíamos chamar de "efeito bumerangue" (1), quando experiências político-administrativas situadas em espaços considerados às margens das formas governamentais passam a ser incorporadas no centro dos dispositivos de poder. Mais do que simplesmente reverter o sentido ou a direção mais corrente das dinâmicas do poder político e econômico, o que a imagem sugere é um trânsito que ajuda a informar a maneira pela qual certos "problemas" (2) são refletidos de forma experimental, conectando diferentes espaços geográficos. Do ponto de vista das políticas públicas brasileiras, um dos "problemas" associados às fronteiras que vem ganhando proeminência nas últimas décadas é a segurança pública. Pensada, sobretudo, como uma questão cujo centro são os chamados "ilícitos transfronteiriços", tal categoria associa a insegurança nas fronteiras a certos circuitos mercantis, sobretudo o tráfico de drogas ilícitas, o tráfico de pessoas e o contrabando de produtos informais, assim como as suas conexões reais ou imaginárias com os grandes centros urbanos brasileiros. Por meio da urgência que o controle dessas circulações impõe à agenda política, a repressão aos ilícitos transfronteiriços vem fixando a área de segurança pública como espaço de atenção prioritária.

    O "efeito bumerangue" faz os ilícitos transfronteiriços entrarem em ressonância com a representação da violência urbana (3), que associa e reduz a área da segurança pública nas grandes metrópoles ao combate militarizado dos mercados das drogas. Nas últimas décadas, as políticas de guerra às drogas (4) parecem ter se deslocado com grande rapidez para as fronteiras, na medida em que essas são vistas como os locais de proveniência dessas mercadorias em direção às grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Para entender esse trânsito entre cidades e fronteiras é preciso estar atento a uma sobreposição de dinâmicas antigas e recentes que produzem um hibridismo entre as áreas da segurança pública e da defesa nacional (5).

    Este artigo pretende contribuir para a reflexão crítica desses apontamentos por meio de uma pesquisa realizada nos últimos anos no âmbito de um convênio entre o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Necvu-UFRJ) e a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (Senasp-MJ) (6). Partindo dos resultados iniciais dessa pesquisa realizada em toda a faixa de fronteira (7) do país e da reflexão acerca das políticas nas quais a pesquisa se insere, a tentativa será expor algumas das linhas de força que conformam a questão da segurança pública como um "problema" por meio do caso específico do chamado Arco Norte do Brasil (8). O objetivo deste artigo será compreender historicamente a maneira pela qual esse espaço-problema do Arco Norte vem sendo pensado através de uma grade de legibilidade específica que, consequentemente, informa o uso de certos instrumentos de intervenção governamental preferenciais. Nessa direção, o Arco Norte parece conjugar a centralidade do militarismo no controle dos chamados mercados ilegais, informais e ilícitos e a sua hibridização com o trabalho policial como as duas pontas de um processo único de construção das políticas de segurança pública (9).

    * * *

    Para a elaboração desse amplo e inédito diagnóstico da segurança pública nas fronteiras, o grupo Retis realizou um levantamento de dados secundários de cunho socioeconómico e demográfico. O grupo Necvu trabalhou com informações oficiais de segurança pública e da criminalidade local, realizou um survey em todas as instituições relativas à área de segurança pública e fez trabalho de campo por meio de entrevistas formais e informais, grupo focal, observações diretas com os operadores das instituições de segurança pública e os diversos atores da sociedade civil que pudessem auxiliar a elaboração do diagnóstico (10). Todo esse imenso esforço foi feito no quadro da Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (Enafron). Portanto, cabe aqui uma breve reflexão acerca da emergência desse marco legal que atualmente orienta a maneira pela qual a área da segurança pública é pensada para as áreas fronteiriças.

    Como uma iniciativa até então inédita pela visão integral das fronteiras brasileiras, por meio do Ministério da Integração Nacional, criou-se no início de 2004 o "Programa de Promoção de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira". As ações incluíam o desenvolvimento integrado das sub-regiões em que se localizam as cidadesgêmeas, pensando as relações de interação com os países vizinhos via estruturação e dinamização dos arranjos produtivos, das condições de infraestrutura, da geração de empreendimentos, da formação e capacitação de agentes públicos, assim como o fortalecimento do associativismo e das formas de organização sociais.

    Observa-se que o "Programa de Promoção de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira" tangenciava também a questão da segurança pública, uma vez que: "uma análise criteriosa da região de fronteira (...) demonstra que as ameaças ao Estado residem, isto sim, no progressivo esgarçamento do tecido social, na miséria que condena importantes segmentos da população ao não exercício de uma cidadania plena, no desafio cotidiano perpetrado pelo crime organizado e na falta de integração entre países vizinhos. Essas são as principais ameaças presentes na faixa de fronteira, que colocam o desenvolvimento regional como estratégia prioritária para a soberania brasileira e a integração continental" (11). O texto de 2004 deixa claro que as políticas de desenvolvimento eram vistas como uma espécie de anteparo ao enfrentamento da questão da segurança pública porque se pensava o desenvolvimento socioeconómico como uma forma estratégica de enfrentamento dos problemas de segurança pública.

    Quase em paralelo a essa iniciativa, diversas experiências foram sendo testadas para tratar especificamente das questões de segurança pública no âmbito da faixa de fronteira. Nesse sentido, em 2008, com vistas ao fortalecimento da segurança pública nessas regiões, a Senasp criou o Projeto de Policiamento Especializado na Fronteira (Pefron), após algumas iniciativas que objetivavam combater o crime de roubo de gado, recorrente no Rio Grande do Sul. Trata-se do início das discussões sobre o papel a ser desempenhado pelos órgãos de segurança pública na região fronteiriça, quando se incentivou a criação de grupos especializados na atuação repressiva e preventiva para o enfrentamento dos crimes ali recorrentes. Serviram como modelo as experiências de dois estados: Mato Grosso do Sul, criador do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), e do Mato Grosso, que inaugurou o Grupo Especial de Segurança de Fronteira (Gefron) (12).

    O Pefron foi encerrado, mas continuaram as iniciativas para fortalecer a segurança pública nas fronteiras. Um novo patamar de priorização da União na área de segurança pública foi alcançado alguns anos mais tarde, com a instituição do Plano Estratégico de Fronteiras e do Programa Enafron. O Plano Estratégico de Fronteira foi formalizado em junho de 2011 e a adesão dos estados se deu em dezembro de 2011, conforme determinação contida no Decreto nº 7.496 (12). Caracteriza-se pelo planejamento de ações integradas entre órgãos de segurança pública e defesa e é liderado pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Defesa, buscando implantar ações federativas entre a União, os estados e os municípios situados na faixa de fronteira, mediante a formulação de projetos estruturantes e ações de cooperação internacional. O principal objetivo do Enafron é intensificar o controle e a fiscalização nas fronteiras, de forma a "fortalecer a prevenção, o controle e a repressão dos delitos transfronteiriços e outros delitos praticados nas regiões da fronteira brasileira, em parceria com estados e municípios".

    A introdução das categorias de "delitos transfronteiriços", ou seu equivalente "ilícitos transfronteiriços", acabou por produzir impactos na economia local dada a centralidade que o controle da circulação de certas mercadorias e pessoas passaram a ocupar nas políticas de segurança pública. No caso do Arco Norte brasileiro, essa situação é emblemática, pois o rigor desse controle, ainda que relativo, dadas as condições de implementação da infraestrutura de fiscalização, já pode ser percebido em alguns setores da pesca e da agricultura de subsistência, assim como na incipiente exportação desses produtos às cidades lindeiras da fronteira – como é o caso em certos lugares de pesca do "peixe liso" (peixe de couro) e da produção da farinha de mandioca. Isso não significa que a questão do desenvolvimento desapareceu do horizonte político do Estado brasileiro ou que foi suplantado pela questão da segurança pública, mas é notável que uma série de tensões se sobrepõem a antigas questões que articulam segurança e desenvolvimento no Arco Norte.

    Historicamente, a região foi marcada pela avaliação de que se tratava de enormes extensões de "espaços vazios" a serem "povoados", mas também por grandes projetos de desenvolvimento econômico, seguindo a máxima de "ocupar para não entregar", nem sempre bem sucedidos em diversos aspectos: falta de planejamento e integração efetiva com os mercados internos e internacionais, ausência de uma previsão do impacto social e ambiental e, no mais das vezes, o abandono desses grandes investimentos ao longo do tempo. Esse foi o caso do Projeto Jari no Amapá e do Projeto Calha Norte, para ficar apenas em alguns exemplos do século XX, e tem sido o caso da construção de hidrelétricas e dos projetos de exploração de petróleo atualmente. Ao largo do desenvolvimentismo do passado e do presente encontramos populações inteiras que procuram sobreviver em meio a uma economia incipiente e pouco articulada com o restante do país, o que não significa que não seja importante e vital para os seus habitantes: a circulação de pessoas e mercadorias, feita sobretudo por meio dos rios, sempre foi estruturadora das trocas e interações sociais que se conformam na região, tanto no âmbito do território nacional como em suas relações com os países vizinhos ao Brasil.

    As questões de segurança pública, que porventura possam bloquear ou dificultar essa rede de trocas tão importante para o Arco Norte, correm o risco de produzir efeitos deletérios não apenas para a economia da região como também para a própria área de segurança pública. Se é verdade que em certos lugares o fluxo de mercadorias ilícitas ou do contrabando utilizam os mesmos caminhos das mercadorias legais, também é verdade que a maior parte dessas circulações é feita por pessoas que procuram tão somente trabalhar e viver. Por isso, na medida em que as questões de segurança pública passam a bloquear o extenso sistema de trocas que conforma o Arco Norte, seu impacto na economia local é muito intenso. De outro lado, a herança e a atualização do desenvolvimentismo vem produzindo uma estruturação conflitiva que produz boa parte dos problemas de segurança pública que se encontram atualmente no Arco Norte. Isto porque reforçam as grandes desigualdades sociais que formaram alianças entre poderosos grupos políticos, comerciais e empresariais que transitam entre a ilegalidade e a delinquência e atuam de forma pouco republicana com as populações relegadas a conviver com diversas formas de violência sociais e políticas (13).

    Cabe destacar, como afirma Fernando Rabossi, membro da coordenação nacional da pesquisa (6), a maneira pela qual essas articulações entre desenvolvimento, segurança pública e defesa nacional são atualizadas nas mais recentes políticas voltadas para as fronteiras: "a mudança reflete o lugar que as fronteiras passaram a ocupar na agenda política, tanto para atender a demanda interna – a denúncia da procedência externa de drogas e armas nas cidades do país – como para se posicionar internacionalmente"(14). Ao procurar se alinhar à agenda e ao formato internacional de combate ao tráfico de drogas, o tráfico de pessoas (15) e do contrabando, na tentativa de se constituir como "player" na geopolítica mundial, podemos dizer que as sobreposições de políticas recentes ao legado da atuação estatal no Arco Norte desloca-se de um projeto de desenvolvimento que apenas tangenciava a questão da segurança pública, na medida em que não lhe conferia autonomia, para um projeto de segurança que tangencia perigosamente a questão do desenvolvimento, pela possibilidade de entrar em conflito com a economia e com o sistema de trocas local.

    É muito importante, contudo, (re)situar o plano de atualidade das passagens entre segurança e defesa em um campo novo, híbrido e articulado. Nesse sentido, Didier Bigo mostra em pesquisa recente que a convergência entre aparatos policiais e militares é uma dinâmica internacional, que passa pela convergência de discursos, doutrinas e técnicas dos profissionais da segurança (policiais e militares) no mundo pós 1989, especialmente com a queda do Muro de Berlim, o declínio da ex-URSS, as guerras do Golfo e da Iugoslávia. Neste mundo não mais ordenado segundo a lógica bipolar, as distinções entre ameaça interna e externa parecem se encontrar como em uma fita de Moebius (16) por diversas razões: em primeiro lugar os profissionais da defesa nacional começam a procurar internamente os inimigos externos e os profissionais da segurança passam a olhar externamente as ameaças para a segurança interna, cujos exemplos mais evidentes são as políticas de guerra às drogas, a ameaça do crime organizado transnacional, do tráfico de pessoas e do terrorismo. Em segundo lugar, o tipo de guerra atual, não mais guerra aberta entre nações mas sim feita em espaços urbanos e figurada como intervenções pontuais, produz um campo comum de atuação estratégica e tecnológica entre policiais e militares. Por fim, as estruturas cooperativas e coordenadas de atuação aparecem como vantajosas do ponto de vista dos custos para o orçamento estatal, fato que mudou as relações institucionais entre as áreas da segurança pública e da defesa em diversos países (17).

    No caso brasileiro são conhecidas e notórias, já há muito tempo, as passagens históricas entre práticas e culturas institucionais das forças armadas e das polícias estaduais (18). É conhecida a herança militar da formação das polícias brasileiras: foram concebidas como forças da reserva do exército, treinadas pelas forças armadas e, posteriormente, utilizadas durante o regime de exceção como polícia ostensiva contra a ameaça da chamada "subversão política". A herança da doutrina militar, orientada não à prestação de um serviço público de segurança e à proteção ao cidadão, mas sim para o combate aos "inimigos internos" é um tema amplamente estudado como parte das dificuldades de implementação de políticas de segurança no contexto democrático brasileiro e analisada como parte dos resquícios autoritários presentes nas instituições do estado democrático de direito no Brasil. Contudo, as políticas voltadas à proteção das fronteiras brasileiras a partir da metade dos anos 2000 são especialmente reveladoras da vitalização dessa relação por meio de dinâmicas internacionais de hibridização das áreas da defesa e da segurança pública, como também no combate aos chamados ilícitos transfronteiriços.

    Mas nada disso teria sido possível sem o engajamento de importantes lideranças políticas das grandes metrópoles brasileiras: a relação entre os grandes centros urbanos e as fronteiras emerge, de forma importante, por meio de uma avaliação e um discurso muito agressivo dos governadores e secretários de segurança de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro de que seria ineficaz combater o "crime organizado" nessas cidades se o fluxo de drogas não fosse interrompido nas fronteiras. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, se pronunciou em diversas oportunidades afirmando que as fronteiras estavam "totalmente abertas" e que a maior responsabilidade pelo controle do tráfico de drogas seria do governo federal: "São Paulo produz cana, laranja, soja, milho, café, não produz cocaína" (19). José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Rio de Janeiro, em um momento recente de crise das Unidades de Polícia Pacificadoras UPP's disse que "seria necessário pensar segurança de forma ampla no controle da fronteira" (19). Marcelo Freixo, ao criticar a mesma política das UPP's na cidade do Rio de Janeiro como forma de "criminalização da pobreza", afirmou que "é preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado." (19).

    Neste sentido o controle de fronteiras acabou sendo uma resposta técnica e política. Em um primeiro sentido, política, porque os governos estaduais procuravam se resguardar de suas responsabilidades, compartilhando-as com as autoridades federais. Mas ao mesmo tempo, técnica, com a utilização de soluções de expertise que construíram um novo design institucional a partir da atuação conjunta de operadores anteriormente imbuídos separadamente das questões da segurança pública e da defesa nacional. Na confluência entre essas respostas técnicas e políticas, constrói-se uma grade de legibilidade específica de combate ao "crime organizado transnacional" e, consequentemente, informa-se o uso de certos instrumentos de intervenção governamental preferenciais (20) que, neste caso, impõem a centralidade do militarismo no controle dos chamados "ilícitos transfronteiriços".

    É importante destacar, contudo, que a incidência desses instrumentos preferenciais segue uma seletividade específica: a área onde se concentram os maiores esforços de atuação repressiva são os mercados das drogas ilícitas que, no caso brasileiro, se sobrepõem de forma muito menos evidente ao tráfico de pessoas, como é o caso em outros países do chamado Norte Global. Dado que esses mercados são vistos como feitos por grupos brasileiros provenientes das grandes cidades, como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, e sendo esses os alvos principais das políticas mais recentes de segurança pública para as fronteiras, é a relação entre cidades e fronteiras para o caso específico do mercado de drogas que segue essa tendência principal de militarização.

    Ocorre que essa resposta de guerra e combate ao tráfico de drogas que emana em parte das grandes cidades brasileiras encontra ampla ressonância nas cidades e estados de fronteira na medida em que, sobretudo no Arco Norte, em muitos casos a presença mais antiga e mais estruturada do Estado brasileiro se faz por meio dos aparatos institucionais das forças armadas. Diversas cidades da região Norte se formaram a partir de pelotões de fronteira, instalados como parte de uma estratégia de manutenção das fronteiras em regiões "pouco povoadas" ou ainda como postos de controle da circulação de mercadorias não autorizadas pelo governo central. Essa sobreposição entre cidades e bases das forças armadas não é casual pois a geografia dos rios no Arco Norte sempre orientou a circulação de diferentes produtos e a defesa da soberania nacional. São exemplos deste tipo de sobreposição as cidades de Tabatinga (AM), Tefé (AM), Oiapoque (AP) e São Gabriel da Cachoeira (AM), importantes cidades fronteiriças cujo povoamento esteve ligado à presença militar que, por sua vez, mantinha ligações cruzadas com as áreas da defesa e da segurança, no controle do contrabando e de invasões estrangeiras. O momento atual reforça essa tendência de povoamento via instalação de bases militares em diversos lugares do Arco Norte, por exemplo nos eixos dos rios Içá/Putumayo, dos rios Japurá/ Caquetá, dos rios Javari/Yavari, onde novos assentamentos se formam ao redor de pelotões de fronteira pensados tanto para a defesa do território nacional como para o controle dos ilícitos transfronteiriços.

    Dessa forma, mesmo que nem sempre as relações entre militares e população local tenham sido amigáveis, sobretudo no que diz respeito aos povos indígenas, é inegável que se trata de uma instituição central para a compreensão da presença governamental nesses lugares, com grande prestígio e influência nos destinos desses espaços. Essa influência foi legalmente ampliada em 2010 por meio da atribuição dos poderes de polícia ao exército na faixa de fronteira. Através dessas novas atribuições, o exército pode atuar de forma indistinta e com irrestrito amparo jurídico nas áreas da segurança pública e da defesa nacional. Dessa maneira, durante as operações de patrulhamento de fronteiras ou mesmo no curso de suas atividades cotidianas, o exército pode também atuar na fiscalização de ocorrências policiais, com especial atenção para o contrabando, o descaminho e o tráfico de drogas. Essa atribuição foi feita tendo em vista a utilização da infraestrutura do exército nas regiões fronteiriças, muito superior àquela das polícias (21).

    A superioridade logística e dos meios de atuação reforça a recorrente percepção dos operadores das instituições de segurança pública e de muitos membros da sociedade civil acerca da "vocação natural" do exército para as regiões de fronteira. De fato, ao contrário da maior parte dos operadores das instituições de segurança pública, que veem o trabalho em regiões de fronteira como um "castigo", nas forças armadas é considerado um grande privilégio atuar no Arco Norte. Além do trabalho nessas regiões conferir prestígio profissional pelo fato de ser considerada uma região estratégica para o exército, seus profissionais são recompensados com gratificações salariais e suporte na instalação para suas famílias. Em tais condições, o conhecido problema da rotatividade dos agentes da segurança pública ocorre de forma muito mais amenizado nas forças armadas, favorecendo os laços e o enraizamento da instituição nas cidades onde estão instalados.

    De outro lado, é importante dizer que, mesmo internamente às forças armadas, a atuação do exército como força policial é uma questão tecnicamente delicada e controversa. Alguns comandantes entrevistados para esta pesquisa se posicionaram de forma contrária às novas atribuições pelas especificidades da instituição, tomando como exemplo a experiência de atuação do exército em grandes cidades, considerada internamente como pouco exitosa pela não adaptação da atuação em áreas urbanas e entre populações civis. De toda maneira, o fato é que pouco a pouco essas novas atribuições vão fazendo parte da rotina do trabalho militar nas fronteiras do Arco Norte. Ao acompanhar os exercícios da Operação Ágata, maior exercício de treinamento interagência da faixa de fronteira, é clara a liderança exercida pela coordenação do exército. Na articulação das instituições de segurança pública que a Operação Ágata promove, todo o rearranjo institucional encontra em seu centro o exército e, desta maneira, todo o trabalho de combate aos lícitos transfronteiriços é coordenado por esta instituição.

    Por essas razões, a militarização da segurança pública nas regiões de fronteira, especialmente no Arco Norte brasileiro, é uma prática imanente à história e às condições atuais de atuação no combate aos ilícitos transfronteiriços. As novas formas de organização da "guerra às drogas", que articulam nacional e internacionalmente a relação entre defesa nacional e segurança pública, têm ampla ressonância histórica, respaldo político e amparo técnico para que possam se ampliar e se consolidar nos espaços de fronteira do Arco Norte. Nesse sentido, a fronteira é uma espécie de "laboratório" da militarização da segurança pública no Brasil e pode produzir o "efeito bumerangue" em direção aos grandes centros urbanos. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro a metáfora da guerra (22) foi pensada em seus efeitos deletérios para a prestação dos serviços de segurança pública e proteção ao cidadão, conformando um acordo tácito de que o controle de certos mercados passaria necessariamente pela suspensão dos direitos civis de certas parcelas da população. No caso das fronteiras do Arco Norte, entretanto, não se trata de uma metáfora, mas sim de uma prática político-administrativa ordinária em construção.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Foucault, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999.

    2. Um "problema" ou "problematização" diz respeito a uma forma de construção dos objetos de pesquisa que segue de perto a maneira pela qual Michel Foucault definiu diversas vezes o contorno singular de seu pensamento e seu trabalho histórico. Ver: Foucault, M. Dits etécrits. Paris: Gallimard.2003. Entre outros textos importantes sobre o assunto no compêndio, destaca-se "Polémique, politique et problématisation " (texto 342 do tomo IV).

    3. Para Machado da Silva a violência urbana é uma representação e, portanto, um objeto e não um conceito. Ver: Machado da Silva, L.A. "Violência urbana: representação de uma ordem social". In: Nascimento, E.P.; Barreira, I. (org.). Brasil urbano: cenários da ordem e da desordem. Rio de Janeiro: Notrya. 1993.

    4. Rodrigues, T.M.S. Política e drogas nas Américas. Educ/Fapesp. 2004.

    5. Graham, S. Cities under siege: the new military urbanism. Verso, 2010.

    6. A coordenação geral da pesquisa foi realizada pelo professor Michel Misse, em um trabalho articulado dos grupos Necvu-UFRJ e Retis-UFRJ. O grupo Retis-UFRJ foi coordenado pela professora Lia Osório Machado, juntamente com o(a)s pesquisadores Rebeca Steiman e Lício Caetano do Rego Monteiro. Os membros do grupo Necvu-UFRJ foram, além do professor Michel Misse, o(a)s pesquisadores Joana Domingues Vargas, Fernando Rabossi, Brígida Renoldi, Carolina Grillo, Felipe Zilli, Klarissa Almeida Silva e Jeferson Scabio. Os dados utilizados neste artigo foram fruto de um longo esforço conjunto desses pesquisadores que fizeram todo o trabalho de forma coletiva e aos quais eu sou grato por cada linha e reflexão aqui expressa. Os eventuais erros ou problemas do texto são de inteira responsabilidade do autor.

    7. A faixa de fronteira abrange o conjunto de municípios localizados na área que compreende os 150 km da linha de fronteira do Brasil em direção ao interior do país. A linha de fronteira é estimada atualmente em 16.886 km, atravessando 11 estados brasileiros e abrangendo 27% do território nacional.

    8. O Arco Norte é uma categoria socioespacial muito utilizada na gestão governamental das fronteiras que reúne o Pará, Amapá, Roraima, Amazonas e Acre, imaginando-os como uma região coerente. Ver Grupo Retis (11). Proposta de reestruturação do programa de desenvolvimento da faixa de fronteira. Ministério da Integração Nacional. 2005.

    9. Nessa direção, a compreensão de dinâmicas cruzadas entre policiais e militares no tempo e no espaço me parece acompanhar o artigo de Liliana Sanjurjo e Gabriel Feltran neste mesmo Núcleo Temático da revista Ciência e Cultura.

    10. Para maiores informações sobre a pesquisa ver: Necvu. "Relatório da pesquisa "Segurança Pública nas Fronteiras". Brasília: Ministério da Justiça, 2015.

    11. Grupo Retis. Proposta de reestruturação do programa de desenvolvimento da faixa de fronteira. Ministério da Integração Nacional. 2005.

    12. Brasil. Ministério da Justiça. "Plano do Programa Enafron". 2012.

    13. A pesquisa "Segurança Pública nas Fronteiras" identificou o tráfico de drogas, feito sobretudo na escala atacadista, como uma atividade ligada a certos grupos de influência compostos pela elite local, enquanto que os problemas do Arco Norte na área de segurança pública são: a violência doméstica, em particular a violência contra a mulher e contra a criança e o adolescente; os conflitos interpessoais, com especial importância para as brigas de bar e o fenômeno das "galeras"; os crimes contra a propriedade como o furto e roubo a transeunte, de veículos e à residência; as disputas de terras, os crimes ambientais, os problemas relacionados à mineração e, por fim, todas as questões que envolvem as populações indígenas, o segmento mais vulnerável em relação a uma série dos problemas acima apontados.

    14. Jornal Folha de S.Paulo. "As fronteiras não merecem ser tratadas como periferia". 2 de Junho de 2013.

    15. Para entender as relações entre as políticas brasileiras e internacionais no que diz respeito ao tráfico de pessoas ver, neste mesmo Núcleo Temático, o artigo de Adriana Piscitelli e Laura Lowenkron.

    16. A fita de moebius é uma representação clássica do encontro das duas faces de uma fita feita por Asher que, posteriormente, passou a simbolizar o infinito.

    17. Bigo, D. « La mondialisation de la (in) sécurité: réflexions sur le champ des professionnels de la gestion des inquiétudes et analytique de la transnationalisation des processus de la (in)sécurité ». Culture et Conflit, 58, 2005.

    18. Kant de Lima, R. Ensaios de antropologia e direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008. Misse, M. "Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro". Rio de Janeiro: Tese (doutorado em sociologia - luperj). 1999.

    19. Jornal Folha de S. Paulo. "Alckmin culpa gestão federal por 'epidemia de drogas' ". 23 de maio de 2013. Revista Veja. "Beltrame cobra fiscalização nas fronteiras e nova lei de execuções penais" 30 de novembro de 2010. Jornal Folha de S.Paulo. "Não haverá vencedores" 28 de novembro de 2010.

    20. Lascoumes, P. & Patrick L. G.. Gouverner par les instruments. Paris: Presses de Sciences Po., 2005. Uma abordagem semelhante ao pensar as formas de legibilidade e instrumentação, para o caso de "refugiados" e "favelados", pode ser encontrado no artigo de Adriana Viana e Ángela Facundo, neste mesmo Núcleo Temático.

    21. Na pesquisa "Segurança Pública nas Fronteiras" foi constatado que o Arco Norte caracteriza-se pela dimensão continental, as conexões prioritariamente fluviais e a baixa densidade populacional, urbana e institucional, com impactos na economia da área, seja ela legal ou ilegal, assim como nas dinâmicas da criminalidade local. Frente a este cenário, as polícias e demais órgãos de fiscalização encontram grandes dificuldades logísticas, de efetivo e de equipamentos para exercer as suas atribuições. De outro lado, a instituição mais bem amparada do ponto de vista dos recursos e infraestrutura foi as forças armadas.

    22. Leite, M.P. "Para além da metáfora da guerra. Percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca". Tese (doutorado em sociologia - UFRJ). 2001.