SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.67 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.2 São Paulo Apr./June 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000200014 

    ARTIGOS
    DESLOCAMENTOS

     

    Tempos e deslocamentos na busca por justiça entre "moradores de favelas" e "refugiados"

     

     

    Adriana ViannaI; Ángela FacundoII

    IProfessora do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ)
    IIDoutora pelo PPGAS do Museu Nacional da UFRJ e pesquisadora pós-doutoranda na Fundação Casa de Rui Barbosa

     

     

    "FAVELADOS" E "REFUGIADOS" COMO SUJEITOS-PERSONAGENS DO ESPAÇO E DO TEMPO Categorias sociais, políticas e administrativas enfeixam processos complexos de distinção, aglutinação e hierarquização entre pessoas, acontecimentos, espaços e tempos. Desse modo, produzem narrativas sobre vidas, lugares e temporalidades que têm por efeito, não raras vezes, a domesticação e o congelamento de experiências múltiplas e diversas. Sua documentação em papéis oficiais de ordens distintas e o poder de verdade que esses mesmos papéis costumam ter, remodelam e delimitam de forma singular os desdobramentos que essas mesmas categorias exercem sobre a vida cotidiana daqueles que passam a estar ligados a elas.

    No presente artigo, debruçamo-nos sobre duas dessas categorias, acionadas de modos muito variados, e as tomamos como significantes que envolvem campos semânticos maiores. "Moradores de favela", "favelados", "refugiados", "reassentados" são pensados aqui como termos acionados em processos administrativos, em disputas políticas e em zonas de competição moral que iluminam relações sociais desiguais. Embora apreendidos a partir de pesquisas etnográficas distintas, tais campos semânticos mostram-nos propriedades semelhantes, sobretudo no que diz respeito à estreita conexão entre os sujeitos-personagens que daí resultam - favelados, refugiados - e os universos sociais que parecem lhes dar sentido e por eles serem preenchidos(1).

    A primeira dessas propriedades está relacionada à compreensão de ambos os universos como inscritos em "territórios de margem", marcados por práticas, sujeitos e espaços que são frequentemente considerados como estando nas margens do Estado, no sentido explorado por Das e Poole (2). As pessoas e lugares enfeixados em categorias como "refúgio-refugiados" ou "favelafavelados" materializam processos de produção de desigualdades diversas, trazendo em si mesmas um conjunto de narrativas morais e políticas pré-definidas. Representam zonas de irregularidade, desordem e imprevisibilidade. Movimentam-se como corpos não confiáveis, trazendo em si a ambiguidade própria àqueles que podem ser simultaneamente tomados como vítimas ou sofredores de privação e como potencialmente perigosos. Nesse sentido, são figuras não apenas do deslocamento entre espaços físicos, mas sobretudo do deslocamento que se daria entre espaços morais, carregando em seu transitar o constante perigo de borrar fronteiras, sejam elas as dos Estados nacionais, como no caso dos refugiados, sejam as de espaços urbanos peculiarmente tensos e ciosos de suas hierarquias, como no caso dos moradores de favela ou favelados do Rio de Janeiro (3)1.

    Em ambos os casos, a dimensão racial está fortemente presente como elemento que marca moral, política e administrativamente as pessoas e os territórios. Embora não possamos nos debruçar sobre essa discussão no presente artigo, cabe não perder de vista que os corpos tomados como passíveis de serem mortos nas incursões policiais nas favelas são fundamentalmente corpos negros, tornados indiscerníveis uns dos outros a partir do cruzamento entre suas marcas raciais e espaciais. No caso dos refugiados, por sua vez, essas marcações e especificamente a racialização de seus corpos, além de muitas vezes ter justificado ou facilitado sua expulsão dos territórios de origem, serão também elementos importantíssimos na interação com as autoridades administrativas do refúgio e com as comunidades locais onde lhe correspondeu se vincular. A interpretação racializada desses sujeitos servirá para lhes adjudicar locais sociais e geográficos, igualmente interpretados como adequados.

    Defendemos também em nossos respectivos trabalhos que a produção dessas condições de desigualdade se faz em meio a diversos expedientes administrativos de Estado, reforçando, uma vez mais, a dupla dimensão das "margens", que dizem respeito tanto àqueles que ocupariam o lugar de "administrados", quanto o de "administradores" (4). Concentrando-nos em processos judiciais e administrativos específicos, procuramos compreendê-los como um complexo de modos de classificação ou categorização de pessoas, relações, atos e narrativas. No seu desenrolar, os sentidos e formas de gestão dos espaços e personagens tanto do refúgio, quanto da favela vão sendo atualizados e continuamente produzidos.

    No caso da pesquisa de Adriana Vianna, os processos judiciais visando a condenação de um agente do Estado responsável pela morte de um morador de favela - policiais militares em sua maioria, mas também agentes do sistema prisional ou da Polícia Civil - configuram verdadeiro campo de disputas em torno dos sentidos dessa morte, de quem estaria nela envolvido e do papel desempenhado pelo próprio espaço da "favela" nessas disputas. Desde as condições em si da morte, em sua maioria fruto de incursões policiais em favelas, passando por seu registro policial-administrativo como "auto de resistência", até todas as etapas de constituição material do processo, incluindo laudos cadavéricos, perícias no local e nas armas usadas, audiências e um eventual e raro julgamento, o que vemos é um processo em que corpos e espaços parecem constituir-se de maneira inextrincável (5). O "auto de resistência" exprime sinteticamente a narrativa do "confronto", com seus personagens previamente fixados e, sobretudo, com a força da representação mais abrangente da "guerra" que definiria a relação com a favela como espaço da desordem e ausência (ou presença precária) do Estado. Essa metáfora perversa, cujas implicações foram indicadas já por Marcia Leite e Machado da Silva, entre outros, pode ser pensada como continuamente atualizada a cada morte de morador de favela pelas mãos da polícia, bem como na escolha do termo "pacificação" para designar o que foi apresentado como política governamental para esses espaços nos últimos anos (6).

    A essa narrativa dominante e pervasiva, porém, contrapõem-se as de familiares e militantes que buscam construir tal morte como um homicídio e, com isso, condenar judicialmente os agentes do Estado que o cometeram. As formas e espaços para confecção dessas outras narrativas (ou narrativas outras) são atos públicos, panfletos, vídeos, fotografias, faixas e cartazes. Quando se consegue, matérias jornalísticas em mídias diversas engrossam o caldo da "denúncia" que modela a disputa de sentidos sobre tais mortes (7). A contestação de laudos cadavéricos e periciais, bem como a procura por testemunhas ou indícios materiais das condições da morte também fazem parte da busca por estabelecer um relato outro sobre quem morreu, quem matou, o espaço em que a morte se deu e a ilegitimidade do modo como corpos e territórios foram tratados (8).

    No caso da pesquisa de Ángela Facundo, as pessoas que chegam ao território nacional como solicitantes de refúgio ou que são transferidas em condição de reassentados, passam por intensos processos administrativos através dos quais elas vão sendo produzidas como refugiadas ou registradas sob outras categorias que qualificam seus trânsitos e definem a condição de sua permanência e pertença a uma comunidade imaginada como nacional. Nesses processos de categorização os administradores se empenham em diferenciar os motivos que provocam os movimentos das pessoas através dos territórios e as fronteiras, querendo encontrar o que Good (9) tem chamado de "as origens legítimas do medo" que diferenciariam os refugiados dos migrantes econômicos e de outras categorias de migração que não estariam embasadas em um "fundado temor de perseguição".

    Parte fundamental desses processos está baseada na exigência de uma construção narrativa do sujeito que pretende conhecer a sua verdade e de seu deslocamento temporal e espacial para o Brasil. Ao fazê-lo, porém, as pessoas notam que sua história de êxodo não pode ser contada na íntegra nos espaços administrativos destinados a essa produção narrativa. Tal descompasso decorre do fato de lhes ser exigido que relatem o que seria a totalidade da experiência de migração, mas sem que essa se assemelhe a uma história de migração econômica, tornando-se necessário arrumar e oferecer os fragmentos da experiência de êxodo que se encaixem no perfil projetado da categoria refugiado.

    Consideramos, assim, que, em ambos os casos, estamos lidando com processos de categorização espacial-moral que constroem simultaneamente corpos e territórios. Dito de outra maneira, assistimos a processos nos quais os sujeitos existem porque pensados e produzidos em relação a um espaço. Os mortos "em confronto" com a polícia, centro dos controversos "autos de resistência", só podem existir como corpos que habitam e simultaneamente dão sentido a um espaço simbólico específico, a "favela". Do mesmo modo, os solicitantes de refúgio colombianos são compreendidos como provenientes não apenas de um espaço nacional distinto, mas sobretudo de um território de guerra e perseguição, algo tido como pré-requisito para seu reconhecimento como potenciais refugiados.

    O que, de modos sempre distintos, fomos contemplando em nossos trabalhos, porém, é que a essa constituição profundamente "espacializada" das pessoas, corresponde também um conjunto de representações, gestões, práticas e disputas em torno das temporalidades. Em um primeiro plano, considerando os tipos de situações com as quais lidamos, seja no caso dos processos criminais em torno dos assassinatos de moradores de favela ou dos processos administrativos do refúgio, faz-se presente a percepção profunda da ruptura que separa o "tempo de antes" e o "tempo de agora". Vividos como eventos críticos (10), a morte do familiar e a saída do país de origem marcam a dissolução de certa forma de vida e, por isso, a necessidade de alteração de modos de compreender e orientar as ações no tempo atual.

    No caso dos refugiados, o tempo que foi interrompido bruscamente, que nunca voltou ao ritmo que marcava a vida de todos os dias e desabilitou o espaço para ser habitado pelo cotidiano, parece ser um dos aspectos que alguns autores associam à figura contemporânea do refúgio e que podemos, segundo Said (11), pensar como um dos marcadores do exílio. Também no caso dos familiares dos favelados mortos pela polícia, a perda do cotidiano é evocada constantemente, marcando verdadeiro desmapeamento afetivo e moral para aqueles que ficaram, em especial suas mães. Aqui, rotinas perdidas são lembradas com regularidade: a comida preferida, a hora de chegar e sair para a escola ou para o trabalho, as frases que eram usadas regularmente nas conversas. Esse tempo de antes permanece no presente como uma memória envenenada, a reiterar a distância entre a vida de outrora e a de hoje, mas também a impossibilitar o tempo atual de ser reconhecido como um tempo pleno em si mesmo.

    É certa elaboração dessa ruptura que engendra, assim, sujeitos políticos e administrativos de matizes específicos. No caso de nossas pesquisas, poderíamos tomá-los como os "candidatos ao refúgio" e como os "familiares de vítima", ambos inexistentes antes desse evento continuamente lembrado como decisivo. É importante notar, porém, que não é o evento em si que os cria, mas todo um processo complexo de contato com outros atores sociais e instâncias, permeado por experiências tomadas como solidárias, injustas, desrespeitosas etc. À dimensão dramática da ruptura somam-se, assim, novas rotinizações em meio às quais tais sujeitos vão se constituindo. Entre essas rotinizações, estão as peregrinações a agências de Estado, com o acúmulo de documentos variados e a elaboração de expectativas e formas de demanda pelo reconhecimento ou sancionamento legal em torno desse "evento". Cada ida ao Fórum ou às instâncias administrativas do refúgio exige, desse modo, a reelaboração narrativa do tempo passado, selecionando tanto dados de seu cotidiano quanto de seus momentos dramáticos, bem como a gestão do tempo presente e das expectativas em relação ao futuro. Os processos que acompanhamos não deixam de ser, portanto, terreno de disputas sobre a verdade dos sujeitos e dos fatos que eles e outros narram a seu respeito ou a respeito de quem lhes é caro. É sobre esse ponto que nos deteremos agora brevemente.

    CATEGORIAS E ESTRATÉGIAS DA GESTÃO DO TEMPO Tanto os "solicitantes de refúgio", quanto os "familiares de vítimas" precisam, para serem reconhecidos enquanto tal, confrontarem-se com suas principais imagens em negativo, aquelas que representam os espectros aos quais não querem ser identificados e que inviabilizariam os bens de direito que estão demandando. Como já mencionado, no caso dos solicitantes de refúgio o perigo principal está em serem considerados migrantes econômicos e assim catalogados e fixados em lugares geográficos, administrativos e morais distintos daqueles reservados aos primeiros. Pelo lado dos diversos agentes de Estado encarregados de filtrar os "verdadeiros refugiados" dentre uma massa de outras categorias migrantes, por sua vez, há o temor de que com esse equívoco (tomar por refugiado quem é "apenas" migrante) acabem por "corromper a instituição do refúgio", colocando em dúvida sua capacidade profissional para realizar essa seleção tão cara à ordem nacional.

    Nos encontros entre solicitantes e agentes do refúgio acontecem interações nas quais os detalhes da experiência dos sujeitos e sua eficácia na mobilização das emoções de quem escuta são uma parte fundamental. Porém, no processo de seleção, na hora de comunicar uma experiência de perseguição ou sofrimento, não basta uma narração que mobilize certas emoções no ouvinte. Para conseguir a legitimação dessa história, sob a forma de um reconhecimento legal como refugiado, é necessário que a emotividade provocada no agente possa ser construída ou apresentada como uma emotividade experta, como uma compaixão profissional. Isso quer dizer que, para além da empatia pessoal com o outro sofredor, o que está em jogo é a empatia profissional com um tipo determinado de dor e sua capacidade de diferenciá-la de outras dores comuns.

    Tal movimento parece ser a garantia de que a dor das pessoas aceitas como refugiadas seja inscrita em um espaço considerado público para o qual eles, como agentes especialistas do refúgio, estão contratados. Nessa medida, a interpretação adequada do sofrimento dos outros também é uma forma de legitimar o exercício profissional das advogadas, psicólogas e assistentes sociais, inscrevendo-o no espaço da gestão política.

    Já no caso dos familiares, o processo segue, de certo modo, a direção inversa. Tendo sido as mortes registradas como "auto de resistência", resultado, portanto, de suposto confronto armado, cabe a eles lutar para romper essa categoria classificatória em torno da situação da morte, de modo que seu familiar possa ser reconhecido propriamente como uma vítima. As categorias que assombram a vítima e seus familiares estão dispostas na plêiade de termos mobilizada em documentos que fazem parte do próprio processo judicial, como depoimentos e argumentações de defensores e advogados, mas também na mídia: são os "traficantes", "os bandidos" e, mais corriqueiramente, os "vagabundos".

    Em ambas as situações, portanto, está em jogo a fabricação de uma narrativa sobre o passado que tem poder moral, político e administrativo de redefinir o presente e o futuro. Para que essa narrativa seja aceita, porém, são necessárias "provas" de diversas ordens, que falam do "evento crítico" em si mesmo (laudos, perícias, comprovações do "fundado temor de perseguição" etc), mas também da trajetória de vida dos próprios sujeitos. Acumulam-se, assim, nos processos criminais em torno da morte de moradores de favela, boletins escolares, carteiras de trabalho, diplomas de conclusão de curso. Está em jogo, antes de tudo, construir a imagem do "pobre trabalhador", que se antagonizaria a do "traficante" ou "bandido", desfazendo a narrativa encapsulada no "auto de resistência". Quando esta narrativa é relativamente bem sucedida, como já observado em um julgamento, os argumentos tendem a recair sobre a peculiaridade física e moral do espaço: a morte ocorreu por ser a favela uma área de confrontos constantes. A "confusão" entre as personagens pode migrar, assim, nas argumentações dos defensores e advogados, para a "confusão" própria ao espaço, ao território. Sua morte teria sido um infortúnio, sobre o qual os policiais não podem ser responsabilizados (12).

    No caso dos solicitantes de refúgio, o processo de seleção é também uma forma de filtrar as verdadeiras vítimas do conjunto de sujeitos que teriam outro tipo de envolvimento com a guerra e, por isso, com os deslocamentos a ela creditados. Existe, o tempo todo, o risco de estar diante de perseguidores e não de perseguidos e as pessoas solicitantes devem se esforçar para que sua versão os coloque do lado dos que requerem e merecem ser protegidos.

    A gestão das narrativas sobre o tempo é, portanto, fundamental para, de um lado, tentar "comprovar", legitimar e manter a força da própria versão sobre o que aconteceu no evento central ao processo, bem como para precisar a relação entre seus personagens principais: quem foi perseguido, quem é perseguidor, quem é a vítima inocente, quem é culpado (13). Todo esse processo exige, por sua vez, a depuração das ambiguidades, imprecisões e ziguezagues na vida das pessoas. Nessas narrativas fortemente moralizadas sobre vítimas e culpados, é necessário que aqueles que pleiteiam, de algum modo, o estatuto de vítimas – da violência policial; das condições da guerra – apresentemse fora das zonas mais perigosas de dúvida e confusão. Como disse recentemente a mãe de um rapaz morto por policiais militares em uma favela com dois tiros e na frente de diversas testemunhas: "meu filho era drogado, mas não era bandido, não merecia morrer assim".

    Processo semelhante ocorre nas narrativas dos candidatos a refúgio, que buscam encaixar suas lembranças nas causas válidas para solicitar proteção e nos tempos considerados "adequados" para fazê-lo. Um candidato ao refúgio, expressava por exemplo que "eu até poderia voltar sem ser morto na hora, mas se eu falar isso eles não vão me dar o refúgio e eu não quero voltar". De outra parte, expressões como "eu sempre fui um bom cidadão" ou "se eu fosse um criminoso não estaria cá pedindo refúgio" são só algumas das formas mais comuns de se localizar moralmente num espaço marcado pelas experiências de violência e pela ambiguidade do papel desempenhado nessa guerra produtora de deslocamentos (14).

    O tempo como trajetória é vertido em narrativas que precisam conviver, negar ou aceitar as categorias de identificação, matizando-as, dando-lhes outros contornos, inscrevendo o singular do tempo de vida de cada um em meio à padronização e rigidez das classificações e suas oposições vitais (trabalhadores ou bandidos, refugiados ou migrantes). A administração (de justiça, de cidadania, de pessoas e de corpos), para conseguir levar a cabo sua tarefa de gestão, tem que se desfazer dessas ambiguidades, contradições, dúvidas e esquecimentos que costumam caracterizar as experiências vitais das pessoas. Os espaços administrativos destinados a esses fins são eles próprios espaços-tempos limitados: entrevistas de algumas horas para narrar toda a história de perseguição, audiências judiciais, formulários para traduzir o percurso do êxodo e a vida precedente, boletins de ocorrência etc. As "pessoas de papel" encerradas nos documentos são também efeito, assim, de modos de registro peculiares, condições assimétricas de interlocução e momentos circunscritos de fala-escuta-registro.

    Dessa perspectiva, portanto, o próprio desenrolar dos processos pode ser tomado como um tempo não apenas de formulação de narrativas, mas de alteração e fixação do passado e do presente através desses jogos narrativos. Há o que deve ser dito, o que deve ser comprovado, o que não deve ser dito, o que deve ser esquecido e esses limites vão sendo depurados, aprimorados e aprendidos em diferentes situações de interação (15). Poderíamos pensar que nas tentativas de confecção desse passado plausível para os refugiados ou para os mortos da favela vão se tornando cada vez mais presentes também o cálculo e a expertise em relação ao que pode ou não obter sucesso administrativa, judicial ou politicamente.

    Por outro lado, o tempo transcorrido nos processos é um valor em si mesmo. A persistência, a capacidade de permanecer aguardando cada etapa, de não desistir, vão se configurando como substratos morais relevantes, capazes de afiançar a verdade dos próprios sujeitos. A mãe que fica anos a fio "lutando por justiça" comprova, por sua tenacidade e resiliência, que o filho não poderia ser traficante, como declarou um operador do direito em meio a um julgamento. De forma semelhante, o candidato a refúgio que aceita permanecer nas condições que lhe foram oferecidas, mesmo que delas se queixe à pesquisadora e a outros, comprova sua verdade como alguém que efetivamente não pode retornar a seu país de origem.

    Há uma relação importante entre aquilo que é percebido como um tempo lento, de ritmo arrastado ou dado a imprevisibilidades e a escassez dos recursos. A percepção de um tempo adverso, que se precisa saber enfrentar - ou atravessar-é formada pela composição de dois elementos básicos. O primeiro deles é o encontrar-se em posição de inferioridade em termos das decisões a serem tomadas ou dos recursos a serem acessados. É estar dependendo de algum modo de instâncias que parecem deter todo o controle sobre o poder de dar ou não dar tais recursos e, por isso mesmo, de poder fazê-lo de forma que parece sempre escassa, mesquinha e irregular. O segundo elemento é não ter como interferir significativamente no ritmo dos acontecimentos, ficando assujeitado a mudanças repentinas das regras do jogo.

    Estar à espera aparece, assim, como expressão dessa assimetria profunda entre os diferentes envolvidos nos processos administrativos, podendo ser interpretado, nos casos trabalhados por Adriana Vianna, como sinais não apenas de desinteresse ou descompromisso com o que seria "justo" e "certo" (a apuração dos crimes), mas de má fé e comprometimento com "o outro lado", a polícia. Ou, nos casos de refúgio, como uma forma de testagem cruel e adversa, cujo resultado final seria fazer desistir do próprio bem almejado. Como colocou um solicitante: "eles procuram desesperar a gente com tanta espera, para que a gente termine indo embora ou renunciando ao refúgio".

    Tanto nas situações dos familiares de vítimas, como nas situações que envolvem os solicitantes de refúgio, para além das possíveis expressões públicas de revolta ou as queixas mais explicitamente formuladas, a espera parece guardar também um poder corrosivo que afeta as pessoas de modo englobante e profundamente subjetivo. Essa espera minúscula do dia a dia, muitas vezes sem resposta, foi descrita por um solicitante de refúgio como a sensação de se sentir "castrado" e pela irmã de um homem morto pela polícia na favela como ter "a casa desabando". Em ambos os casos, o que se expressa é a percepção da impotência e da fragilidade exacerbada por esse "tempo em suspenso" contínuo, que rouba a força pessoal e esmaga as pessoas, suas relações e seus afetos.

    O idioma principal de contraposição e controle de seus efeitos mais nocivos é o da denúncia ao desrespeito e à desconsideração. Sustentar a espera no tempo presente significa, então, reiterar continuamente o valor da verdade contida no tempo passado: afirmar não esquecer o que ocorreu com o filho morto, não aceitar que sua morte não seja investigada e punida, reiterar as perseguições, perigos e privações vividos antes e durante o processo do refúgio. O descaso ou a má fé experimentados no presente são combatidos com esse estofo moral constituído através da re-narração de si mesmo e de sua trajetória. Mas, também, com a afirmação, sempre que possível, na confiança em um tempo futuro melhor. Esse, porém, se apresenta como incógnita durante a espera. Afirmar a confiança nele é um ato de fé que pode ou não se confirmar, o que faz da espera uma forma peculiar de temporalidade, cujo sentido pleno só poderá ser dado a posteriori, quando será transformada na narrativa épica da superação das adversidades ou no relato melancólico das desconsiderações e derrotas acumuladas.

    Apesar das diferenças do que acontece ao chegar ao território brasileiro entre os solicitantes espontâneos de refúgio e os reassentados, uma sensação comum de impotência e desespero foi descrita pelas pessoas em ambas as situações. Para eles, é particularmente difícil essa combinação da espera - como um tempo que passa sem que nada passe ou em que passa o inapropriado - e o sentimento de precariedade profunda experimentado (16). Nesse sentido, o trabalho sobre o tempo deve ser compreendido como fundamental para preservar o valor das vidas. Os acontecimentos do passado, o sentido que este passado cobra no tempo presente e as possibilidades da própria existência projetada no futuro dependem, em grande medida, da luta por dotar ao tempo, aos espaços e aos corpos que os habitam de um sentido particular que os permita combater a força aniquiladora advinda da produção contínua de sua desimportância social ou de seu descrédito moral.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. As reflexões sobre a relação entre temporalidades e espacialidades que hoje apresentamos surgiram das intersecções que fomos encontrando durante nossas respectivas pesquisas sobre a movimentação familiar e política estabelecida em torno da morte pela polícia de um morador de favela, ou sobre processos de refúgio e reassentamento de colombianos no Brasil. Sobre a pesquisa de Vianna ver: Vianna, A. "Tempos, dores e corpos: considerações sobre a 'espera' entre familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro". In: Birman, P; Leite, M; Machado, C. (orgs). Dispositivos urbanos e tramas dos viventes: ordens e resistências, 2014. Sobre a de Facundo, ver: Facundo, Á. 2014. "Êxodos e refúgio: colombianos refugiados no Sul e Sudeste do Brasil". Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, PPGAS-MN. Defendida em abril de 2014.

    2. Das, V. & Poole, D. "State and its margins: comparative ethnographies". In:______. Anthropology in the margins of the State. New Mexico, School of American Research Press, 2004.

    3. Optamos pela utilização também do termo favelado, que pode ser usado socialmente de forma altamente pejorativa, por ser esse frequentemente o termo de preferência dos militantes e familiares de vítimas com quem Vianna vem trabalhando, em um processo ativo e explícito de reapropriação política e semântica.

    4. Além do trabalho já mencionado de Das e Poole, ambas temos como referência fundamental as discussões formuladas por Antônio Carlos de Souza Lima ao falar das formas de gestão de populações e territórios: Souza Lima, A. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995; inspiradas, por sua vez, em questões sobre administração presentes em trabalhos de Weber e poder, em trabalhos de Foucault, entre outros.

    5. Farias, J. "Governo das mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro". Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia - IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2014.

    6. Ver: Leite, M. As mães em movimento. In: Birman, P.; Leite, M. P. (orgs). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004. Também Machado da Silva, L. A. & Leite, M. "Violência, crime e política: o que os favelados dizem quando falam desses temas?" In: Machado da Silva, L.A. (org.) Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Faperj/Nova Fronteira, 2008. E Oliveira, J. P. de. Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios. Mana [online]. 2014, vol.20, n.1 pp. 125-161.

    7. Estamos trabalhando com a produção da "denúncia" nos termos propostos por Boltanski. Ver, entre outros textos, as formulações presentes em Boltanski, L. La souffrance a distance: morale humanitaire, médias et politique. Paris: Métailié, Collection Leçons de Choses, 1993.

    8. Sobre a relação entre os corpos dos mortos e o espaço da favela, ver também: Vianna, A.; Farias, J.. "A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional". Cadernos Pagu, no. 37, pp.79-116, jul./dez. 2011.

    9. Good, A.. "Anthropologists as expert witnesses political asylum cases involving Sri Lankan Tamils". In: Wilson, R. A.; Mitchell, J. P. (eds.).Human rights in global perspective: anthropological studies of rights, claims and entitlements. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2006.

    10. Das, V. Critical events. An anthropological perspective in contemporary India. Oxford Indian Paperbacks, 1997.

    11. Said, E. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    12. Ver Vianna e Farias, "A guerra das mães", Cadernos Pagu, 2011.

    13. Boltanski, L. La souffrance a distance: morale humanitaire, médias et politique. Paris: Métailié, Collection Leçons de Choses, 1993.

    14. A disputa e, muitas vezes, a ambiguidade, que encerra a categoria de vítima também foi identificada no trabalho de Piscitelli e Lowenkron neste Núcleo Temático da revista Ciência e Cultura. Entre outras considerações muito pertinentes também a nossos campos, as autoras analisam "o desenvolvimento de tecnologias de si que buscam engendrar, até agora de maneira ineficaz, um processo de subjetivação/sujeição moral capaz de despertar nas pessoas tecnicamente definidas como traficadas a consciência de que são vítimas".

    15. Ross, F. Bearing witness: women and the truth and reconciliation commission in South Africa. London: Pluto Press, 2003.

    16. Butler, J. Precarious life: the powers of mourning and violence. New York: Verso, 2006.