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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.3 São Paulo July/Sept. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000300009 

    MUNDO
    APRESENTAÇÃO

     

    Novas óticas

     

     

    Márcio Barreto

    Professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (IEL/Labjor), membro dos grupos de pesquisa CTeMe (IFCH/Unicamp) e CHS (FCA/Unicamp). Email: marcio.barreto@fca.unicamp.br

     

     

    A Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) proclamaram o ano de 2015 como Ano Internacional da Luz, propondo reflexões sobre tecnologias associadas à luz para o desenvolvimento sustentável. Neste sentido, as potencialidades da luz, encerradas em seus mistérios que desafiam a ciência contemporânea a explorá-los, invocam um novo alinhamento dos vetores que orientam a produção científica. Talvez seja preciso salvar a tecnociência de seu tradicional distanciamento de questões que supostamente não pertencem ao seu domínio para, assim, salvar o desenvolvimento de sua insustentabilidade.

    Conscientizar o mundo da importância da luz na criação de um futuro sustentável é o principal objetivo da proclamação do Ano Internacional da Luz. Para tanto, é preciso, de saída, colocar a questão da natureza como pano de fundo para uma série de reflexões que conduzam a pesquisa científica no sentido de enfrentarmos os desafios que despontam no horizonte deste século; ao mesmo tempo, é preciso repensar as relações estabelecidas entre ciência, natureza, sociedade e capital, cuja voracidade está em rota de colisão com a finitude dos recursos naturais. Práticas que ignoram a pertinência de plantas, animais e máquinas à sociedade, da qual os seres humanos fazem parte, parecem estar obsoletas.

    É preciso repensar o que foi considerado progresso nos últimos séculos para que seja possível decidir o futuro do humano, da técnica e da biosociodiversidade, processo através do qual a natureza e a tecnologia formariam um sistema, uma "invenção cultural do humano acordando de seu sonho faustiano de dominação da natureza e que realizaria sua condição como agente informacional que permite ao mundo e ao homem vir a ser" (1).

    O filósofo francês Gilbert Simondon é particularmente interessante para a concepção de uma relação positiva entre a tecnologia e a natureza.

    O objeto técnico, pensado e construído pelo homem, não se limita apenas a criar uma mediação entre o homem e a natureza; ele é um misto estável do humano e do natural, contém o humano e o natural; ele confere a seu conteúdo humano uma estrutura semelhante a dos objetos naturais, e permite a inserção no mundo das causas e dos efeitos naturais dessa realidade humana (...) A atividade técnica (...) vincula o homem à natureza (2).

    Podemos ainda recorrer ao filósofo japonês Keiji Nishitani: se por um lado as máquinas representam o supremo do artifício, um controle sobre a natureza mais abrangente do que o autocontrole da própria natureza, por outro, "na máquina, a natureza é trazida de volta a si mesma de uma maneira mais apurada (abstraída) do que na própria natureza" (3). Talvez seja preciso invocar, tal como faz o xamã, os espíritos da natureza e redescobrir como as pesquisas de ponta da ciência entram em sintonia com as forças que dão sentido à existência humana na Terra.

    Nas Enéadas, o filósofo neoplatônico Plotino insinua a comunhão entre homem e cosmo ao postular que o olho de cada animal é um representante do sol na superfície terrestre: "Se olho não fosse o Sol como poderíamos ver a luz? Se a própria força de Deus não existisse em nós, como poderia o divino nos encantar?" (4). Mas em nosso tempo, o sol de Plotino está muito distante de sua ressonância com o olho. Nesse sentido, o escritor David H. Lawrence é incisivo: "não pense que vemos o sol tal como o viam as antigas civilizações. Tudo o que vemos é uma pequena luminária científica, reduzida a uma bola de gás incandescente"(5).

    Hoje, a embalagem de um protetor solar exposto na prateleira de um supermercado estampa uma imagem ilustrativa do sol, sedutora e ameaçadora a um só tempo: o feitiço da publicidade apresenta a mercadoria como imprescindível para a proteção do consumidor contra a luz do sol. Lawrence continua:

    Nosso sol é coisa muito diferente do sol cósmico dos antigos, muito mais trivial. Ainda vemos aquilo que denominamos sol, mas perdemos o Hélio para sempre. Perdemos o cosmo porque perdemos a nossa relação reativa com ele, e esta é a nossa maior tragédia. O que é nosso mesquinho amor à natureza - à natureza! - em comparação com esta magnífica convivência dos antigos com o cosmo que tanto os honrara? (6)

    A ciência moderna, em sua pretensão de lançar sobre a natureza um golpe de vista dominador, atribuiu racionalidade à distinção entre ela e o homem. O uso do protetor solar traz ao pensamento a rarefação da camada de ozônio, os raios ultravioletas etc. O mesmo ocorre quando usamos um aerossol. Assim, como observou Bruno Latour, pela via do terror, somos reinseridos no mundo dos fenômenos naturais e o meio ambiente deixa a artificialidade de seu status de complementar ao homem, avalizado pelo método científico, para reassumir a unidade com ele.

    A camada de ozônio era uma parte de nossos meios ambientes [no sentido da complementaridade] enquanto estava infinitamente distante do ato prático de apertar um aerossol; ela tornou-se agora uma parte do nosso meio ambiente [no sentido da unidade] porque não podemos mais apertar um aerossol sem nos inquietarmos com a influência assim exercida (7).

    Dos inumeráveis opostos que existem em constante tensão, amor e ódio, frio e quente, dia e noite, masculino e feminino, atração e repulsão, vida e morte, talvez o par luz-treva seja o mais significativo para a cultura, especialmente para a cultura ocidental, na qual a visão goza de um privilégio sobre os demais sentidos. Talvez o ódio não seja a negação do amor, mas sim a indiferença. A treva não é a negação da luz, mas sim a cegueira, cegueira de um tempo em que o olhar está poluído pelas imagens desgastadas de sucesso e de progresso, enquanto uma nova luz passa despercebida. A ciência chama.

    Tomando a complementaridade entre opostos como positividade a ser explorada, os artigos a seguir oferecem ao leitor a possibilidade de construir seu próprio caminho nos múltiplos horizontes que se abrem em suas intertextualidades, de despoluir o olhar através de uma reflexão sem fronteiras disciplinares, com abordagens que se interpenetram em incontáveis combinações.

     

    Referências Bibliográficas

    1. Santos, L. "Tecnologia, natureza e a 'redescoberta' do Brasil". In: Araújo, H. (org). Tecnociência e cultura. Ensaios sobre o tempo presente. São Paulo, Estação Liberdade, 1998. In: Araújo, H. 1998. p. 44.

    2. Simondon, G. "L'individu et as génèse physico-biologique". Coll. Épiméthèe. Paris, PUF, 1964. p. 250.

    3. Nishitani, K. Religion and nothingness. Berkley, University of California Press, 1982. p. 83.

    4. Plotino apud Goethe, J. W. Theory of colours. London, Murray, 1970. p. 80.

    5. Lawrence, D. H. (1990). Apocalipse, seguido de O homem que morreu. SãoPaulo: Cia das Letras, 1990. p. 34.

    6. ibidem: p. 34.

    7. Latour, B. "Crises dos meios ambientes: desafios às ciências humanas". In: Araújo, H. (org). Tecnociência e cultura. Ensaios sobre o tempo presente. São Paulo, Estação Liberdade, 1998. p. 92.