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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.3 São Paulo July/Sept. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000300017 

    A&E

     

    Conservar a fauna aquática para garantir a produção pesqueira

     

     

    Marcelo A. A. PinheiroI; Carlos B. M. AlvesII; Harry BoosIII; Fabio Di DarioIV; Carlos A. FigueiredoV; Flávia L. FrédouVI; Rosangela P. T. LessaVII; Michael M. MincaroneVIII; Carla N. M. PolazIX; Roberto E. ReisX; Luiz A. RochaXI; Roberta A. SantosXII; Sonia B. SantosXIII; Marcelo ViannaXIV; Fábio VieiraXV

    IBiólogo, docente da Unesp, campus do Litoral Paulista. Email: pinheiro@clp.unesp.br
    IIBióloga do Cepta/ICMBio. carla.polaz@icmbio.gov.br
    IIIBiólogo, docente da Unirio. Email: carlos.figueiredo@unirio.br
    IVBiólogo do Projeto Manuelzão, da UFMG. Email: cbmalves@ufmg.br
    VBiólogo, docente da UFRJ. didario@macae.ufrj.br
    VIBiólogo do Centro de Transposição de Peixes da UFMG. Email: eleotris@netuno.lcc.ufmg.br
    VIIEngenheira de pesca, docente da UFRPE. Email: flavia. lucena@pq.cnpq.br
    VIIIBiólogo do Cepsul/ICMBio. Email: harry.boos-junior@icmbio.gov.br
    IXBiólogo do Institute of Biodiversity Science and Sustainability, São Francisco, EUA. Email: LRocha@calacademy.org
    XBiólogo, docente da UFRJ. Email: mvianna@biologia.ufrj.br
    XIOceanógrafo, docente da UFRJ. Email: mincarone@gmail.com
    XIIOceanógrafa do Cepsul/ICMBio. Email: roberta.santos@icmbio.gov.br
    XIIIBiólogo, docente da PUCRS. Email: reis@pucrs.br
    XIVOceanógrafa, docente da UFRPE. Email: rptlessa@gmail.com
    XVBióloga, docente da UERJ. Email: sbsantos@uerj.br

     

     

    A primeira lista da fauna brasileira ameaçada de extinção incluía 42 espécies de répteis, aves e mamíferos (IN IBDF 303/1968). Esse número duplicou cinco anos depois, quando 85 espécies, entre elas o primeiro invertebrado terrestre ameaçado no país, integraram a lista seguinte (IN IBDF 3.481/1973; Quadro 1). Passados 16 anos, a lista quase triplicou, com 219 espécies de vertebrados (exceto os peixes), além de alguns invertebrados terrestres (Portaria Ibama 1.522/1989).

    Em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), mais de 160 países tornaram-se signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Com isso, foram estabelecidas medidas importantes à conservação e uso sustentável do patrimônio biológico natural em nível mundial. No Brasil a CDB foi ratificada pelo Decreto Federal 2.519/1998, que determinou o poder público como responsável pela conservação da fauna, flora e ecossistemas, estabelecendo que o mesmo elaboraria legislação com vistas à proteção das espécies ameaçadas. Com a Política Nacional da Biodiversidade (Decreto Federal 4.339/2002) e, ainda, no contexto da CDB, houve uma revisão da "Lista da Fauna Brasileira sob Ameaça de Extinção". Isso ocorreu entre 2000 a 2004, por consulta a 169 pesquisadores, com uso inédito do método da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). No final daquele processo, 625 espécies de vertebrados e invertebrados terrestres foram categorizadas como ameaçadas de extinção, enquanto nove constaram como extintas (IN MMA 03/2003, IN MMA 5/2004 - Anexo I e IN 52/2005). Um total de 10 invertebrados aquáticos e 37 peixes ameaçados, relevantes à pesca, foram citados como sobrexplotados ou sob ameaça de sobrexplotação (IN 5/2004 - Anexo II). No ano seguinte, com as Metas Nacionais de Biodiversidade (Resolução Conabio 3/2006), foi decidido rever o estado de conservação de todas as espécies de plantas, vertebrados e de grupos-chave de invertebrados, em um processo capitaneado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) coordenou o processo de avaliação da fauna, enquanto a flora foi avaliada pelo Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), resultando nas atuais Listas Nacionais de Espécies Ameaçadas de Extinção publicadas em 17 dezembro de 2014 (Portarias MMA 443, 444 e 445/2014).

    O método da IUCN, que tem sido aprimorado desde a década de 1970, vem sendo aplicado globalmente por diversos países, desde 1994, e pelo Brasil, a partir de 1998 (1). Em nível regional, esse método consiste no uso de 11 categorias na avaliação das espécies. Estas indicam graus diferentes de conservação, desde aquelas em situação melhor ou razoável (Menos Preocupante, LC), até aquelas consideradas extintas na natureza (EX). Três categorias implicam em gradação do risco de extinção, desde o elevado (Vulnerável, VU), muito elevado (Em Perigo, EN) e intensamente elevado (Criticamente em Perigo, CR) (2).

    Essa categorização é feita pela aplicação de cinco critérios técnicos (A-E), definidos em limiares quantitativos: (A) redução populacional (passada, presente ou prevista no futuro); (B) distribuição geográfica (restrita ou fragmentada, que implique em declínio populacional por redução de área/qualidade do habitat); (C) tamanho populacional pequeno e em declínio; (D) número de indivíduos maduros reduzido ou distribuição geográfica muito restrita; e (E) análises quantitativas que indicam probabilidade de extinção.

     

    Portaria MMA 445/2014 e proteção às espécies aquáticas ameaçadas

    Nas Portarias MMA 444 e 445/2014 constam 1.173 espécies de animais ameaçados, correspondendo a 9,6% das 12.256 espécies avaliadas de vertebrados nativos do Brasil e de grupos-chave de invertebrados categorizados como VU, EN ou CR (3). Essas listas resultaram de um processo iniciado em 2008, envolvendo cerca de 1.300 pesquisadores brasileiros e do exterior, oriundos de universidades, centros de pesquisa, ONGs e da própria IUCN. No total foram realizadas 59 oficinas. Nas oficinas de avaliação as informações de cada espécie, incluindo o conhecimento inédito de especialistas, foram analisadas segundo os critérios da IUCN. As oficinas de validação, por sua vez, consistiram na verificação da aplicação adequada dos critérios e categorias propostas durante as avaliações. A Portaria 445/2014, em particular, regula a captura, uso e comercialização de 409 espécies de peixes e 66 invertebrados aquáticos (figura 1). Nela, os elasmobrânquios marinhos representam 56,1% de todos os peixes ameaçados de extinção no Brasil, além de representarem 82,4% das espécies categorizadas como Criticamente em Perigo (CR), refletindo a condição alarmante em que esse grupo encontra-se mundialmente (4).

     

     

    Espécies aquáticas: três exemplos emblemáticos

    A seguir são citadas três espécies emblemáticas da fauna aquática, que constam da Portaria 445/2014.

    O guaiamú (Cardisoma guanhumi) é um caranguejo endêmico de estuários brasileiros, associado à feição "apicum" dos manguezais, uma região mais arenosa, salina e de menor inundação pelas marés. Este animal possui crescimento lento, ocupando áreas restritas, a maioria delas com qualidade ambiental alterada ou que vêm sendo suprimidas pelo homem. A espécie é alvo da pesca artesanal, com redução de seus estoques naturais e declínio populacional mínimo estimado de 88% ao longo de três gerações (22 anos). Assim, foi classificado como Criticamente em Perigo (CR), o que impactará algumas comunidades tradicionais do nordeste brasileiro, onde sua extração é mais frequente. O cação-anjo (Squatina guggenheim) também foi categorizado como Criticamente em Perigo (CR), principalmente devido à pesca intensa e direcionada, nas décadas de 1970 e 1980 no sul do Brasil, que resultou em declínio populacional acentuado e bem documentado. Certas características biológicas da espécie, como o crescimento lento, baixa fecundidade e distribuição agregada, fazem com que ela seja sensível a esse tipo de impacto. O setor pesqueiro industrial vem exercendo forte pressão para que a captura comercial dessa espécie seja liberada, apesar da impossibilidade disso frente à sua categoria de ameaça.

    O pargo-verdadeiro (Lutjanus purpureus) foi um recurso pesqueiro relevante no litoral nordeste do Brasil nas décadas de 1960 a 1980, até o colapso pesqueiro naquela região. Atualmente, a frota explora novas áreas no norte do Brasil, onde sua pesca ainda é economicamente viável. Devido ao declínio populacional severo e bem documentado, essa espécie foi caracterizada como Vulnerável (VU). Sua pesca no futuro imediato dependerá da elaboração (e aprovação) de um plano de exploração pautado em ordenamento pesqueiro consciente. A longo prazo, espera-se que tais medidas revertam na recuperação do estoque em toda sua distribuição.

     

    Conservação e exploração são dois lados de uma mesma moeda

    Logo após a publicação da Portaria MMA 445, em 17 de dezembro de 2014, organizações do setor pesqueiro industrial começaram a questionar sua validade, assim como os próprios critérios da IUCN empregados no processo de avaliação (5). Apesar desse alarde, apenas 17% das espécies (31 elasmobrânquios, 47 teleósteos e quatro invertebrados) são explorados comercialmente, representando apenas uma pequena fração da produção pesqueira do Brasil.

    O estado de Santa Catarina possui um dos principais portos de desembarque da pesca industrial do país (Itajaí/Navegantes). Os boletins estatísticos da pesca industrial daquele estado (6), por exemplo, indicam que menos de 2% dos desembarques na região sudeste-sul brasileira são constituídos por espécies que integram a Portaria MMA 445/2014. Por outro lado, 70% da produção pesqueira desembarcada naquela localidade era composta por 10 espécies de peixes, nenhuma delas incluída nessa Portaria. Portanto, a alegação de que a Portaria 445/2014 impede o desenvolvimento pesqueiro do Brasil é, no mínimo, exagerada. Poupar 2% do total desembarcado não comprometerá a disponibilidade do pescado ao consumidor final, mas possibilitará a exploração racional dessas espécies mais sensíveis, que não suportam uma atividade extrativa intensa (7).

    Algumas organizações da pesca industrial brasileira têm utilizado sua influência política para tentar alterar o conteúdo da Portaria 445/2014, ou para revogá-la em sua totalidade (5). Tal situação se assemelha ao lobby do agronegócio no enfraquecimento da nova redação do Código Florestal Brasileiro (8), principalmente no retrocesso pela redução da faixa das matas ciliares e exclusão da feição "apicum" como zona de amortecimento dos manguezais. Tal situação é preocupante, pois a alteração dos conteúdos da Portaria 445/2014 seria um imenso retrocesso à conservação dos organismos aquáticos brasileiros, ainda mais considerando a expressiva pressão sofrida pelos recursos marinhos neste último século (9). Seria esperado do setor pesqueiro a proposição de ações mais efetivas em prol da sustentabilidade pesqueira, da qual, obviamente, depende. Parcerias duradouras e bem planejadas entre o setor pesqueiro industrial e os ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da Pesca e Aquicultura (MPA) deveriam ser estabelecidas, para a implantação de estratégias de manejo da biodiversidade, que infelizmente faltam no Brasil (5; 10). Tais ações conjuntas são vitais à manutenção dos estoques pesqueiros brasileiros, que têm sofrido intensa sobrexplotação (10; 11). Além disso, a maioria dos peixes de interesse comercial na Portaria 445/2014 foi categorizada como Vulnerável (VU), o que assegura a possibilidade de sua captura e comércio, desde que sejam seguidas medidas de ordenamento específicas, devidamente aprovadas e reguladas pelos órgãos federais. Essa portaria prevê, também, a revisão do estado de conservação dessas espécies a cada cinco anos, desde que haja novas informações técnicas. Estratégias de manejo apropriadas, aliadas a um sistema de monitoramento permanente sobre os estoques, podem resultar na redução do risco de extinção de espécies que hoje são legalmente protegidas. Esse cenário, almejado pelos biólogos da conservação, deveria também ser a meta principal do setor pesqueiro industrial, pois isso idealmente viabilizaria a exploração e manutenção de recursos pesqueiros considerados relevantes pelo próprio setor a longo prazo. Nesse contexto, o monitoramento das capturas incidentais de pescado no litoral brasileiro, assim como a compilação de mais informações de cruzeiros de pesquisa para as novas avaliações são extremamente necessários. Somente assim teremos possibilidade de recuperar estoques pesqueiros no Brasil, uma condição amplamente defendida pelo setor pesqueiro. Embora recursos naturais sejam públicos, eles não são necessariamente de livre acesso, estando sua conservação e gestão sob os cuidados do poder público e da coletividade, conforme determina a Constituição Federal Brasileira. As futuras gerações brasileiras não podem ser privadas de sua biodiversidade, principalmente daquela considerada recurso pesqueiro. Para assessoramento nas demandas relacionadas à portaria das espécies ameaçadas, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) pelo MMA, constituído por 44 membros, incluindo especialistas em fauna, representantes da sociedade civil e dos pescadores artesanais (Portaria MMA 23/2015). Além disso, recentemente, foi publicada a Portaria MMA 98/2015, que alterou parcialmente a Portaria 445/2014. A principal alteração foi a prorrogação em seis meses (para dezembro de 2015) do prazo de elaboração dos planos de gestão das espécies na categoria VU com importância pesqueira, ficando assegurada proteção integral às espécies EN e CR a partir de junho de 2015. Em um cenário otimista, essas ações recentes podem representar uma tentativa de equalizar os interesses do setor pesqueiro e conservacionista. Um cenário pessimista, por outro lado, sugere uma desconstrução gradual da Portaria MMA 445/2014, talvez iniciada com essa alteração em relação às espécies Vulneráveis (VU).

    O ponto crucial dessa discussão é a relevância e credibilidade das Listas Vermelhas como instrumentos de gestão da biodiversidade. Essas listas são essenciais ao cumprimento dos compromissos internacionais já assumidos pelo governo brasileiro, em especial a CDB e Metas de Aichi. Assim, mudanças de conteúdo na Portaria 445/2014, apenas em função da pressão econômica ou política de setores específicos, seriam um caso flagrante de violação dos acordos internacionais de conservação, contrários às tentativas do Brasil de proteger sua riqueza biológica e a própria pesca. Outra demanda do setor pesqueiro industrial é a alteração das categorias de ameaça de algumas espécies listadas nessa portaria. Alterações dessa natureza, sem o aporte de informações técnicas confiáveis, representariam mais um caso onde o conhecimento técnico-científico é ignorado em prol de interesses econômicos imediatistas. Tais preocupações ganham ainda mais destaque em um momento onde a agenda de outros setores do governo brasileiro, também cruciais à conservação e uso sustentável dos recursos, são extremamente questionáveis (12; 13).

     

    Notas e Referências Bibliográficas

    1. IUCN. IUCN Red List Categories. Cambridge: U.K. 1994

    2. IUCN. Guidelines for using the IUCN Red List categories and criteria. V. 11. 2014.

    3. Brasil, MMA. Portarias nº 443, 444, 445, de 17 de dezembro de 2014. Diário Oficial da União, Seção 1 (245): 110-130, 18 Dezembro 2014. 2014.

    4. Dulvy, N.K.; et al. eLife, 1-35. 2014.

    5. Di Dario, F.; et al. Science, 347, 1079. 2015.

    6. CEPSUL. Nota de esclarecimento sobre a Portaria MMA 445/2014. Disponível em: <http://www.icmbio.gov.br/cepsul/destaques-e-eventos/496.html>. Acesso em: 17 Maio 2015.

    7. Hardin, G. Science, 162, 1243. 1968.

    8. Soares-Filho, B.; et al. Science, 344, 363. 2014.

    9. McCauley, D. J.; et al. Science, 347, 247. 2015.

    10. Elfes, C. T.; et al. PLoS ONE 9, e92589. 2014.

    11. Brasil, MMA. Relatório Executivo Programa Revizee: Avaliação do potencial sustentável de recursos vivos na Zona Econômica Exclusiva. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. 2006.

    12. Wade, L. Science News. Disponível em: http://news.sciencemag.org/climate/2015/01/climate-change-skeptic-takes-reins-brazil-s-science-ministry. Acesso em: 17 maio 2015.

    13. Tollefson, J. Nature, 517, 251. 2015.