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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.3 São Paulo jul./set. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000300018 

    CULTURA
    BIG BROTHER INFANTIL

     

    Privacidade e contato prematuro com internet são polêmicas causadas por nova boneca

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

    Ela tem um microfone embutido que capta os sons ao redor. Uma conexão Wi-Fi envia esses dados para os servidores do fabricante onde poderão ser armazenados e analisados. Além disso, ela pode aumentar seu repertório de palavras conforme vai sendo utilizada. Não, não estamos falando de um novo aplicativo de celular ou de um novo computador portátil. A descrição acima é de uma boneca, a Hello Barbie, lançamento da fabricante de brinquedos norte-americana Mattel, que deve chegar às prateleiras das lojas nos Estados Unidos em outubro deste ano. Em um mundo onde as crianças entram cada vez mais cedo no mundo digital, a Hello Barbie pode ser interpretada como uma tentativa de trazer os produtos da gigante dos brinquedos para o século XXI para atrair esses consumidores e, com isso, vender mais bonecas. Segundo comunicado da Mattel, as vendas globais caíram 6% no quarto trimestre de 2014. Mas, que desafios e implicações uma boneca conectada com a internet nas mãos de crianças, em geral menores de 10 anos, representa para os pais e para a própria criança? Susan Linn, psicóloga e diretora da campanha por uma infância sem comerciais pediu o fim da produção da nova Barbie. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em março deste ano, ela afirmou que quando as crianças fa-lam com brinquedos, elas podem revelar segredos, trabalhar experiências perturbadoras e explorar seus sonhos e esperanças e que esse conteúdo deveria permanecer restrito ao ambiente familiar e não ser exposto a uma grande corporação cujo interesse é financeiro.

     

    Big brother infantil

    A nova boneca falante da Mattel entra na categoria dos chamados smart toys ou brinquedos inteligentes que podem interagir com crianças por meio de uma série de recursos tecnológicos que permitem, por exemplo, que eles aceitem comandos de voz, mexam partes do corpo, respondam a perguntas etc. Os mais modernos podem ainda ser conectados com outros dispositivos, caso da Hello Barbie. A nova boneca funciona da seguinte maneira: ao apertar um botão na cintura da boneca, ela começa a "escutar" o que a criança diz. O texto é gravado e enviado via Wi-Fi para um servidor da ToyTalk, uma start-up com sede na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, que desenvolveu o software para a Mattel. Na empresa a fala da criança é reconhecida e processada e, com esses dados, a Barbie pode dar respostas inteligentes. Se a criança fala o nome de sua professora ou do seu cachorro, por exemplo, a Hello Barbie pode mencionar isso em uma conversa posterior. A boneca também pode participar de jogos interativos e contar histórias. O software permite ainda que os pais limitem os assuntos sobre os quais a Barbie pode conversar e que eles recebam e-mails com o conteúdo das conversas com a criança. Para o advogado Dennys Antonialli, diretor do InternetLab, Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia, o problema está tanto na coleta dos diálogos que, no caso da criança, podem ser especialmente fantasiosos, íntimos ou inocentes, quanto no tratamento que é dado a eles por parte da empresa. "Como garantir para quais finalidades serão usados? Como garantir a segurança desses registros para que eles não vazem e cheguem às mãos de terceiros?", questiona.

     

    Ameaça à privacidade

    No lançamento da boneca, no início deste ano, Mattel e ToyTalk afirmaram que a coleta de dados tem como finalidade melhorar o sistema de reconhecimento de voz e que os dados não podem ser usados para marketing ou publicidade, embora ainda não tenham divulgado uma política de privacidade para o novo brinquedo. "Confiar a uma empresa registros sobre o que a criança fala enquanto manuseia um brinquedo equivale a dar a essa empresa acesso aos desejos e fantasias da criança. Bonecas, em especial, são figuras que as crianças assumem como amigas e confidentes. Essas são informações que não são úteis apenas para personalizar a interação da boneca com a criança, como defende a empresa, mas, também, para estudar seu comportamento. Isso pode gerar perfis bastante detalhados sobre as preferências de cada criança, perfis esses que podem servir a finalidades indesejáveis, como a publicidade. A existência desses perfis detalhados sobre a personalidade das crianças e suas famílias é uma séria ameaça à sua privacidade", acredita Antonialli.

     

     

    Ele observa ainda que à medida que a empresa "aprende" mais sobre a criança, mais ela tem capacidade para tornar a boneca especialmente persuasiva. "Se a criança revela que gosta de tomar sorvete, não parece razoável que a boneca 'sugira' que a criança peça de aniversário uma máquina de fazer sorvete fabricada pela mesma empresa?", diz o advogado. Além da questão da publicidade, Susan Linn lembra também que a empresa terá acesso a todo tipo de diálogo produzido pela criança e sua família. "E se as crianças mencionarem assuntos delicados, como violência ou abuso por parte de familiares ou conhecidos, como a empresa lidaria com informações como essas?", questionou Linn. Em 1938, o filósofo e historiador Johan Huizinga já dizia que o brincar é um instinto natural do ser humano. Brincadeiras são um modo aprender a lidar com as situações da vida. Os brinquedos são ferramentas de representação do mundo real. De acordo com a psicóloga e presidente da Associação Brasileira de Brinquedotecas (ABBri), Maria Célia Malta Campos, bonecas, por exemplo, são objetos lúdicos privilegiados para a evocação de experiências, como a relação entre mãe e filho(a). "A linguagem e as imagens internas se entrelaçam e a criança dialoga com sua boneca, expondo todo um mundo interno. Por isso essas brincadeiras de faz de conta são tão valorizadas na ludoterapia", explica. Ela também acredita que há perigo de invasão de privacidade se a criança utilizar todos os recursos disponíveis na nova boneca da Mattel. "A criança não censura o que fala ou o que faz com um brinquedo, ela se abre espontaneamente, ao contrário do que faria se estivesse em uma entrevista com um adulto, por exemplo", diz.

     

    O futuro do brincar

    A pesquisa Kids Online Brasil, feita pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), da Unesco (2013), mostrou que as crianças estão tendo contato com a internet cada vez mais cedo, 44% delas com menos de 10 anos já acessaram à rede. E esse contato é feito também por meio de redes sociais, mesmo que boa parte delas exija uma idade mínima para o cadastramento. As crianças nascem e crescem em um ambiente em que seus pais, e elas mesmas, expõem suas vidas na internet. Será, então, que faria sentido questionar a segurança de uma criança em brincar com uma Barbie conectada à internet?

    Para o diretor do InternetLab, faz todo sentido. "Em primeiro lugar, porque o público infantil merece atenção e cuidados redobrados. A criança, em geral, não tem discernimento para avaliar as consequências de revelar determinadas informações para uma empresa, além de ser mais vulnerável à manipulação", afirma Antonialli. Segundo ele, é por essa razão que, nos Estados Unidos, há uma legislação especial e robusta dedicada especificamente à proteção dos dados pessoais das crianças (Children's Online Protection Privacy Act). Ela estabelece critérios rigorosos para a coleta de dados de crianças e impõe obstáculos para a utilização desses dados para fins publicitários. No Brasil, ainda não há uma legislação sobre proteção de dados pessoais, o que deixa as crianças infinitamente mais expostas. Está, atualmente, em fase de consulta pública um anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais, elaborado pelo Ministério da Justiça.

    Segundo Maria Célia Campos, da ABBri, brinquedos e brincadeiras são ferramentas de socialização, com alto potencial para gerar imagens e linguagem. "Defendemos um brincar livre e criativo, autodirigido pela criança", diz. "Os diálogos da boneca não são inventados pela própria criança, assim perde-se esse espaço transitivo entre realidade-fantasia. Tudo é 'de verdade' já que sua fala é programada a distância, por uma central informatizada do fabricante, de acordo com o que surge de interação da criança com a boneca. Podemos dizer que esse caso é um exemplo contundente do pragmatismo consumista versus uma posição respeitosa para com a infância", finaliza.