SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.67 issue3 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.3 São Paulo July/Sept. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000300021 

    CULTURA
    POESIA

     

     

    Márcio-André

     

     

    poderia ter nascido em cada cidade do mundo
    com uma roupa diferente
    em uma casa diferente
    e poderia ter tido
    os mesmos amigos com outros nomes
    e falar tudo outra vez
    em diferentes línguas
    para chegar a este mesmo instante
    vindo de distintas trajetórias:
    há tantos
    infinitos dentro do infinito
    e tantos nomes para a infinita possibilidade
    de ser quem se é
    que o infinito não se reduz à semântica de infinito:
    num café de cada cidade
    o mesmo grupo de gente
    repetindo-se em outras caras
    cumprindo os mesmos gestos
    diante das mesmas piadas:
    por mais distantes ou alheios
    os lugares permanecem lá
    à espera
    do jeito que sempre foram
    na nervura luminosa da noite
    suportando em si a mecânica de se vivê-los
    mudar de país já não faz diferença
    os feriados são os mesmos
    com datas distintas
    os sotaques são os mesmos
    para outros ouvidos
    a burocracia é a mesma
    com outros nomes para os papéis:
    se pudéssemos morrer somente uma parte
    - essa que é infeliz -
    seria sim possível partir de um lugar a outro
    como se fosse mera questão
    de deslocamento espacial
    mas é preciso levar todos os deuses dentro de si
    ante o trânsito das horas:
    o que demarca as etapas da vida
    são as mudanças do número de telefone
    e delas herdamos apenas
    as infinitas possibilidades
    de uma chamada por engano:
    nenhum lugar cabe totalmente em nós
    com suas pedras e suas pontes
    com seu ar cheio de cor
    a volta das borboletas
    ao viver na convergência das línguas
    conhecemos a dinâmica entre os acentos:
    mudar de país já não faz diferença
    as vidas ali são as mesmas
    em outras pessoas
    um homem fala
    diariamente ao cão
    o cão compreende até
    onde o afeto permite -
    o homem se humaniza com o que há
    de humano no não compreender dos cães
    como se preexistisse animal
    no fim do animal
    ou fosse canto de outro canto
    no antidizer do latido
    ainda perto de onde estamos
    quando somos o outro
    no oráculo dos afetos:
    as cidades não estão somente no espaço
    estão no tempo e nós
    no tempo delas
    aprendendo sobre o mal:
    no limite do pátio
    o cão mija num limoeiro dourado
    fazendo celeste o seu entender
    de onde começa o cão
    de onde acaba o homem

     

     

    Márcio-André é escritor, performer, artista sonoro e visual, nascido no Rio de Janeiro em 1978, é autor de livros de poesia, ensaios e novelas. Colaborou com jornais e revistas, tais como O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de Minas. Foi traduzido para dez idiomas, integrando antologias nacionais e internacionais e aparecendo em edições de revistas como Neue Rundschau (Alemanha), Rattapallax (EUA), Action Poétique (França), Poesia Sempre (Brasil), Tuli & Savu (Finlândia), Avocado (Reino Unido), Oficina de Poesia (Portugal) e Téchne (Itália). É também editor e um dos fundadores da editora, produtora e coletivo Confraria do Vento.

     

     

    Os poemas aqui publicados pertencem ao livro Poemas apócrifos de Paul Valéry.
    Traduzidos por Márcio-André. Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2014