SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.67 número4 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.4 São Paulo oct./dic. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000400006 

    MUNDO
    ARQUEOLOGIA

     

    Complexo arqueológico busca aproximação com comunidade por meio do turismo

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

     

    Carne com marisco em estrutura de cuvete, cozida no chão forrado com seixos de rio previamente aquecidos e coberta por pele de animal e folhas; coelho cozido em panela de barro neolítica ou preparado na grelha de madeira sobre o fogo e lentamente umedecido com mel e ervas até estar pronto; truta temperada com ervas aromáticas, enrolada em folhas largas e cozida sobre casca de árvore coberta com argila; carne no espeto de pau e cozida diretamente no fogo durante várias horas. Como acompanhamentos: frutos silvestres, frutos secos e infusões. Esse foi o cardápio do jantar neolítico que aconteceu em agosto deste ano no Complexo Arqueológico dos Perdigões, localizado na cidade portuguesa Reguengos de Monsaraz, no distrito de Évora, região do Alentejo. O objetivo dos organizadores, a Era Arqueologia e a prefeitura da cidade, era oferecer aos cerca de 50 visitantes a experiência da cozinha pré-histórica, a partir das informações obtidas nas escavações nesse que é um dos maiores complexos arqueológicos já encontrados na Europa.

    Além do jantar, os visitantes puderam participar de oficinas de argila para aprender as técnicas para produção de recipientes cerâmicos ou de adornos pré-históricos feitos com ossos ou conchas. As atividades turísticas são uma das iniciativas mais recentes da Finagra S.A., empresa portuguesa produtora de vinhos e azeite e proprietária das terras onde está situado o complexo arqueológico. Além de divulgar as atividades científicas desenvolvidas na área por meio do turismo, a empresa quer utilizar os recursos advindos da atividade como uma das fontes de financiamento da pesquisa e manutenção do sítio.

    Nesse sentido, Perdigões pode ser um exemplo, na área de gestão de patrimônio, de que é possível conjugar de forma harmônica: o estudo e a preservação, participação da comunidade local, turismo e a atividade econômica.

     

    DIVIDINDO ESPAÇOS

    Construído há cinco mil anos, no período Neolítico, considerado o último da pré-história, o Complexo Arqueológico dos Perdigões é um conjunto de recintos circulares e genericamente concêntricos que se desenvolveram a partir de um ponto central. De acordo com Miguel Lago, da Era Arqueologia, empresa que presta serviços na área do patrimônio histórico-arqueo-lógico, o sítio foi descoberto em 1983, mas a real dimensão do conjunto só seria conhecida em 1996, quando a Finagra adquiriu a propriedade com intenção de plantar vinhas. "Na ocasião as atividades agrícolas foram suspensas e iniciaram-se os primeiros trabalhos de diagnóstico", conta. As pesquisas ficaram sob a responsabilidade da empresa Era Arqueologia. O diagnóstico revelou a existência de cemitérios e de recintos megalíticos - conjuntos de construções feitas com grandes blocos de pedras -edificadas essencialmente no período neolítico com finalidades simbólicas, religiosas ou funerárias. Em quase vinte anos de escavações, várias foram as descobertas em Perdigões. Hoje se sabe que teria sido palco de cerimônias de culto aos mortos e antepassados.

    Foi encontrado ainda um local de deposição de crânios humanos, alguns deles com sinais de que foram queimados, um indício de que alguns mortos eram cremados. Toda a pesquisa conduzida na região só foi possível a partir da intervenção do Instituto Português do Património Arquitetônico (Ippar) junto à Finagra. Com isso, a área do sítio, com cerca de 20 hectares, foi transformada em reserva arqueológica e pode ser preservada.

     

    ARQUEOLOGIA EM CONSTRUÇÃO

    "Desde o início tentamos imprimir um caráter inovador no processo de investigação arqueológica em Perdigões", contra Lago. Segundo ele, tradicionalmente esses processos têm pouca ou nenhuma articulação com o meio social em que se insere.

    "No entanto, quando os trabalhos se iniciaram, vivíamos um momento de mudança na metodologia da disciplina de arqueologia em Portugal, com uma abertura que implicava em pensar também no retorno social desses estudos". Porém, a preservação de um patrimônio somente se justifica na criação de valor para a sociedade, acredita o arqueólogo. Isso implica que o conhecimento não é a representação de uma "verdade científica", mas resulta da construção de verdades negociadas, é sempre relativo e provisório, e que deve, acima de tudo, ser compartilhado.

    Em 2004, por exemplo, a Era Arqueologia inaugurou o Centro Interpretativo da Torre do Esporão, com uma exposição dos primeiros resultados da intervenção do sítio voltada para o público não especialista. Além disso, a partir desse ano, as escavações passaram a ser abertas a visitas públicas integradas às atividades de enoturismo que já existiam na propriedade. "Ao mesmo tempo, é fundamental garantir a qualidade das pesquisas feitas em Perdigões, por isso os resultados são divulgados periodicamente em revistas científicas e congressos. A qualidade e o prestígio da produção científica são fundamentais para termos reconhecimento dentro e fora da academia", afirma Lago.

     

    ESTRATÉGIAS DE LONGO PRAZO

    As investigações em Perdigões buscavam responder aos desafios colocados pela cultura material, isto é, pelos objetos e configurações no espaço do sítio, mas também pensavam questões relacionadas à projeção daquele patrimônio em longo prazo: como esse sítio vai se manter?; Como continuar a produzir conhecimento?; Como assegurar a democratização desse conhecimento? "A despeito de sua importância histórica, é muito difícil depender apenas de subsídios para pesquisa. Temos que encontrar formas do projeto se autofinanciar, mesmo que parcialmente", acredita Lago. Sua continuidade, portanto, depende de um modelo de financiamento diversificado, que inclui a geração de receitas. Com essa dimensão ampla, o projeto em Perdigões passou a incorporar profissionais da área de comunicação, finanças e estudos de mercado. A ideia é criar um produto cultural que proporcione uma experiência para o turista. "Estamos em uma região em que já existe intensa atividade turística, particularmente ligada ao vinho e à gastronomia", conta Miguel Lago. Em 2015, por exemplo, Reguengos de Monsaraz foi considerada "Cidade Europeia do Vinho", pela Rede Europeia de Cidades do Vinho (Recevin), que congrega associações nacionais de vinho de quase 800 cidades em toda a Europa. "Evidentemente que não estamos falando em um turismo de massa, mas temos que levar em conta que desfrutamos de uma posição estratégica para atrair turistas", aponta.

     

     

    ELO COM O PÚBLICO

    O jantar neolítico e as oficinas, realizadas em agosto deste ano em Perdigões, eram parte de uma programação de uma semana que incluiu ainda palestras e visitas monitoradas ao sítio. "Abrimos 25 vagas e a procura chegou ao dobro, mostrando que há um público potencial interessado em pré-história", conta Lago. Para fortalecer a comunicação com o público, a Era Arqueologia utiliza intensamente as redes sociais, com a publicação de textos curtos e fotos produzidos ainda em campo e que acabam produzindo boa repercussão com dados científicos. "Isso gera um interesse, especialmente da comunidade local que, por conhecer aquele território, se identifica com nossas descobertas", enfatiza o arqueólogo. Para ele, entre os próximos desafios estão aumentar a frequência de atividades turísticas, como o jantar neolítico, e envolver essa comunidade local não somente como audiência, mas como força de trabalho. "Arqueologia não é uma questão privada, toda a cultura material com a qual lidamos, todo o conhecimento que produzimos é público e deve ser gerido e compartilhado de maneira conjunta", finaliza.