SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.67 número4 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.4 São Paulo oct./dic. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000400022 

    POESIA

     

    Nota sobre Lícofron

     

     

    Trajano Vieira

    Doutor em literatura grega pela Universidade de São Paulo e professor de língua e literatura grega no IEL da Unicamp, onde obteve o título de livre-docente em 2008. Foi bolsista da Fundação Guggenheim (2001), com estágio pós-doutoral na Universidade de Chicago (2006) e na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris (2009-2010). Além de ter colaborado, como organizador, na tradução realizada por Haroldo de Campos da Ilíada de Homero (2002), tem se dedicado a verter poeticamente tragédias do repertório grego, como Édipo Rei (2001) e Filoctetes (2009), de Sófocles; Agamêmnon (2007) e Os persas (2013), deEsquilo; e Medeia (2010), de Eurípides. Trajano é também o tradutor das comédias Lisístrata e Tesmoforiantes de Aristófanes (2011) e da Odisseia de Homero (2011). Suas versões do Agamêmnon e da Odisseia receberam o Prêmio Jabuti de Tradução. Atualmente prepara uma edição do Alexandra de Lícofron

     

     

    Tão enigmático quanto o longo poema Alexandra, com seus 1474 versos, é a identidade de seu autor. A informação mais antiga de que dispomos consta da Suda, a erudita enciclopédia histórica bizantina do século 10 de nossa era. A notícia sobre Lícofron contida nessa obra teria como fonte Hesíquio. Segundo o verbete, Lícofron foi um dos sete membros da chamada plêiade alexandrina. Teria escrito um bom número de tragédias, um tratado sobre comédia e o único texto integral remanescente, Alexandra, denominado, não sem razão, skoteinónpoiema, "poema obscuro". Segundo a Suda, o autor teria vivido durante o reinado de Ptolomeu Filadelfo II, no século 3 a. C. Ocorre que os versos 1226-1235 anunciam e louvam o poderio romano, algo que dificilmente poderia ter se dado na corte do renomado faraó. Por esse motivo, vários comentadores modernos sugerem que o poema foi composto por um segundo Lícofron, não no século 3 a. C., mas no seguinte. Ainda hoje não há consenso sobre a datação do texto.

    O poema emprega com maestria o mesmo metro da tragédia, o trímetro jâmbico. Por esse motivo, já foi lido como um monólogo trágico. Contudo, há nele aspectos da narrativa épica e, embora menos frequentes, tiradas cômicas. Sua linguagem é complexíssima e sua sintaxe parece dar vazão a um fluxo delirante. A coerência dessa elocução possessa reflete a identidade de Cassandra, ou como o poema prefere denominá-la: Alexandra. Como se sabe, sobretudo a partir da tragédia Agamêmnon de Ésquilo, essa filha de Hécuba e de Príamo e irmã de Heitor e Páris é uma sacerdotisa de Apolo, a qual, por recusar o contato amoroso com o deus, não consegue comunicar suas previsões. Sua identidade vincula-se ao fenômeno da "incomunicação", a tensão psíquica resultante da fala abortada. É assim pelo menos que ela é representada no drama esquiliano. Contribui com essa caracterização o fato de que o oráculo era pronunciado, na cultura helênica, na forma de enigma, que impunha decifração e análise por parte do consultante. Essa construção retórica tem a ver com a concepção grega arcaica sobre a natureza ambígua da linguagem, cujo sentido não coincide com a expressão imediata. O exercício hermenêutico impunha-se pela opacidade dos signos. No poema de Lícofron, deparamo-nos com uma linguagem desconcertante por seu caráter alusivo, pela compactação de episódios mitológicos e pela invenção vocabular que nos faz pensar na literatura experimental do século 20. Alguns helenistas preferem entrever nele certos procedimentos barrocos.

    Cabe notar, apenas com o intuito de introduzir o leitor na rica tessitura dessa obra enigmática, de que apresento a tradução dos 85 versos iniciais, que o que lemos é o relato de um mensageiro a Príamo, do que afirma ter ouvido da boca de sua filha Alexandra.

     

    ALEXANDRA

    Relatarei com precisão o que me indagas,1
    do pico do princípio. Caso me delongue,
    queiras me desculpar, pois não tranquila a moça
    franqueou a boca variegada dos oráculos
    como antes, mas ecoando um grito indiscernível,
    apolizava da laurívora garganta,
    reproduzindo a voz da Esfinge enegrecida.

    O que retêm minha memória e coração,
    poderias ouvir e, repisando, rei,
    na mente aguda, segue as vias indizíveis
    desenrolando enigmas, onde a trilha lúcida
    por senda reta nos conduz na escuridão.

    Rompida a corda no seu ponto mais extremo,
    percorrerei o curso de sua fala oblíqua,
    alado corredor abalroando o marco.

    Sobrevoava há pouco Aurora o penhasco
    do Fégio sobre as asas rápidas do Pégaso,
    deixando adormecido Títono em Cerne,
    irmão altermaterno. Os nautas afrouxavam
    os cabos do rochedo cavo na estiagem,
    cortando amarras na zarpagem. Tez cegonha,
    escolopendras moças olhicativantes
    do monte Calvo, golpeavam as espátulas
    em Tétis, mar virginicida, ilhas Cálidnas
    para trás, os aplustres nítidos, as asas
    brancas, as velas grandes bracidesfraldadas
    pelo ressopro apártico do ardor ciclônico.

    Divapossessa, escancarando a boca báquica,
    do Ate novilherrantedificado altivo,
    pelo princípio Alexandra principia:

    Ai! Infeliz nutriz incendiada outrora2
    também por pinhos porta-hostes do leão
    trivesperal, a quem o cão dentiafilado
    do Tritão encerrou um dia na queixada.

    Mas vivo, trincha as vísceras perdendo o pelo
    ao bafo da bacia num braseiro sem
    flama, caindo um a um os fios do bulbo,
    infanticida tétrico de meu país!

    E da segunda mãe golpeia o esterno incólume
    pesadamente contra o fuso e na arena
    ergue entre as mãos um pugilista, o próprio pai,
    rente à penha de Cronos, onde está a tumba
    de Isqueno, ser da Terra que ataranta equinos.

    E a cadela enfurecida espreitadora
    do estreito oceânico do Ausônio, assassinou,
    quando pescava além caverna, uma leoa
    tauriletal, que o pai refez carbonizando
    as carnes com as tochas do sarmento, um ser
    que destemia a Escorchadora deusa do ínfero.

    Ardil sem lança, outrora um cadáver o
    eliminou, alguém que recebera o Hades.

    Miro-te, pobre, uma segunda vez em chamas3
    por mãos eácidas e chefes de Letrina,
    ruínas de fogo e restos de um infante, prole
    de Tântalo, que o fusco ardor dilacerou,
    pelos penachos do boieiro Teutareu.

     

     

    1 Versos 1-30: O mensageiro prepara-se para relatar a Príamo o que ouviu de sua filha Alexandra (Cassandra), aprisionada num cárcere de pedra, pouco antes da viagem de Páris. No original, as palavras de abertura contêm um anagrama de Alexandra: lexlo tiapant/a neltrelkos, em que o próprio discurso ocupa lugar central: "direi tudo com precisão". Cabe lembrar que Lícofron escreveu um livro com invenções anagramáticas, do qual infelizmente só conhecemos dois exemplos. Alexandra nutre-se de louro (6), como os advinhos, antes de pronunciar as palavras inspiradas. Aurora parte de sua morada no monte Fégio, abandonando o marido (e meio-irmão de Príamo) Títono em Cerne, ilha situada na costa africana (16-19). Páris está prestes a abandonar Tróia com sua esquadra, fabricada com madeira do monte Calvo (referida como "filhas", v. 24), de múltiplos remos (aludidos como "escolopendras "), cor de cegonha, golpeando Tétis (por mar), deixando para trás as ilhas Cálidnas (25), em Tênedos. Inspirada (29), do monte Ate ( "Insensatez", "cegueira do espírito", "ruína " enviada pelos deuses), Alexandra inicia sua fala. Notável o composto cunhado no verso 29, que nos dá uma ideia da compactação mitológica operada frequentemente por Lícofron: Ilos, seguindo um oráculo, funda a cidade onde uma de suas vacas se aloja. Isso ocorre no monte Ate, na região troiana.
    2 Versos 31-51: Tróia (31: nutriz) foi anteriormente destruída por Héracles (33: leão), de três noites: duração do tempo da relação entre Zeus e Alcmena, de que Héracles veio à luz (33-34). Antes da expedição grega, Tróia foi destruída duas vezes: o rei Laomedonte recusou-se a pagar Posêidon, depois da construção da muralha. O deus do mar ordena que o Tritão inunde a cidade (34). Posêidon exige o sacrifício de Hesíone. Héracles (34: cão) sai das entranhas do monstro e o mata, perdendo os cabelos por causa do calor (37). Como compensação, exige os cavalos de Ganimedes, irmão de Laomedonte. Com a recusa, Héracles devasta, pela segunda vez, a cidade de Tróia, matando Laomedonte e seus filhos. Héracles infanticida (38: conforme o mito central do Héracles de Eurípides). Hera teria amamentado Héracles (39: segunda mãe), que a agride durante a guerra contra Pilos. Héracles, fundador dos jogos olímpicos, derrota o próprio pai, Zeus, que entra na arena sob forma humana (41). Isqueno, gigante que se autossacrificou para fazer cessar a fome dizimadora, estaria enterrado na sede dos jogos, Olímpia, cuja tumba espantava os cavalos no contexto da corrida (42-3). No mar siciliano (Ausônio), Héracles elimina a cadela Cila, matadora-de-touros (44). O pai a ressuscita, queimando sua carne, a ela que não temia Perséfone (49: deusa dos ínferos). Retomando argumento das Traquínias de Sófocles, Héracles é morto por um morto, o centauro Nesso que, agonizante, entrega à esposa do herói, como filtro amoroso, o veneno que o matará, "ardil sem lança " (50).
    3 Versos 52- 56: Profecias antigas referiam-se a três episódios da segunda derrota de Tróia: ação de Neoptólemo (53: eácidas), a transferência do ombro de marfim de Pélops, de Letrina para Tróia (55), e as flechas de Héracles entregues a Filoctetes: Teutareu concede a Héracles suas próprias flechas (56: por sinédoque: "penachos "), que as doa a Filoctetes.