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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000100007 

    MUNDO
    MUDANÇAS CLIMÁTICAS

     

    Relações perigosas: aumento de temperatura e doenças negligenciadas

     

     

    Leonor Assad

     

     

    Ainda é cedo para avaliar os resultados da Conferência do Clima de Paris (COP 21), que aconteceu em dezembro de 2015, mas um de seus pontos positivos foi que, pela primeira vez, os representantes dos 195 países reunidos no evento concordaram que é preciso conter o aumento da temperatura média do planeta. Embora as medidas para alcançar esse objetivo ainda não sejam suficientemente contundentes, trata-se de um ponto de partida importante para combater o aquecimento global. Embora ainda não seja consenso na comunidade científica, um dos sinais que reforçam sua existência é a relação entre o aquecimento global e as doenças tropicais negligenciadas (DTN).

    Em 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um relatório sobre o assunto - Investing to overcome the global impact ofneglected tropical diseases, alertando para a relação perigosa entre aquecimento global e doenças tropicais negligenciadas: com o aumento da temperatura, a zona de clima tropical do planeta deve se expandir, ampliando também as áreas acometidas por doenças tropicais como a malária e a dengue. De acordo com o documento, a mudança climática deverá aumentar a propagação de várias DTNs, notadamente a dengue, cujo vetor, o mosquito Aedes aegypti, tem ciclo de vida diretamente influenciado pela temperatura, precipitação e umidade relativa do ar. De fato, nos últimos anos, a doença tem aparecido fora da zona tropical do planeta.

    Em 2014, a China enfrentou um dos piores surtos de dengue da sua história, com mais de 40 mil casos registrados. Em 2010, os Estados Unidos também tiveram casos da doença, como na Flórida, onde não havia registros desde 1934. Houve casos também nos estados da Califórnia e do Texas, sem caracterizar, no entanto, um surto. De acordo com Mariana Jorge de Miranda, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), vários estudos apontam que a intensificação de casos de doenças tropicais como malária e dengue está relacionada a processos migratórios, grandes aglomerações humanas e, possivelmente, o aumento da temperatura média do planeta.

     

     

    REEMERGENTE

    De acordo com Expedito Luna, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, doenças infecciosas emergentes e reemergentes são aquelas cuja incidência em humanos vem aumentando nas últimas duas décadas ou ameaça aumentar num futuro próximo. Em artigo publicado em 2002, na Revista Brasileira de Epidemiologia, ele afirma que existem dois focos de atenção em relação a essas doenças: o surgimento ou identificação de novos problemas de saúde e novos agentes infecciosos e a mudança no comportamento epidemiológico de doenças já conhecidas, incluindo a introdução de agentes já conhecidos em novas populações de hospedeiros suscetíveis.

    Segundo a OMS, a incidência dos casos de dengue aumentou 30 vezes nos últimos 50 anos. A infecção é considerada a principal doença reemergente nos países tropicais e subtropicais. Também é considerada um importante problema de saúde pública no Paquistão, Arábia Saudita e Iêmen, com repetidos surtos em centros urbanos e propagação nas zonas rurais. Na Europa a transmissão local do vírus foi relatada pela primeira vez na Croácia e na França, em 2010. Dois anos depois um surto na ilha da Madeira, Portugal, resultou em mais de 2.200 casos da doença. Segundo estimativas da organização para saúde ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) os investimentos anuais teriam que ser de US$ 510 milhões por ano, até 2030, para controlar a população de vetores que transmitem a dengue.

    Mas como determinar a influência do aumento da temperatura na disseminação da dengue para além da zona tropical do planeta? Ainda não há certezas sobre isso. Para Miranda, já existem modelos matemáticos para prever as consequências do aumento da temperatura sobre a malária, por exemplo. Eles indicam que um clima um pouco mais quente pode aumentar o risco de transmissão dessa doença, especialmente em regiões onde o controle da também chamada maleita ainda é instável. Por outro lado, nas áreas com maior acesso a serviços de saúde de qualidade, os efeitos do aquecimento global seriam menores. "É preciso considerar a complexidade dos processos ambiente-doença antes de afirmar que a expansão da malária, assim como de outras doenças vetoriais, está sendo causada diretamente pelo aquecimento global", afirma a geógrafa que desenvolve estudos em geografia médica e da saúde e climatologia médica.

    Miranda destaca que, já em 2008, o relatório organizado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em colaboração com o Ministério da Saúde e a Fundação Osvaldo Cruz, salientava que aspectos sociodemográficos, como migrações e densidade populacional, e fatores como o estado imunológico das populações e a efetividade dos sistemas de saúde e dos programas de controle e prevenção de doenças, vão determinar a velocidade de disseminação e o impacto da dengue em determinada região. "Paralelamente aos processos de mudanças do clima, vêm se acelerando a globalização (...), as mudanças que alteram ecossistemas, reduzem a biodiversidade e que resultam na acumulação de substâncias tóxicas no ambiente e, ao mesmo tempo, temos um processo de precarização de sistemas de governo, reduzindo investimentos em saúde, aumentando a dependência de mercados e aumentando as desigualdades sociais. Os riscos associados às mudanças climáticas globais não podem ser avaliados em separado desse contexto", aponta o documento. Para a pesquisadora, a possibilidade de retorno dessas doenças se dá em contextos históricos diferentes daquelas do século XIX. Ela enfatiza que o setor de saúde deve trabalhar para reduzir as vulnerabilidades sociais, para construir "um mundo mais justo e mais saudável", finaliza.

     

     

     

    Mudanças climáticas e saúde
    A OMS considera as mudanças climáticas a maior ameaça à saúde mundial do século XXI. De acordo com a organização, o aquecimento global será a causa de 250 mil mortes adicionais por ano até 2030. Ondas de calor mais intensas e incêndios; aumento da prevalência de doenças causadas por alimentos e água contaminados e de doenças transmitidas por vetores; aumento da probabilidade de desnutrição resultante da redução da produção de alimentos em regiões pobres e perda da capacidade de trabalho em populações vulneráveis são os principais riscos para a saúde. Riscos incertos, mas potencialmente mais graves incluem: colapso em sistemas alimentares, conflitos violentos associados a escassez de recursos e movimentos de população, e exacerbação da pobreza, minando a saúde. No geral, as alterações climáticas deverão aumentar as desigualdades na saúde entre as populações. Em um evento paralelo à COP21, a OMS defendeu que a proteção da saúde é possível e deve ser uma prioridade para os investimentos dos fundos de adaptação às alterações climáticas. Além de ter impacto imediato sobre a vida das pessoas, esses investimentos devem fortalecer a resiliência de longo prazo em relação às consequências do aquecimento global.