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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.1 São Paulo jan./mar. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000100015 

    VIGILÂNCIA
    ARTIGOS

     

    O que podem as máscaras? Visibilidades e vigilância nos movimentos em rede

     

     

    Luciana Santos Guilhon AlbuquerqueI; Rosa PedroII; Ulisses dos Anjos CarvalhoIII

    IMestre em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ
    IIDoutora em comunicação e cultura, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Cultura Contemporânea: subjetividade, conhecimento e tecnologia
    IIIBacharel e mestrando em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ

     

     

    As Jornadas de Junho de 2013, como ficaram conhecidas as manifestações contra o aumento da passagem de ônibus no Brasil, nos trouxeram inúmeras questões, que reverberam até hoje. A quantidade de pessoas nas ruas foi surpreendente e uma novidade foi o papel dos dispositivos tecnológicos de comunicação. Diferente do que tradicionalmente acontecia, os atos foram marcados e divulgados basicamente pelas redes sócio-técnicas, em especial através do Facebook, rede social digital bastante popular. A proliferação de câmeras e celulares fez aumentar enormemente a circulação de imagens e discursos alternativos à grande mídia. A visibilidade proporcionada por essas tecnologias parece ter trazido, dentre outras coisas, a possibilidade de vigiar e ser vigiado.

    Em consonância com a Teoria Ator-Rede (TAR), entende-se que a sociedade é uma construção, coletiva e heterogênea, produzida na articulação de humanos e não humanos, em que a tecnologia e os objetos possuem um papel fundamental. Para mergulhar nessa complexa realidade, resolvemos, ao invés de ir atrás do novo, resgatar uma velha conhecida, que se tornou personagem controverso nessas manifestações: a máscara.

    Inspirados pela exposição "Objetos desobedientes" (1), que apresentou objetos utilizados em manifestações ao redor do mundo, fizemos uma reflexão sobre as controvérsias geradas pelo uso de máscaras nas Jornadas de Junho com o objetivo de contribuir para uma análise mais ampla acerca das dinâmicas de vigilância e visibilidade na atualidade.

    Falar de máscaras, neste artigo, serve para descobrir o que elas podem dizer sobre nós e sobre as diversas dinâmicas de vigilância e visibilidade que atravessam nosso cotidiano atualmente. Bruno Latour (2) fala que os objetos participam conosco da construção do mundo, afetando nossa forma de agir e transformando nossos modos de ser. Da mesma forma, são afetados por nossas ações e pela rede ao qual estão conectados. Assim, entendemos que ninguém age sozinho e qualquer fenômeno deve ser analisado como uma ação coletiva e compartilhada.

    Nosso material de análise é composto de entrevistas (3) realizadas com alguns atores que participaram desse processo, como ativistas, policiais, advogados e jornalistas, e da leitura de páginas na internet e Facebook de dois coletivos que se destacaram pelo uso das máscaras durante as manifestações: o Anonymous e os Black Blocs. Ambos apareceram primeiro no exterior e, com a globalização e a internet, chegaram ao Brasil. Ambos atuam e se sustentam usando a internet e as redes sociais como o Facebook. O primeiro começou a atuar no Brasil em 2011 e se caracteriza por um hacktivismo. Atento ao monitoramento digital, o Anonymous,em suas páginas na internet, coloca explicações e dicas para proteção da privacidade na rede e tem como símbolo, uma máscara inspirada no personagem Guy Fawkes do filme Vde vingança, que é usada pelos seus integrantes durante as manifestações das quais participam para, entre outras razões, manter o anonimato. O outro grupo, os Black Blocs, surgiu com força durante as manifestações de junho de 2013, antes disso não há registro de sua atuação no Brasil. Não possuem uma máscara símbolo, mas se vestem totalmente de preto cobrindo o rosto. Não parecem estar tão preocupados com o monitoramento digital.

    Seguindo alguns movimentos desses atores, buscamos cartografar as controvérsias que emergiram e chegamos a três sentidos diferentes para o uso das máscaras: disfarce e proteção; identidade coletiva; e empoderamento.

     

    A MÁSCARA COMO DISFARCE E PROTEÇÃO

    Um primeiro sentido para o uso de máscaras está ligado a uma definição mais corriqueira e comum, que nos remete à ideia de disfarce e proteção. Por disfarce, podemos entender que sua função principal seria falsear e distorcer uma imagem. Ao dar visibilidade e apresentar uma fisionomia a ser vista e admirada, ela esconderia atrás de si um rosto, este sim verdadeiro e protegido pela invisibilidade. Além de proteger contra olhares invasivos, ela pode ganhar um sentido de escudo contra ataques vindos de fora.Mas percebe-se claramente que, além do disfarce, a máscara é mecanismo de proteção frente à repressão esperada em manifestações, em particular quando há aumento de ações mais conflituosas, em um mundo povoado por tecnologia que pode capturar, gravar e circular imagens de qualquer pessoa em qualquer momento.. O uso posterior dessas imagens escapa a qualquer tipo de controle, o que parece produzir uma sensação de vulnerabilidade muito grande. O policial, como agente repressor, não precisa necessariamente estar presente no local da manifestação, podendo apenas usar imagens gravadas para investigação e monitoramento. E a máscara serviria para tentar proteger, pelo anonimato e invisibilidade, os manifestantes, apesar disso ser cada vez mais difícil num mundo crescentemente monitorado.

    No perfil do Facebook do Black Bloc/RJ, encontramos, claramente, essa intenção de esconder o rosto: "As roupas e máscaras negras que dão nome à estratégia são usadas para dificultar ou mesmo impedir qualquer tipo de identificação pelas autoridades".

    Da página do Anonymous, reproduzimos um trecho de um panfleto (4) em que essa ideia também se torna explícita:

    O uso de máscaras em protestos surge da necessidade de segurança frente à coerção policial sofrida pelos movimentos sociais quando em situações públicas de resistência. Os rostos expostos em situações como esta favorecem a repressão, facilitando a criminalização dos sujeitos políticos que se colocam em oposição ao que baseia a sociedade desigual em que vivemos.

    O registro fotográfico, ou em vídeo, das pessoas que fazem manifestações serve como indício para a polícia agir de modo a intimar e penalizar arbitrariamente os que estão simplesmente se recusando a viver sob os moldes do capitalismo. Os nossos registros na internet (caixas de email, perfis do Orkut e Facebook etc) também acabam sendo investigados, configurando assim um processo de perseguição em que o Estado aponta e se organiza para a ação de extermínio das forças que a ele se opõem.

    Dessa forma, as máscaras nos protegem, reservam a nós autonomia diante de nossas identidades (5).

    Chama a atenção, como o texto acima ressalta, o perigo que a visibilidade pode trazer, indicando uma dimensão de vulnerabilidade ao olhar do outro que está presente na exposição de si, principalmente numa situação de polarização de lados, vivenciada por ativistas e policiais.

    De um lado, coletivos que se colocam, de forma muito próxima dos movimentos sociais e do "povo", explicitam suas críticas ao Estado em suas páginas na internet e apoiam claramente táticas que incluem invasão de páginas oficiais no mundo virtual e a depredação de propriedades privadas de grandes corporações. Essas táticas são polêmicas inclusive entre os próprios ativistas, que não compõem uma massa homogênea, pelo contrário, são formados por forças e ideias diferentes e, muitas vezes, conflitantes. Para quem defende essa prática — chamada de ação direta pelos ativistas e de vandalismo pela polícia e pela imprensa tradicional —, ela carrega um valor político e é considerada uma forma de luta. Para quem condena, é considerada crime ou uma má estratégia política, pois acaba afastando a maior parte da população.

    De qualquer forma, são práticas que costumam ganhar bastante visibilidade e possuir um apelo midiático, expondo quem a defende, incomodando quem protesta, mas não concorda, e amedrontando a população que observa. O risco de ser pego pela polícia, para alguns, é minimizado diante da possibilidade de expressar sua indignação e dar visibilidade a uma causa.

    Uma imagem de uma fachada de banco sendo destruída a pedradas, muitas vezes, é incluída numa narrativa que potencializa seu sentido violento, esvaziando seu caráter político. Sem entrar em uma discussão mais complexa do que pode ser considerado crime, considerá-las apenas sob esse viés, reduz seu sentido a um só, encobrindo outros sentidos a que pode estar ligada e desloca a discussão, deixando de lado a grande questão que mobilizou as manifestações: o aumento da passagem de ônibus e a insatisfação da população com a qualidade do transporte público.

    De outro lado, temos as polícias civis e militares, com suas diferentes funções. A primeira encarregada das investigações sobre as depredações de prédios públicos e privados e a segunda encarregada de acompanhar os manifestantes para descobrir os trajetos dos protestos, quando não era avisada, como tradicionalmente acontecia, muitas vezes o trajeto era modificado no momento da manifestação. Ambas utilizaram as informações e imagens coletadas via internet, redes sociais e câmeras para auxiliar em seu trabalho de tentar identificar os autores dos atos considerados violentos e monitorar o movimento dos manifestantes.

    Com a potencialização da exposição que esses dispositivos tecnológicos permitem, a máscara surge como uma estratégia de permanecer invisível aos olhos da polícia, uma vez que ela é vista como inimiga e capaz de perseguir mesmo aqueles que não estão envolvidos em atos violentos. Ao se tornar um objeto de resistência (6) à vigilância do Estado, ela passa a ser um problema.

    Então, a máscara se torna um objeto non grato para o Estado, uma vez que atrapalha seu trabalho de vigilância. Para a polícia, a máscara esconderia criminosos, que se aproveitariam do anonimato para praticarem atos de vandalismo. Usar máscara passa a ter o sentido de ter algo a esconder e isso pode ser perigoso, tornando aquele que se esconde suspeito, principalmente num mundo que nos incita à transparência.

    Nem todos que participaram das manifestações, no entanto, usaram máscaras ou esconderam os rostos com camisas. Mesmo assim, isso ganhou uma dimensão que culminou com um projeto de lei proibindo o uso de máscaras ou de algo que esconda o rosto em eventos públicos, o que acabou gerando outra mobilização: um grupo organizou um baile de máscaras, uma vez que, no Rio de Janeiro, o carnaval de rua tem ganhado expressão e um de seus elementos festivos é a máscara.

    Além da vigilância digital, a polícia também se fez presente com o uso da força na repressão in loco dos manifestantes, fazendo surgir outro uso para as máscaras, a proteção contra o gás lacrimogênio, arma não letal, usada maciçamente pela polícia para dispersar a multidão.

    Dialogamos com os estudos no campo da Teoria Ator-Rede (TAR) (2), que buscam articular ciência, tecnologia e sociedade em uma perspectiva sócio-técnica. Nessa perspectiva, o que está em jogo são os modos pelos quais a sociedade se produz, tendo em vista a participação da tecnologia e das conexões entre atores humanos e não humanos na construção do social. Assim, entendemos os objetos como atores que participam da ação, o que não significa dizer que a determinam ou que carregam em si um sentido apriori, pois é na conexão com outros objetos e humanos que seus sentidos e funções vão sendo produzidos e modificados. Então, seu sentido depende da rede ao qual está ligada. Para a polícia ela pode ter um sentido, para manifestantes outro e, mesmo dentro desses grupos, que não são homogêneos, podem adquirir sentidos variados.

    A máscara protege ou esconde? Quem está por trás das máscaras são vândalos ou manifestantes, vítimas da agressão policial ou criminosos que precisam ser identificados? Cada lado constrói discursos para defender seu ponto de vista e talvez não seja possível responder a essa pergunta escolhendo um dos lados.

    Interessante notar que a vulnerabilidade não está apenas do lado dos manifestantes. Policiais e jornalistas da grande mídia também foram alvo de monitoramento e agressão por parte de ativistas. Coletivos de mídia-ativismo e os próprios manifestantes independentes empunharam suas câmeras para denunciar abusos de violência policial, provocar policiais na rua, construir um contra-discurso à mídia tradicional. Podemos dizer que houve uma disputa pela narrativa dos fatos, por meio de discursos e imagens, além de uma perseguição de ambas as partes. Jornalistas que tiveram que sair da rua e policiais que tiveram dados pessoais expostos na internet são exemplos de situações em que esse sentimento de desproteção e vulnerabilidade apareceu.

    Com isso não queremos dizer que se trata de uma guerra simétrica em que ambos os lados possuem os mesmos recursos, mas nos interessa apontar que, apesar dos embates, parece haver um ponto de convergência, a busca por uma invisibilidade que protege. Enquanto manifestantes procuram usar máscaras, policiais muitas vezes saíram sem identificação, o que gerou outra controvérsia sobre a legalidade dessa prática. Além disso, muitos jornalistas e pessoas que estavam filmando e tirando fotos foram agredidos. Ter sua imagem capturada também parece ser um risco para a polícia, que atua como representante do Estado. Este parece pretender ser o único detentor dos mecanismos de vigilância, mas a popularização de objetos que capturam imagem coloca na mão de cidadãos comuns a possibilidade de vigiar seus vigias. Quase como uma equação matemática, mais câmeras produzem mais imagens e, com isso, mais denúncias sobre o comportamento policial.

     

    A MÁSCARA COMO IDENTIDADE COLETIVA

    Extraímos outro sentido para o uso das máscaras analisando posturas tanto do Anonymous quanto dos Black Blocs. Cobrir o rosto é uma forma de expressar uma ideia sem ligá-la a um indivíduo específico, é uma forma de não pessoalizar a luta política. Nesse sentido, o uso da máscara se justifica como uma forma de criar uma identidade coletiva, diluindo o protagonismo individual numa massa. Como podemos observar nesses trechos em destaque:

    As roupas e máscaras negras (...) são usadas (...) também com a finalidade de parecer uma única massa imensa, promovendo solidariedade entre seus participantes e criando uma clara presença revolucionária (7).O anonimato se torna inevitável e imprescindível, no sentido de descentralizar a origem da ação, e para que ela não se esgote nela mesma. O ato de fechar avenidas, quebrar os ônibus das empresas de transporte não é um ato isolado, nele está contido a indignação de todos os que não estão de acordo com o sistema de transporte e organização urbana dos quais dependemos. Uma ação anônima em uma manifestação carrega consigo a força de uma construção coletiva. Ninguém é dono absoluto de um ato, este surge do processo de interação com várias pessoas e nesse sentido o anonimato é uma forma de não apropriação de uma causa que é pública. (...) As máscaras não servem de "esconderijo covarde" para os nossos rostos, como bem pregam as forças reacionárias, mas para expor o processo que nos levará à emancipação social como algo que só pode vir a acontecer por meio da ação coletiva autônoma. Sem rosto, sem líderes (8).

    A máscara é um símbolo para mostrar que somos iguais. Não há liderança, não há um maior ou melhor que o outro, é tudo de forma horizontal. É dessa forma que somos, é dessa forma que vemos todo o resto (9).

    O ato anônimo carrega consigo a força de um grupo, uma vez que a ação não seria responsabilidade de apenas um indivíduo, mas é resultado de uma construção coletiva e, portanto, pública. Para a TAR (2), a origem da ação é sempre incerta e não pode ser atribuída a apenas um ator. Tanto um quanto o outro são atravessados por inúmeras entidades que os colocam em movimento. Usar a palavra 'ator' significa que nunca é claro quem ou o que está agindo quando nós agimos, uma vez que o ator em cena nunca está sozinho enquanto atua. (...) Por definição, a ação é deslocada. A ação é emprestada, distribuída, sugerida, influenciada, dominada, traída, traduzida (10).

    A ação, portanto, para esses coletivos, diz respeito a uma experiência subjetiva em que o outro está incluído e vem para somar. A afirmação de uma individualidade própria não está em questão, mas a vivência de uma irmandade ganha força, dentro de uma perspectiva em que eu só existo conectado com os outros.Quem tá cobrindo o rosto está se irmanando com outro alguém que também está cobrindo o rosto. Então, você deixa de ser você enquanto indivíduo e passa a assumir uma identidade coletiva e é uma identidade coletiva que, de certa forma, protege um pouco os seus atos. (...) A máscara gera uma perspectiva simbólica de agregar pessoas conforme um ideal. Eu acho que como você tem os partidos, que têm uma bandeira vermelha, ou uma estrela no peito, que simboliza essa identidade coletiva com quem também tem uma estrela no peito, a máscara talvez seja uma forma simbólica de trazer para esses indivíduos uma forma de construção de comunhão, somos iguais, fazemos parte de um mesmo grupo, do mesmo ideário, então, eu vejo a máscara um pouco enquanto isso, uma tentativa de construção de uma identidade coletiva (11).

    Essa ideia se traduz na formação horizontal que esses grupos tentam construir ao pretenderem não eleger nenhuma liderança. Mas isso é controverso, pois mesmo não havendo uma liderança formal e oficial, havia indivíduos que se destacavam, que tinham uma maior projeção e puxavam situações na rua, sendo identificados pela polícia como líderes na hora de ser necessária qualquer negociação durante os protestos.

    A polícia, especialmente a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), montou um inquérito e realizou investigações baseando-se, entre outras coisas, no que era exposto na internet e Facebook, procurando identificar pessoas que exercessem um papel importante dentro desses coletivos, para que, ao detê-los, também minasse o poder de ação desses grupos. Frente a essa tentativa de identificação pessoal, a máscara parece se opor, ao buscar uma identidade coletiva. Nesse sentido, a máscara não é, simplesmente, uma forma de se manter invisível, mas de criar uma visibilidade própria. É uma forma de expressar uma ideia, que se opõe à individualização da ação. E mais uma vez se apresenta como resistência aos mecanismos de vigilância do Estado, que tentou usar a estratégia de identificar líderes e prendê-los para minar a possibilidade de novas manifestações.

    No dia 11 de junho de 2014, véspera da final da Copa do Mundo, algumas pessoas foram presas acusadas de formação de quadrilha. Para alguns, a intenção era esvaziar os protestos, o que não aconteceu. Segundo um dos entrevistados, a razão das prisões era:Por causa da nossa ameaça ao sistema, para dar uma lição, porque tinha que produzir terror para controlar as manifestações. A gente ficou muito feliz, nossa maior alegria na cadeia foi saber que a galera fez a manifestação mesmo assim no dia seguinte, manifestação que era a gente que tava puxando, mais ninguém praticamente. Fez mesmo assim a galera, veio gente de vários lugares do Brasil. Foram pra lá, sabe, aguentaram a porrada e ficaram lá, ótimo, lindo, prova de que o movimento é muito mais do que uma ou outra pessoa. A causa é uma coisa que supera indivíduos. Isso é a prova concreta disso, você vai e prende as ditas lideranças populistas e as coisas continuam acontecendo. As ditas lideranças, né, essa coisa de liderança é questionável" (12).

    Além disso, a afirmação de uma identidade coletiva se configura como uma resistência à ideologia neoliberal e ao individualismo que parecem dominar o cenário político atual. Em um artigo sobre as manifestações de 2013, Duarte (13) traça um breve histórico de mudanças ocorridas no governo brasileiro no início dos anos 1990, em que observa valores ligados à proteção social e à coisa pública dando lugar aos ideais do liberalismo econômico. Presentes no discurso, por meio da defesa do Estado mínimo, da economia de mercado e da prioridade para a iniciativa privada, e na prática dos governos, por meio das privatizações e do sucateamento do serviço público, esses ideais contribuíram para a disseminação do individualismo como valor na sociedade brasileira. Individualismo que entende o indivíduo como um ser isolado, livre e responsável por suas próprias conquistas e derrotas.

    Apesar dessa disseminação, o mesmo autor acredita que as práticas e valores de vida comunitária não desapareceram no Brasil e voltaram a crescer, principalmente ligados a festas populares como o carnaval de rua. Acompanhando esse raciocínio, entendemos que essa força do coletivo e do espírito comunitário se estabelece como uma resistência às práticas ligadas ao individualismo e ganhou forte expressão nas ruas em 2013, sustentada, inclusive, pelo uso de máscaras.

     

    A MÁSCARA COMO EMPODERAMENTO

    Como terceiro sentido, um entrevistado chamou a atenção para a força de empoderamento que a máscara trouxe para alguns indivíduos, que com ela se sentiram à vontade para agir de uma forma mais solta, livre e expressiva, mas não necessariamente violenta. O fato de estar ou não com máscara fazia diferença na forma de atuar no mundo, como se a máscara permitisse ao sujeito ser e fazer o que jamais faria sem a máscara. Não exatamente em relação à ação direta (ataque a bancos e grandes corporações), mas a se expressar com mais eloquência e afetividade. O que se opõe à ideia corrente de que o verdadeiro eu aparece ao tirar a máscara. Nesse caso, o eu se constrói ao colocar a máscara, ela surge como um elemento que ajuda a compor uma forma de ser e atuar no mundo. Usar a máscara não é uma forma de se esconder, mas de se expressar melhor e com mais vigor.

    Ao evocarmos a TAR (14), diluímos a dicotomia que tende a colocar em lados opostos o humano e o artificial. Nosso eu também é um artifício que se produz na interação com os objetos. Nesse caso, a conexão manifestante-máscara ganha vários sentidos, inclusive o de provocar transformações naquele que utiliza a máscara. Não existe, necessariamente, uma intencionalidade prévia mas, ao se conectarem, um campo de possibilidades se abre, fazendo indivíduos agirem de forma não previsível, expandindo sua forma de ser e atuar no mundo.

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Resumidamente, podemos dizer que as máscaras escondem, protegem, revelam e potencializam rostos, indivíduos, ideias e ações. Nessa primeira reflexão, encontramos três sentidos que a conexão manifestantes-máscaras assumiu nos protestos de 2013. O primeiro expõe o que gostaríamos de chamar de imperativo da visibilidade e o quanto ela pode nos deixar vulneráveis e submetidos a uma constante vigilância. Buscar a invisibilidade, usando máscara, pode significar a busca por uma proteção e ao mesmo tempo ser incriminador. Numa realidade em que a exposição de si se coloca cada vez mais naturalizada, ter algo a esconder pode soar estranho e perturbador.

    O segundo sentido tende a se opor e questionar a ideia de que as ações são individuais. O que parece estar em disputa é até que ponto os atos são coletivos ou individuais. Enquanto a polícia tenta identificar indivíduos, apostando que seu isolamento pode neutralizar a ação dos grupos, os grupos tentam se organizar diluindo a centralidade do poder, para que a ação seja maior que os indivíduos. É uma atitude que além de servir como resistência à ação policial, questiona e se opõe à tradicional organização hierarquizada e formal dos partidos políticos e da democracia representativa.

    O terceiro sentido aponta para a possibilidade de se expor com mais intensidade. Usar máscara não significa se esconder, mas ampliar a atuação na visibilidade. Num mundo que se constrói cada vez mais vigiado, esconder-se não se apresenta como a única resistência a uma visibilidade que se impõe. A possibilidade de construir uma imagem e poder operar, escolhendo o que deve ser visto, também encontra seus caminhos de resistência.

    A visibilidade não é apenas o lugar da vulnerabilidade, ao nos expor a uma vigilância contínua, mas também pode se transformar no lugar da disputa política, da defesa de ideias e da afirmação de si.

    Apesar do risco de prisão a ação direta tem um apelo visual forte, a depredação de prédios públicos ou privados ganha mais facilmente visibilidade do que táticas mais pacíficas. Para muitos jovens que atuaram como Black Blocs a conquista de visibilidade pode ter sido um dos grandes objetivos. Segundo alguns dos entrevistados, a maioria desses jovens era da periferia do Rio de Janeiro, com sua trajetória marcada pela invisibilidade e a falta de acesso a direitos básicos, e a visibilidade para eles talvez seja mais um desejo do que um risco.

    Além de dar expressão a uma causa, a conquista da visibilidade ganha um viés político ao por em cena situações que costumam ficar escondidas no cotidiano e não costumam ganhar atenção da grande mídia e da sociedade como um todo, como a violência policial dentro das comunidades mais pobres da cidade. Então usar a tática Black Bloc pode ser visto como uma estratégia, não necessariamente consciente, de dar visibilidade a uma forma de violência que não é tão comum nos centros urbanos, mas é banalizada na periferia.

    Outro uso político e estratégico da visibilidade é poder escolher o que e como se expor. É claro que alguns escolhem não ter página no Facebook, por exemplo, pensando na questão da vigilância, mas este não é o único motivo e mesmo que essa preocupação esteja presente não será sempre um impeditivo para a exposição, uma vez que a visibilidade traz vantagens, ainda que haja algum risco. A maioria dos coletivos parece ver as vantagens nessa exposição que a internet e uma rede social podem oferecer, tornando suas ideias públicas e mais conhecidas, ampliando, assim, suas conexões e seu poder de ação. Essa escolha, no entanto, não deixa de ser sem tensões, principalmente após as prisões de alguns manifestantes em outubro de 2013, que produziu certa paranoia coletiva e fez alguns indivíduos se tornarem mais cautelosos.

    O potencial de comunicação, conexão e visibilidade que a internet e as redes sociais conseguem produzir tende a ser reconhecido e, por isso, desejado. Em alguns casos, a consciência da vigilância opera como um agenciador da cautela e da criação de estratégias para usufruir da visibilidade, escapando da vigilância. A clareza do monitoramento pelo Estado e pela polícia, principalmente após as prisões na véspera da final da Copa das Confederações, fez alguns recuarem e outros buscarem tecnologias para resistir a esse rastreamento, como fazer um perfil fake no Facebook.

    A preocupação com a segurança e a vigilância coexistem com o desejo de visibilidade, como podemos resumir nessa fala: "Seria uma forma de tentar utilizar a ferramenta, mas sem dar os dados pra ferramenta, sem você participar desse jogo de ter que se expor totalmente ali" (15).

    Ainda dentro dessa lógica, poder operar na própria visibilidade, poder escolher o que expor no Facebook e na internet, por exemplo, pode ser um modo de proteção e resistência, tudo depende de como se estabelece uma conexão com a ferramenta.

    Dependendo do lugar onde está e das conexões estabelecidas a máscara pode ser uma proteção, um perigo, um risco, uma força e assim por diante. Ampliar os sentidos que ela pode assumir é uma tentativa de fazer a realidade soar mais complexa, controversa e contraditória. Nossa intenção é que a realidade seja maior que nossa capacidade de interpretá-la e enquadrá-la em qualquer plano teórico. Queremos que ela escape às nossas habilidades acadêmicas e intelectuais e nos surpreenda sempre. Não almejamos acalmar as disputas, mas torná-las visíveis.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. A exposição aconteceu em Londres, até fevereiro de 2015, contando a história dos protestos a partir do uso de alguns objetos.

    2. Latour, B. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. New York: Oxford University Press Inc., 2005.

    3. As entrevistas fazem parte do projeto de pesquisa de doutorado "Ver e ser visto no Facebook: modos de subjetivação contemporâneos", que se iniciou em 2012 e terá fim em 2016.

    4. Circulado no segundo protesto contra o aumento das passagens, no dia 23 de janeiro de 2012, em Recife.

    5. "Por que esconder nossos rostos?" Publicado na página do Anonymous Rio. [Panfleto circulado no 2º protesto contra o aumento das passagens.] Fonte: http://reciferesiste.org/porque-esconder-nossos-rostos/. Disponível em: http://www.anonymousrio.net/2012/11/por-que-esconder-nossos-rostos.html. Acesso 15 dezembro 2014. Recife, 23 de janeiro de 2012.

    6. Entendemos resistência como uma força que se opõe à outra. Tomamos como base o estudo de Foucault (16) sobre o poder, enquanto relação de forças que atuam umas sobre as outras.

    7. Black Bloc RJ. Black Bloc RJ. Página no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/BlackBlocRJ/info?tab=page_info. Acesso em 07 abril 2015.

    8. "Por que esconder nossos rostos?", op. cit. 2012.

    9. "A verdade por trás das críticas ao Anonymous Brasil". Publicado na página do Anonymous Rio. Disponível em: http://www.anonymousbrasil.com/nos-somos-legiao/a-verdade-por-tras-das-criticas-ao-anonymous-brasil/. Acesso em 15 dezembro 2014.

    10. Latour, B., op. cit. pp 46. Tradução nossa. 2005.

    11. Entrevistado 1, entrevista individual gravada, 27 de novembro de 2014.

    12. Entrevistado 2, entrevista individual gravada, 01 de dezembro de 2014.

    13. Duarte, V. "O movimento de junho e as práticas políticas institucionais". In: Advir, Rio de Janeiro, p. 111-122, dez. 2013.

    14. Foucault, M. "Ética, sexualidade, política". In: Foucault, M. Ditos e escritos, volume V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

    15. Entrevistado 4, entrevista individual gravada, 14 de janeiro de 2014.