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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.1 São Paulo jan./mar. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000100017 

    AUDIOVISUAL

     

    O novo cinema de Pernambuco

     

     

    Paula Gomes

     

     

    Um rápido olhar pela produção cinematográfica pernambucana atual revela panorama diversificado, com nomes já consolidados como Cláudio Assis, Adelina Pontual e Lírio Ferreira, e diretores estreantes com trabalhos sendo muito bem recebidos pela crítica, como os premiados O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho; Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda e Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro. O movimento, que tem sido chamado de Novo Cinema Pernambucano, é resultado de uma combinação de fatores entre eles políticas públicas estaduais de incentivo à produção, com a aprovação de leis que tornaram o audiovisual uma política de Estado, e a mobilização coletiva dos produtores, em intenso diálogo entre si e com os representantes governamentais. O exemplo de Pernambuco sugere que a consolidação e ampliação desses elementos criariam condições para que o momento atual não seja apenas um ciclo passageiro, mas o ponto de partida para uma trajetória de continuidade na produção audiovisual em Pernambuco, que pode, inclusive, ser repetida em outros lugares.

     

    CICLOS

    A história do cinema pernambucano é, em geral, retratada pela presença de três grandes ciclos. O primeiro, de Recife (1923-1931), ocorreu em paralelo com outros ciclos regionais de cinema mudo e produziu 13 filmes de ficção. Depois, na década de 1970 ocorre o ciclo do Super-8 e, mais recentemente, a partir de 1980 temos a grande retomada do cinema pernambucano. No entanto, como aponta Arthur Autran no artigo "A noção de 'ciclo regional' na historiografia do cinema brasileiro", a concepção de ciclos pode transmitir a falsa ideia de períodos de interrupção na produção cinematográfica, quando, na verdade, existe uma produção contínua de filmes de não ficção e de outros formatos, que gera experiências e referências que atravessam esses períodos de maior visibilidade.

     

     

    São essas referências que embalam o movimento que deu origem à retomada do cinema pernambucano, na década de 1980. O professor do programa de pós-graduação em imagem e som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Samuel Paiva, que participou ativamente desse período, aponta que o embrião da retomada está nas atividades de grupos que desejavam misturar influências do passado com experimentações. Essas ideias foram difundidas pelo grupo Vanretrô, nome inspirado nas palavras "vanguarda" e "retrógrada", que reunia estudantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), entre eles Lírio Ferreira, Adelina Pontual, Samuel Paiva e Paulo Caldas. Outra iniciativa aconteceu na Universidade Católica de Pernambuco, onde um grupo de estudantes de jornalismo fundou o cineclube Jurando Vingar. Neste grupo estava Marcelo Gomes, que mais tarde dirigiria Madame Satã (2002) e Cinema, aspirinas e urubus (2005). O nome do cineclube reverenciava o filme homônimo de Ary Severo, de 1925, um dos principais expoentes do ciclo de Recife.

    A movimentação cultural da década de 1980 não se refletiu em uma produção consistente de filmes, pois a vontade de produzir esbarrava na grande dificuldade de acesso a verbas. A principal via de financiamento nacional da época era a estatal Embra-filme. A empresa, no entanto, entrou em crise na década de 1980 devido a conflitos internos e à crise econômica do país e, após 21 anos de atividade, foi fechada em 1990 pelo presidente Fernando Collor de Mello, resultando em uma crise geral no cinema brasileiro, que só voltaria a se recuperar a partir a implementação de mecanismos de incentivos públicos indiretos, como a Lei Rouanet, em 1991, e a Lei do Audiovisual, em 1993. Porém, antes do fechamento da Embrafilme, o grupo Vanretrô conseguiu finalizar o curta-metragem Padre Henrique — um crime político (1987), projeto do então estudante de economia na UFPE, Cláudio Assis.

     

    RETOMADA

    A chamada fase de "retomada" do cinema pernambucano confunde-se com a "retomada" do cinema brasileiro. Enquanto o marco nacional dessa fase é o filme Carlota Joaquina: princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati, o do cinema pernambucano é o filme Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, ambos financiados pelo Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. Muitos dos integrantes do Vanretrô participaram da produção do filme, que foi lançado no Festival de Brasília, em 1996, e ganhou, entre outros, o prêmio de Melhor Filme do Júri Oficial.

    A recuperação do cinema nacional foi particularmente frutífera em Pernambuco, cujas produções alcançaram prestígio nacional e internacional. Alguns exemplos são os filmes O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000); Amarelo manga (Cláudio Assis, 2003); Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005); Árido movie (Lírio Ferreira, 2005); Baixio das bestas (Cláudio Assis, 2006); Deserto feliz (Paulo Caldas, 2007); Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Ainouz e Marcelo Gomes, 2009), entre outros.

    Com o cenário favorável, pequenas produtoras, como a Símio Filmes e a Trincheira Filmes têm lançado filmes de boa repercussão. Alguns exemplos são Amigos de risco (Daniel Bandeira, 2007); Pacific (Marcelo Pedroso, 2009); Um lugar ao sol (Gabriel Mascaro, 2009); Eles voltam (Marcelo Lordello, 2012), uma produção que se beneficia do barateamento de cursos via novas tecnologias digitais, novas formas de incentivo como o crowdjunding e a possibilidade de divulgação, distribuição e exibição de filmes em plataformas online.

     

     

    POLÍTICA DE AUDIOVISUAL

    Uma série de mecanismos de financiamento ajudou a consolidar o novo cinema pernambucano. A prefeitura de Recife, por exemplo, criou o Sistema de Incentivo à Cultura (SIC), que funciona por meio de renúncia fiscal e teve o último edital publicado em 2012. No âmbito dos mecanismos estaduais, o principal recurso é o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, o Funcultura, instaurado em 2002. O fundo recebe recursos da arrecadação do ICMS e, por meio de editais de seleção pública, contempla e financia diretamente projetos artísticos e culturais. Em 2007 também foi criado um edital próprio para o setor, o Funcultura Audiovisual, e em 2013 foi estabelecido um montante mínimo anual para o fundo, no valor de R$ 33,5 milhões, divididos em R$ 11,5 milhões para o setor audiovisual, e R$ 22 milhões para as demais áreas. Em 2011, o fundo incorporou, dentro da categoria de curta-metragem, o prêmio de roteiros Ary Severo/Firmo Neto, criado em 1999. Esses editais estaduais viabilizam tanto a produção de filmes de menor orçamento, realizados integralmente com essa verba, como de produções maiores, que combinam o montante desse edital com o de outros editais nacionais, como os da Ancine, Petrobras e BNDES. Além disso, Pernambuco também é o primeiro estado a ter uma lei do audiovisual. A Lei 15.307, de 2014, fez com que o setor passasse a ter uma política de Estado imune às trocas de gestão. A lei também criou o Conselho Consultivo do Audiovisual, que viabiliza a participação efetiva da sociedade civil na formulação de políticas públicas para o setor.

    O estado também mantém interessantes iniciativas visando à formação de público para o cinema de arte e o cinema nacional, como as ações da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), vinculada ao Ministério da Educação, que já abrigou diversos cineclubes e mostras. Em 1998, a Fundaj inaugurou o Cinema da Fundação, cuja programação é feita pelo cineasta Kleber Mendonça Filho e pelo jornalista Luiz Joaquim. Entre outras ações, o espaço exibe filmes que dificilmente entrariam no circuito comercial. O Cinema São Luiz, cujo prédio foi tombado pela Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural de Pernambuco em 2008, também adotou uma programação de filmes de fora do circuito comercial, com ingressos a preços mais acessíveis. Além disso, Pernambuco ainda abriga importantes festivais de cinema, que contribuem para a divulgação e exibição de filmes, tais como o Cine-PE, já em sua 19ª edição, e o Janela Internacional de Cinema de Recife, que completou sete edições em 2015.

     

    BRODAGEM

    Outro diferencial do cinema pernambucano é a chamada "brodagem" ("brother" e "camaradagem"), uma maneira de fazer filmes de forma colaborativa, acionando redes de amigos e conhecidos para viabilizar as produções. Longe dos grandes centros, com falta de infraestrutura técnica, pouca mão de obra qualificada e trabalhando com baixos orçamentos, a "brodagem" é uma importante estratégia para driblar as dificuldades. Para a diretora Adelina Pontual essa é uma das principais características do cinema pernambucano. "Existe esta mobilização grande em torno das produções. Os amigos se ajudam para concretizar os projetos, intercambiando funções, mobilizando esforços, às vezes até trabalhando com cachês simbólicos", conta.

     

     

    Protagonismo feminino
    A despeito dos benefícios, a "brodagem" já foi criticada por restringir a participação feminina nas produções, especialmente na direção. "A questão do protagonismo masculino perpassa toda a história do cinema mundial. No cinema pernambucano não é diferente", afirma a cineasta Adelina Pontual. Ela lembra que no Ciclo do Super-8 o único nome feminino de destaque era o da realizadora Kátia Mesel que, por sinal, continua produzindo. "A minha geração, que começou a participar de projetos cinematográficos no final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, está desenhando um cenário diferente", acredita a diretora. Além dela, o cinema de Pernambuco tem roteiristas, produtoras, técnicas de som e na fotografia. "Se analisarmos por este prisma, fomos até inovadores: fotografia e som, até hoje, são searas bastante restritas para as mulheres", finaliza.