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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.1 São Paulo enero/marzo 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000100020 

    TELEVISÃO

     

    Febre culinária

     

     

    Chris Bueno

     

     

    Pegue uma porção de entretenimento, carregue nas imagens de comidas deliciosas, coloque uma pitada de drama, misture tudo e você tem uma receita de sucesso para um programa de televisão. Os programas de culinária viraram uma verdadeira febre no Brasil e atraem cada vez mais pessoas, dos perfis mais variados. Programas dedicados a ensinar receitas são tão antigos quanto a própria televisão. Mas hoje em dia eles mudaram seu formato e são garantia de sucesso de espectadores. Segundo levantamento feito pelo Ibope em 2014, em mais de 70 canais abertos e pagos, há 67 programas de culinária sendo veiculados na televisão brasileira. Existe até um canal exclusivamente dedicado a eles, o ChefTV, primeiro canal 100% gastronômico do país, no ar desde 2011.

    O perfil do público desses programas é variado, indo dos apaixonados pela gastronomia aos cozinheiros de final de semana, passando por aqueles que buscam novas ideias para o cardápio do dia a dia, pessoas sem tempo na agenda que querem fugir da comida congelada ou semipronta ou aqueles preocupados com a dieta que buscam alternativas mais saudáveis. Afinal, a culinária envolve afetos. Os atos de cozinhar e de comer ainda são capazes de reunir a família ao redor da mesa ou mesmo em frente à televisão. "Acredito que a gente viva um paradoxo, especialmente nas grandes cidades, onde não temos tempo para mais nada: nunca cozinhamos tão pouco e, no entanto, nunca fomos tão aficionados pela cozinha!", aponta a jornalista especializada em gastronomia e alimentação Luciana Mastrorosa Bueno de Souza, autora do livro Pingado e pão na chapa - histórias e receitas de café da manhã (editora Memória Visual).

     


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    EVOLUÇÃO GASTRONÔMICA

    As primeiras receitas de culinária na televisão brasileira foram ao ar em 1958 em um quadro no programa Revista feminina, da TV Tupi, comandado por Ofélia Ramos Anunciato. Depois de 10 anos à frente do quadro, a apresentadora transferiu-se para a TV Bandeirantes e passou a apresentar o Cozinha maravilhosa de Ofélia, que ficou mais de 30 anos no ar e até hoje é referência em programas de culinária. Por muito tempo, os programas de culinária seguiram o modelo do programa de Ofélia: uma senhora sorridente dando o passo a passo da receita ao lado do fogão, para um público essencialmente feminino.

    Hoje isso mudou - e muito! "De relegados a segundo plano, focados em um público muito específico de donas de casa, passamos para uma explosão de programas culinários nos mais diferentes formatos. Ainda cabe a cozinha do dia a dia, mas nos vemos fascinados pelo trabalho dos grandes chefs, a rotina extenuante das cozinhas profissionais, o mergulho no universo da gastronomia por meio de outros olhares", diz Souza. Há programas que apostam no cardápio rápido, outros na sofisticação dos pratos do dia a dia, outros dedicados apenas à comida saudável, os exclusivos para receitas doces. Temos ainda atrações em que o apresentador degusta as mais variadas receitas viajando por países exóticos ou mesmo pelo interior do país, como o Viagem gastronômica (GNT) e o Receita de viagem com Bel Coelho (TLC). Outros preferem ensinar receitas em suas próprias e aconchegantes cozinhas, como Nigellissima (GNT), Diário de Olivier (GNT) e Que Marravilha! (GNT). Há programas apresentados por crianças, como o Tem criança na cozinha (Gloob), e por modelos e atores, como Tempero de família (GNT) e Receitas de Carolina (GNT).

     

    REALIDADE E FICÇÃO

    Um filão que vem ganhando cada vez mais espaço são os reality shows e as competições culinárias. Cake boss (TLC), um dos mais conhecidos, mostra o cotidiano da confeitaria liderada por Buddy Valastro, os desafios dos mais inusitados pedidos de bolo e sua vida em família. O sucesso foi tanto que Buddy Valastro ganhou mais dois programas: Kitchen boss e Nextgreat baker. Já o Cozinha sobre pressão (SBT) une os dois mundos - reality show e competição - mostrando a realidade do serviço de jantar de grandes restaurantes e a disputa entre chefs profissionais de todo o país.

    Entre os programas de competição, a franquia MasterChef'(Band) é a de maior sucesso. O programa foi criado em 1990, no Reino Unido, e em 2005 passou a ser exibido em mais de 40 países, em diferentes versões, como o Junior MasterChef, onde os competidores são crianças, e o Celebrity MasterChef, com famosos na disputa. O programa ganhou sua versão brasileira em 2014. Seu maior concorrente é o programa Top chef (Sony) e a principal diferença entre os dois programas é que o primeiro mostra a disputa entre amadores e o segundo entre profissionais. Top chef já foi produzido em nove países e também teve adaptações, como Top chef: masters, em que os competidores são chefs premiados, e Top chef justdesserts, dedicado exclusivamente à confeitaria. "Atualmente, comer deixou de ser apenas uma fonte de nutrição ou uma refeição saborosa para se tornar algo próximo do mundo das celebridades, dos grandes shows", explica Souza. "É uma busca por prazer, por entrosamento, pela identificação com algo maior: cultura, profissão, sabores, uma forma de ampliar as experiências do cotidiano por meio da alimentação".

     

     

    MUDANÇA DE HÁBITOS

    Essa enxurrada de programas culinários aponta um interesse maior da sociedade pela alimentação. "Sem dúvida ele expressa um deslocamento do interesse da esfera do 'quanto se come' para a 'qualidade do que se come'. Esse fenômeno é notável nos últimos 30 anos e tem várias razões, sendo uma delas a perda da confiança cega na indústria da alimentação, especialmente depois da crise da 'vaca louca' na Europa", explica o sociólogo Carlos Alberto Dória, pesquisador de sociologia da alimentação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor dos livros A culinária materialista: a construção racional do alimento e do prazer gastronômico (Editora Senac) e Formação da culinária brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira (Três Estrelas).

    Muitos programas de culinária incentivam uma alimentação mais saudável, utilizam alimentos frescos, colhidos diretos da horta, sugerem trocar ingredientes industrializados por outros mais saudáveis e até mesmo dão dicas de nutrição. Isso pode contribuir para que o público se preocupe mais com sua alimentação. "Acredito que esses programas possam ajudar, sim, a mudar algo nos hábitos alimentares de quem assiste. Mas eles funcionam como a influência de uma novela, ou de um filme: atuam no campo da inspiração. Se uma pessoa está aprendendo a cozinhar, adquirindo técnicas básicas para se alimentar com mais sabor e qualidade, penso que esses programas podem ajudar - e muito - como uma influência muito positiva", afirma Dória.

    Mas essa relação não é direta nem determinante. É importante ter em mente que o papel principal dos programas de culinária é entreter e não educar. "Educar para o 'saudável' é bem mais do que uma questão publicitária e exige coragem para tocar nas questões reais, que realmente importam na discussão sobre o futuro. Tome o exemplo dos transgênicos, dos herbicidas, dos hormônios que envenenam nossa alimentação. Nada disso esses programas discutem", enfatiza Dória.

     

     

    MULHER NA COZINHA
    Um ponto positivo que esses programas trouxeram foi a mudança da visão do papel da mulher. As apresentadoras são nutricionistas, chefs profissionais, executivas e também modelos e atrizes. E também não falam mais para um público exclusivamente feminino, formado por donas de casa preocupadas em alimentar sua família. Há ainda uma mensagem de que cozinhar não é uma obrigação inerente ao sexo feminino, mas uma escolha e um prazer. Uma das maiores representantes do empoderamento das mulheres na cozinha é a cozinheira britânica Nigella Lawson, que deu o que falar ao acrescentar uma pitada de sensualidade em suas receitas. Apesar de ter sido muito criticada por explorar sua sexualidade, Nigella contribui para a defesa da alimentação sem culpa, numa época em que as mulheres são bombardeadas com modelos inatingíveis de beleza e vivem sobre a pressão de serem eternamente jovens e magras.