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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.2 São Paulo abr./jun. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000200012 

    OLIMPÍADAS
    ARTIGOS

     

    Jogos Olímpicos e direito à moradia adequada*

     

     

    Raquel Rolnik

    Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) e foi relatora internacional do direito à moradia adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU (2008-2014)

     

     

    Até os anos 1930, os Jogos Olímpicos e outros eventos esportivos deixavam poucas marcas na paisagem urbana. Em 1932, pela primeira vez, a cidade de Los Angeles associou os Jogos Olímpicos a uma estratégia de dinamização da economia local, imersa em recessão econômica, e foi a primeira vez que uma "vila olímpica" com características de moradia permanente foi construída (1). Depois da Segunda Guerra Mundial, o movimento olímpico ganhou uma força sem precedentes, atraindo o apoio dos governos para a área do esporte como parte de políticas de bem-estar social, que incluíram em seus projetos olímpicos a construção de infraestrutura pública permanente para a prática de atividades esportivas. Nos anos 1970 ficou mais evidente a articulação da organização de eventos esportivos internacionais com os processos de transformação urbana, particularmente como estratégia de renovação de áreas centrais das cidades (2).

    Desde os anos 1980, o Comitê Olímpico Internacional adotou uma filosofia de incorporar progressivamente o setor privado na promoção dos Jogos. Nos anos 1990, tornou-se hegemônica a prática de organização de megaeventos esportivos como um dos componentes do planejamento urbano estratégico, com vistas ao reposicionamento das cidades numa economia globalizada, numa espécie de lançamento midiático da imagem da cidade associado à renovação de algumas de suas infraestruturas, através de processos com forte protagonismo da indústria imobiliária e do setor de construção de forma geral. A esse processo de transformação, os promotores dos Jogos Olímpicos passaram a denominar "o legado dos jogos" (2a). A realização de jogos internacionais como estratégia de dinamização econômica, implantada através de parcerias com grandes corporações e capitais privados locais e globais, incluindo a renovação da infraestrutura urbana e desenvolvimento imobiliário, se converteu no enfoque contemporâneo dos megaeventos esportivos por parte das cidades e dos países (3).

    Os Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992, consolidaram esse novo enfoque. Foram utilizados pelo governo da cidade catalã como estratégia para promover a renovação da infraestrutura da cidade e, ao mesmo tempo, lançar uma nova imagem pública internacional da cidade, associada a um ou mais grandes projetos urbanos (4). Ambos os elementos estão presentes, com maior ou menor intensidade, nas relações contemporâneas entre os megaeventos esportivos e as cidades anfitriãs, com importantes impactos significativos na reestruturação de bairros ou cidades e na vida dos que ali vivem ou viviam. Este artigo se concentra em um desses impactos: sobre as comunidades urbanas, qual seja, sobre seu direito à moradia adequada.

     

    OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E SEUS IMPACTOS NO DIREITO À MORADIA ADEQUADA

    A realização de megaeventos esportivos poderiam, em tese, ser uma oportunidade para ampliar o direito à moradia adequada. Os processos de reabilitação que se põem em marcha para preparar os megaeventos seriam capazes de promover melhorias infraestruturais e ambientais nas cidades anfitriãs. Isto inclui o aumento da mobilidade, a limpeza de zonas contaminadas, o desenvolvimento da gestão de resíduos e o saneamento, a administração de infraestrutura social e cultural e a construção de novas moradias ou a reabilitação de unidades habitacionais. Não é, no entanto, o que tem ocorrido.

    Uma vasta experiência demonstrou que os projetos de reabilitação adotados para os Jogos Olímpicos, frequentemente, dão lugar a violações generalizadas dos direitos humanos, particularmente do direito à moradia adequada. Nas cidades que organizam os eventos, são frequentes as denúncias de massivas remoções forçadas para ceder espaço aos grandes projetos de ampliação de infraestrutura e renovação urbana, muitas vezes reduzindo - e não ampliando - o acesso à moradia, como resultado de aumento de preços de imóveis e aluguéis e consequente tomada da área por grupos socais de maior renda, de operações de grande envergadura contra as pessoas sem teto, e de discriminação dos grupos marginalizados. Os que mais sofrem as consequências dessas práticas são os setores mais desfavorecidos e vulneráveis da sociedade, tais como os segmentos de baixa renda, minorias étnicas, imigrantes, idosos, pessoas com deficiência e grupos marginalizados (como vendedores ambulantes e trabalhadores sexuais).

    A. Consequências positivas para a cidade e a moradia

    A realização dos Jogos Olímpicos, e de outros megaeventos esportivos, serve habitualmente como catalisador para o início e aplicação de planos de desenvolvimento de moradia nas cidades anfitriãs. Uma vez designada uma cidade como anfitriã, se destinam maiores investimentos públicos e privados ao setor de construção. Assim, as cidades anfitriãs registram normalmente atividades de construção sem precedentes, que se traduzem em uma maior disponibilidade de empregos e de unidades habitacionais. Dado o número de moradias necessárias para alojar o grande número de visitantes, a cidade enfrenta uma reabilitação e urbanização em grande escala. O desenvolvimento urbano também inclui, com frequência, planos públicos de revitalização urbana, que geralmente consistem no "embelezamento" e na "modernização" de certas áreas, mas tanto nas áreas centrais como nas periféricas das cidades anfitriãs ocorrem transformações. Uma vez finalizado o evento, as novas moradias podem estar à disposição dos residentes locais, que encontrarão transformada sua cidade.

    Entre os exemplos de utilização de áreas com fins de moradia após os eventos, figuram: a) em Moscou, onde os Jogos Olímpicos de 1980 marcaram a culminação de uma política de construção de moradias sociais com a transformação da vila olímpica em 18 edifícios de apartamentos com 16 andares, ampliando o estoque de moradia social na cidade; b) em Atenas, onde a vila olímpica erigida para os Jogos Olímpicos de 2004 deixou 3 mil novas unidades habitacionais subsidiadas em benefício de 10 mil residentes (5); e c) em Londres, em 2008, o plano era converter metade das 2,8 mil unidades da vila olímpica em moradias acessíveis após os Jogos, e a área do parque olímpico previa ao redor de 10 mil novas moradias, 35% das quais poderiam ser adquiridas passado o evento (6).

    A realização de megaeventos esportivos habitualmente supõe a reabilitação dos sistemas de circulação e de transporte público, melhoras ambientais e aumento da disponibilidade de instalações culturais e esportivas, bem como de espaços públicos abertos para os habitantes das cidades. Todos esses investimentos, se forem formulados com uma perspectiva includente e em benefício da maioria, podem ter um efeito positivo no direito à moradia adequada.

    Para oferecer alternativas de circulação diversas e de boa qualidade durante o megaevento, e incorporá-las às estratégias de mobilidade urbana, a maioria das cidades anfitriãs constroem novas autoestradas e anéis rodoviários, recuperam ruas do centro urbano, melhoram as redes ferroviárias, ampliam os sistemas de trens subterrâneos e bondes, e constroem novos aeroportos ou ampliam os já existentes. São intervenções que - se dirigidas para as demandas de melhoria de mobilidade pensadas a partir de planejamento includente da cidade, em longo prazo e não a partir única e exclusivamente do novo grande projeto urbano que pretendem promover -, podem melhorar as condições de moradia, brindando os moradores com um maior acesso às oportunidades econômicas, sociais e culturais.

    Em Atenas, por exemplo, foi construída uma nova linha de bondes e se ampliou o sistema de transporte subterrâneo como preparativos para os Jogos Olímpicos de 2004; e em Pequim foram construídas novas linhas de trens de superfície e subterrâneos para os Jogos Olímpicos de 2008 (7).

    As preocupações em matéria ambiental também são um importante componente dos preparativos para receber um megaevento esportivo. Este aspecto se tornou mais evidente em consequência dos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000. Submetido às pressões de organizações ambientais e aos novos parâmetros propostos pelo Comitê Olímpico Internacional, o comitê organizador incorporou as preocupações ambientais na organização do evento. Desde então, as autoridades anfitriãs locais incluem estratégias de recuperação ambiental no seu planejamento e aproveitam a oportunidade para melhorar os serviços de gestão de lixo, reorganizar a coleta de resíduos, limpar áreas contaminadas, criar parques públicos e adotar outras iniciativas na esfera ambiental. Também empreendem campanhas mais complexas, frequentemente para retomar planos atrasados de melhoramento ambiental, tais como limpeza de rios e lagos contaminados, a renovação ou ampliação do sistema de esgoto, e o reassentamento de indústrias contaminantes.

    Em Tóquio, três estações de tratamento de águas residuais foram construídas pouco antes dos Jogos Olímpicos de 1964; em Seul, o rio Hang foi descontaminado e foram criados novos sistemas de gestão da contaminação atmosférica e de coleta de resíduos na preperação para os Jogos; em Pequim, 640 quilômetros de tubulações de esgoto foram renovadas no período prévio aos Jogos de 2008 (8).

    Receber eventos olímpicos tem consequências positivas para a disponibilidade de instalações esportivas para a população local. Durante esses períodos, são construídos estádios, centros de treinamento, campos de esporte e outras instalações que podem - se planejados para esse fim e localizados junto as àreas carentes desse tipo de equipamentos e posteriormente abertos para o usufruto dos moradores desses locais - ampliar suas oportunidades de convivência, prática esportiva e de lazer. As disposições que são adotadas para os eventos também podem aumentar o número de espaços públicos abertos e de áreas verdes e de lazer. Além das instalações esportivas construídas para abrigar os Jogos e posteriormente postas à disposição do público, pode-se mencionar os seguintes exemplos de aumento da disponibilidade de instalações culturais e esportivas: a) em Seul foram construídas novas casas de cultura antes dos Jogos Olímpicos; b) em Barcelona foram renovados teatros, museus e galerias de arte como preparação para os Jogos; e c) em Atenas foi realizado um trabalho de preservação de sítios arqueológicos antes dos Jogos Olímpicos (9).

    B. Consequências negativas para a moradia

    No período que transcorre entre a designação da cidade anfitriã e a realização do evento, as cidades normalmente sofrem uma série de transformações que não só afetam sua infraestrutura urbana como também produzem mudanças econômicas, sociais e demográficas com consequências de longo prazo para a população local. Como a análise sobre a repercussão desses eventos geralmente se concentra nos benefícios econômicos para a cidade anfitriã, presta-se menos atenção à avaliação dos efeitos na vida dos moradores, especialmente os grupos mais vulneráveis da sociedade. Lamentavelmente, o legado desses eventos no contexto dessas pessoas está longe de ser positivo. Os supostos benefícios econômicos decorrentes da realização dos Jogos Olímpicos não se distribuem equitativamente entre toda a população local. Ao contrário, parecem exacerbar-se as disparidades existentes, dado que os processos de regeneração e embelezamento da cidade geralmente se concentram em áreas habitadas principalmente por grupos pobres e vulneráveis. As consequências duradouras dos megaeventos esportivos frequentemente incluem características inquietantes, que são descritas a seguir.

    B.1. Remoções

    Os despejos e remoções forçadas são características comuns dos preparativos dos Jogos Olímpicos. Grandes projetos de reabilitação urbana - associados aos projetos de sede dos Jogos, assim como aos meios de acesso a hotéis/equipamentos esportivos e aeroportos - frequentemente tornam necessária a demolição de moradias existentes e a abertura de espaços para novas obras. A importância que se concede à criação de uma nova imagem internacional da cidade, como parte integrante da preparação dos Jogos, supõe a eliminação de manifestações de pobreza e subdesenvolvimento, por meio de projetos de reurbanização que dão prioridade ao embelezamento urbano em detrimento às necessidades dos moradores locais. Posto que as autoridades públicas utilizam a organização dos megaeventos como catalizador para a regeneração da cidade, os moradores de áreas afetadas podem enfrentar deslocamentos massivos, remoções forçadas e a demolição de suas casas. Também podem ocorrer remoções em razão das medidas adotadas pelas autoridades para eliminar rapidamente assentamentos populares, considerados esteticamente negativos, das áreas frequentadas pelos visitantes, ainda que essas áreas não sejam necessárias para nenhuma construção ou ampliação de equipamento público.

    Na maioria dos casos, as alternativas às remoções não são suficientemente exploradas, não são realizadas consultas prévias com as comunidades afetadas e não se garante às vítimas uma indenização adequada e nem outra moradia. Além disso, as remoções quase nunca permitem o regresso dos habitantes anteriores às moradias recém construídas. O certo é que os proprietários, os locatários e os ocupantes sem título se veem frequentemente submetidos à pressão de autoridades públicas, ou de agentes imobiliários privados, para que abandonem a área, não recebem garantias de poder regressar ao lugar reabilitado e só raramente seus direitos de compensação são reconhecidos. Em muitas ocasiões, os despejos são levados a cabo acompanhados de violência, ameaças e agressões contra os moradores. A urgência dos prazos de entrega das obras é usada como justificativa para essas remoções violentas e para a inobservância dos direitos das comunidades afetadas.

    São vários os exemplos de remoções devidos à construção de áreas esportivas e de alojamento para os visitantes e às melhorias na infraestrutura. Em Seul, 15% da população sofreu despejos forçados, e foram demolidos 48 mil edifícios antes dos Jogos Olímpicos de 1988 (10); em Barcelona, 200 famílias foram desalojadas para dar lugar à construção de novos anéis viários antes dos Jogos Olímpicos de 1992 (11); em Pequim, nove projetos relativos à construção do local para os Jogos, de superfície de mais de 1 milhão de metros quadrados, exigiram o reassentamento dos moradores (12); houve denúncias de despejos massivos, realizados às vezes por homens não identificados no meio da noite e sem aviso prévio, e durante os quais os moradores e ativistas por moradia foram submetidos à repressão, a ameaças e a detenções arbitrárias (13); em Londres, a ordem de expropriação emitida para a organização dos Jogos Olímpicos de 2012, que outorga atribuições às autoridades locais para reunir a terra necessária para importantes projetos de regeneração, obrigou os residentes a abandonar os distritos olímpicos (14).

    B.2. Deslocamentos indiretos devido à gentrificação

    Mesmo em contextos em que não ocorrem remoções para a construção de instalações esportivas ou projetos de urbanização destinados a melhorar a imagem da cidade anfitriã, deslocamentos massivos em razão de processos indiretos, como a gentrificação e o aumento dos custos da moradia, também ameaçam o direito à moradia adequada. A gentrificação pode ter como origem os projetos de revitalização que se empreendem vinculados aos eventos. Uma vez submetidos a processos de revitalização, vizinhanças antes populares passam a atrair pessoas de mais alta renda, que começam a se mudar para essas áreas. O repentino interesse dos investidores imobiliários em áreas que anteriormente se considerava de baixo valor aumenta os preços de compra e aluguel, o que repercute na acessibilidade da moradia para os moradores locais, e com frequência tem como resultado sua expulsão de fato dessas regiões. Em particular os inquilinos, quando não têm meios de alugar as novas unidades, se veem obrigados a se mudar para outras regiões e frequentemente não recebem indenização ou outra moradia. Raramente os antigos moradores são incluídos em projetos mistos de habitação (mercado/social) empreendidos por promotores privados, que lhes garantem o acesso a novas residências; na maior parte dos casos, se veem obrigados a vender seus imóveis e abandonar a área, seja como resultado do aumento dos custos ou do assédio das incorporadoras.

    Desta maneira, o bairro sofre uma profunda mudança em sua composição demográfica. Ao mesmo tempo que uma população de renda média e alta se muda para regiões anteriormente populares e encontra uma maior disponibilidade de moradias, os moradores anteriores se veem empurrados para áreas externas à cidade, perdem seus vínculos comunitários e sofrem um maior empobrecimento devido à diminuição das oportunidades de emprego e escolaridade, assim como pelo aumento dos gastos com transporte utilizado para trabalho e lazer.

    Entre os exemplos de deslocamento devidos à gentrificação e aumento de custos de moradia, figuram: a) em Seul, o preço dos apartamentos aumentou em 20,4% nos primeiros oito meses de 1988, e os preços da terra se incrementaram em 27% durante o ano, no que foi o maior aumento desde 1978 (15); b) em Barcelona, o aumento dos preços de moradia num período de cinco anos em torno dos Jogos alcançou 131%, enquanto no resto do país foi de 83% (16); em 1993, um ano depois dos Jogos Olímpicos, esses preços se elevaram apenas 2% (17); c) em Atlanta, cerca de 15 mil residentes de baixa renda se viram obrigados a abandonar a cidade devido ao fato de que o aumento dos aluguéis passou de 0,4% em 1991 para 7,9% em 1996, antes dos Jogos Olímpicos daquele ano (18); d) em Sydney, o aumento dos preços de moradia nos cinco anos precedentes aos Jogos Olímpicos foi de 50%, enquanto no resto do país ficou em 39% (19); e) em Pequim, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas foram deslocadas de seus lares para permitir a renovação urbana antes dos Jogos Olímpicos de 2008 (20); f) em Londres, os preços imobiliários nas zonas ao redor do sítio olímpico se elevaram entre 1,4% e 4,6% depois do anúncio de que a cidade seria sede dos jogos, enquanto no restante da cidade os preços caíram 0,2%(21).

    B.3. Redução da disponibilidade de moradia social e de baixo custo

    A repercussão dos processos de revitalização e embelezamento no acesso à moradia é ainda maior quando afeta bairros populares. As moradias sociais, frequentemente situadas em zonas urbanas pobres, dão a seus residentes uma oportunidade de habitação de baixo custo, às vezes subsidiada pelo Estado. Por serem projetos públicos - e habitados por uma população marcada por pouca renda e poder - muitas dessas moradias sociais são demolidas. Dado que muitos conjuntos habitacionais são propriedade do Estado, os projetos de revitalização geralmente procedem sua demolição para abrir espaço a novos empreendimentos. Diminui assim, consideravelmente, a disponibilidade de moradia de baixo custo, tornando esses setores da população ainda mais vulneráveis à violação de seus direitos.

    Em Atlanta, 1,2 mil unidades de moradia social foram destruídas antes dos Jogos Olímpicos (22); em Sydney, os informes disponíveis indicam que cerca de 6 mil pessoas ficaram sem casa antes dos Jogos (23); em Londres, a Clays Lane State, uma moradia social histórica que ficava na área olímpica e era habitada por cerca de 400 pessoas, foi demolida. Segundo a London Development Agency, o imóvel não satisfazia as normas do governo em matéria de moradias decentes (24).

    B.4. As consequências nos assentamentos improvisados

    A situação das pessoas que vivem em assentamentos informais é particularmente preocupante no contexto da preparação dos megaeventos. Como símbolo de pobreza e precariedade, essas construções arruinam a imagem que a cidade procura promover com a organização dos Jogos Olímpicos. Considerados antiestéticos e sem segurança de posse, os assentamentos informais são os primeiros a ser demolidos quando se organiza um megaevento na cidade. As zonas onde eles ficam são frequentemente utilizadas, seja para construção de locais esportivos e alojamentos para os visitantes, seja para erigir novas moradias para os residentes locais. Em muitos casos, os assentamentos improvisados são removidos para dar lugar a novas vias, equipamentos ou simplesmente porque não se adequam à nova paisagem urbana. As administrações locais habitualmente não oferecem indenização ou alternativa habitacional aos moradores removidos. Comunidades inteiras se veem obrigadas a reassentar-se, geralmente nas partes mais externas da cidade ou em zonas rurais, onde não encontram meios de sustento e as oportunidades de emprego e de acesso a mercados informais são exíguas, e onde já não existem seus vínculos com a comunidade. Os moradores de assentamentos precários são quase sempre minorias étnicas, migrantes, segmentos de baixa renda e outros grupos vulneráveis.

    Um exemplo do efeito dos megaeventos em assentamentos improvisados é, no Rio de Janeiro, a Vila Autódromo (25). Surgida nos anos 1960 para abrigar os operários que trabalhavam na construção do antigo autódromo do Rio, a comunidade começou a sofrer ameaças de remoção no início dos anos 1990. Na preparação para os Jogos Pan-Americanos de 2007 novas tentativas foram feitas. Mas foi com a confirmação do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016 que o projeto da prefeitura ganhou força e as pressões pela saída dos moradores aumentaram. Ainda que boa parte dos moradores possuísse concessão do direito real de uso dos terrenos, concedida na época pelo governo do estado, a prefeitura insistiu na remoção e conseguiu que parte dos moradores deixasse a comunidade nos últimos anos, aceitando a oferta de compensação financeira ou de realocação em um conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida. Só que essa mesma prefeitura começou a demolir as casas dos moradores que deixaram a vila, sem recolher o entulho, sem limpar o local, deixando os escombros no meio das ruas e junto às moradias dos que ficaram, tornando aquele lugar completamente inóspito. Há relatos de que algumas casas estão isoladas e seus moradores não conseguem ter acesso a elas. A ação da prefeitura é evidentemente estratégica, no intuito de forçar a saída dos moradores que resistem, ao tornar a vida naquele lugar insustentável.

    B.5. Criminalização da pobreza, da informalidade e da população de rua

    A situação das pessoas sem teto também pode ser agravada no contexto dos Jogos Olímpicos, considerando os relatos de situações em que autoridades locais adotaram medidas para retirar moradores de rua das áreas frequentadas pelos visitantes durante o período dos Jogos. Em alguns casos foram oferecidas alternativas de abrigamento para que os moradores de rua deixassem as áreas, mas na maioria das vezes os moradores foram removidos à força. Legislações especiais são produzidas de modo a tipificar como delitos atos como dormir nas ruas e pedir esmola. Da mesma forma, se promulgam leis que proíbem os vendedores ambulantes e as trabalhadoras sexuais de levar a cabo suas atividades durante o evento. Recebemos comunicados de casos de utilização de acampamentos com instalações de grande capacidade, fora da cidade, para alojar pessoas sem teto e outros grupos "antiestéticos" enquanto se desenvolvia o evento. Trata-se de uma tendência inquietante das cidades anfitriãs de introduzir uma "lógica de exceção" na gestão da vida pública enquanto se prepara o evento, que permite restrições dos direitos e das garantias processuais, quando considerado necessário para assegurar a realização do evento (26). Além disso, como aumenta o número de despejos e diminui a oferta de moradia social, assentamentos improvisados e residências temporárias, normalmente, incrementa o número de pessoas sem teto.

    Nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, e de Barcelona, em 1992, moradores de rua foram retirados ou detidos em instalações fora da cidade durante os Jogos; em Atlanta, a carência de moradia e atividades conexas foram declaradas ilegais e foram expedidos mais de 9 mil indiciamentos contra pessoas sem teto (29).

    B.6. Consequências desproporcionais para os grupos particularmente vulneráveis à discriminação

    O legado negativo dos megaeventos esportivos incide particularmente nos setores mais vulneráveis da sociedade. Estes grupos se veem afetados desproporcionalmente por remoções forçadas, por despejos, pela diminuição da disponibilidade de moradia social, pela redução da acessibilidade à moradia, pela própria carência de moradias, pelo isolamento em relação à comunidade e às redes sociais existentes, pela restrição às liberdades civis e pela criminalização de suas atividades. Os despejos e remoções forçadas que têm como origem os grandes projetos afetam comumente a população de baixa renda, as minorias étnicas, os imigrantes e os idosos, os quais se obriga que abandonem seus lares para reassentar-se em zonas distantes do centro da cidade. Igualmente, as políticas e leis especiais adotadas para "limpar" a cidade resultam na remoção de pessoas sem teto, moradores de rua, vendedores ambulantes, trabalhadores sexuais e outros grupos marginalizados das zonas cêntricas e seu reassentamento em áreas especiais ou fora da cidade.

    Em Atenas, as comunidades ciganas foram o principal objeto de remoções (30); em Atlanta, as comunidades negras (31); em Sydney, foram removidas comunidades indígenas de áreas próximas aos sítios olímpicos, com o fim de embelezar a cidade (32); e em Pequim, a maioria das vítimas de remoções foi de trabalhadores imigrantes (33).

    C. Tensões em torno dos megaeventos: mobilização e negociações

    Em muitos casos, as comunidades e grupos afetados se dão conta de que a proposta inicial das autoridades para a organizção de um megaevento pode trazer consigo violações do direito à moradia adequada, tais como remoções forçadas de moradores locais, a criminalização de pessoas sem teto e outras práticas similares. Para fazer frente a essas ameaças, a população afetada e as organizações sociais se mobilizam para resistir à proposta, exigindo que se modifique sua formulação. Em alguns casos, a resistência social conduziu a negociações com as partes interessadas, à adoção de uma estratégia diferente e a uma nova concepção do plano para incorporar os pedidos da população afetada e proteger os direitos da população local.

    Alguns exemplos de mobilização social e renegociação dos megaeventos: a) para os Jogos Olímpicos de Atenas, em 1996, as autoridades previam demolir um complexo habitacional situado defronte a uma das principais rotas olímpicas, mas devido à firme resistência dos moradores e dos ativistas de moradia, os edifícios não foram demolidos (34); b) no período prévio aos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, em 2007, o Comitê Social do Pan interveio ante às autoridades locais para pedir a modificação de vários planos relativos ao evento, incluída a suspensão do despejo da Vila Autódromo (35); c) em 2002, como resposta aos planos oficiais para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2010, em Vancouver, a organização Coalizão sobre o Impacto dos Jogos Olímpicos nas Comunidades defendeu a realização de um referendo sobre os Jogos e formulou uma série de recomendações à Vancouver 2010 Bid Corporation (empresa responsável) que ao final resultou no compromisso das autoridades de que os Jogos beneficiariam à comunidade e às zonas urbanas pobres, promessa que foi incorporada nos documentos de oferta para 2010 (36), não tendo sido, entretanto, completamente implementada.

     

    CONCLUSÕES

    Tendo presentes as consequências dos megaeventos esportivos, é fundamental que todos os envolvidos adotem uma atitude responsável no que diz respeito aos impactos dos Jogos Olímpicos em relação ao direito à moradia adequada. Todos os participantes devem, em todas as fases, levar devidamente em consideração as consequências da realização do evento em relação à garantia da manutenção dos direitos humanos. As recomendações para os Estados participantes, assim como para o Comitê Olímpico Internacional e Federação Internacional de Futebol, podem ser acessadas no documento disponível online (37) e contém um rol de condições para o respeito à moradia adequada durante a preparação de cidades e países que sediarão os Jogos.

     

    REFERÊNCIAS E NOTAS

    1. As 126 casas de Baldwin Hills, a vila olímpica que foi construída para abrigar os atletas de sexo masculino, foi posteriormente desfeita e as casas, construídas de forma que poderiam ser desmontadas depois, vendidas individualmente após os Jogos. Muñoz, F. “Evolución histórica y tipología de planificación urbana de las Villas Olímpícas”, Centre d'Estudis Olímpic i de l'Esport, Barcelona, 1996.

    2. Mascarenhas, G. “Globalização e governo urbano nos megaeventos olímpicos: os Jogos Panamericanos de Santo Domingo, 2003. Diez años de cambio en el mundo, en la geografia y en las ciencias sociales, 1999-2008”, Universidad de Barcelona, 2008.

    2a. Ver Oliveira, N. G. de. “O poder dos jogos e os jogos do poder: os interesses em campo na produção de uma cidade para o espetáculo esportivo”, tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2012; e Novaes, P. “Urbanismo na cidade desigual: o Rio de Janeiro”, Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais v.16, nº.1, p.11-33, / maio 2014.

    3. Ver “Labor, economy, and transparency in large urban projects”, Alberto de Oliveira (UFRRJ), 2009, Congresso da LASA, Brasil, 2009; e “From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late capitalism” , e Harvey D., 1989, Geografiska Annaler, série B 71 (1) 3.

    4. Stavrides, S., “Urban identities: beyond the regional and the global. The case of Athens”. In: Al-Qawasmi, J.; Mahmoud, A. e Djerbi, A. (Eds.), 2008. Regional Architecture and Identity in the Age of Globalization, Atas da Segunda Conferência Internacional da CSAAR, Tunisia, p. 577 a 588, 2005.

    5. “Fair play for housing rights. Mega-events, Olympic Games and evictions”, COHRE, 2007, p.142.

    6. Informação fornecida pelo Comitê Olímpico Internacional.

    7. “Fair play and housing rights”, op. cit., p. 74.

    8. Ibid., p.74.

    9. Ibid.

    10. Solomon J. Greene; “Staged cities; mega events, slum clearance, and global capital” em Yale Human Rights and Development Law Journal, v. 6, 2003, p. 171 y 179.

    11. “Fair play for housing rights”, op. cit., p. 197.

    12. Informação fornecida pelo Comitê Olímpico Internacional, com dados provenientes do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Pequim.

    13. “Beijing 2008. Human rights and the Olympics in China” (2004); e “Demolished: forced evictions and the tenant's rights movement in China”, Human Rights Watch, v.16, nº. 4; 2004.

    14. Ver a página web da London Development Agency, www.lda.gov.uk; e “Hosting the 2012 Olympic Games: London's Olympic preparations and housing rights concerns”, 2001, COHRE, p. 26.

    15. Solomon J. Greene; op. cit., p. 172 y 179.

    16. “2012 Home Games: a study of the housing and regeneration legacies of recent Olympic and Paralympic Games and the implications for residents of east London”, East Thames Group, p. 14.

    17. “Barcelona. International events and housing rights: a focus on the Olympic Games”, COHRE, 2007.

    18. “2012 Home Games”, op. cit., p. 14.

    19. Ibid.

    20. “One world, whose dream? Housing rights violations and the Beijing Olympic Games”, COHRE, 2008, p.6.

    21. “Hosting the 2012 Olympic Games: London's Olympic preparations and housing rights concerns”. COHRE, 2001, p.31.

    22. “2012 Home Games”, op. cit., p.13.

    23. Ibid., p.16.

    24. Informação fornecida pelo Comitê Olímpico Internacional.

    25. “Plano olímpico para Rio-2016 prevê a remoção de favela”, Folha de S. Paulo, 8 de outubro de 2009.

    26. “Fair play for housing rights”, op. cit.

    27. Ibid., p. 198.

    28. “2012 Home Games”, op. cit., p. 15.

    29. “Fair play for housing rights”, op. cit., p. 198.

    30. Ibid.

    31. Ibid, p. 14.

    32. “2012 Home Games”, op. cit., p. 14.

    33. “Fair play for housing rights”, op. cit., p. 199.

    34. Stavrides, S. “Urban identities: beyond the regional and the global. The case of Athens”. In: Al-Qawasmi, J.; Mahmoud, A. e Djerbi, A. (eds.), 2008, Regional Architecture and Identity in the Age of Globalization, Atas da Segunda Conferência Internacional da Tunísia, 2005.

    35. Ver Lemos Marques, A.; Barros de Moura, B., “Pan Rio 2007: manifestações e manifestantes”, XIII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, Brasil, maio de 2009.

    36. Elby D., “Still waiting at the altar: Vancouver 2010's on-again, off-again, relationship with social sustainability”, Pivot Legal Society, junho de 2007.

    37. O relatório completo está disponível em: <http://www.un.org/wcm/webdav/site/sport/shared/sport/pdfs/Resolutions/A-HRC-13-20/A-HRC-13-20_EN.pdf> .

     

     

    (*) Este artigo é uma versão do relatório anual apresentado pela autora ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, na qualidade de relatora especial para o direito à moradia adequada, durante seu mandato (2008-2014), abordando o tema dos megaeventos esportivos e o direito à moradia.