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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.2 São Paulo Apr./June 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000200015 

    OLIMPÍADAS
    ARTIGOS

     

    Olimpismo para o século XXI*

     

     

    Jim Parry

    Professor visitante da Universidade Charles em Praga, da Universidade Olímpica Internacional da Rússia, e da Academia Olímpica Internacional (Grécia). Foi professor e chefe do Departamento de Filosofia da Universidade de Leeds, no Reino Unido

     

     

    Suponho que, para a maioria das pessoas, a palavra "olímpico" evoque imagens dos Jogos Olímpicos, antigos ou modernos. As pessoas comumente associam esta palavra ao festival esportivo de duas semanas, realizado uma vez a cada quatro anos, entre atletas de elite que representam seus países em competições internacionais ou, em se tratando dos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga, entre atletas que representavam suas cidades-Estados.

    Poucos, entretanto, terão ouvido falar de "olimpismo", a filosofia desenvolvida pelo fundador do movimento olímpico moderno, o barão Pierre de Coubertin, um aristocrata francês muito influenciado pela tradição das escolas públicas britânicas de usar o esporte na educação. Essa filosofia abarca não apenas o atleta de elite, mas todo mundo; não apenas um período curto de tempo, mas a vida toda; não apenas a competição e a vitória, mas também os valores de participação e cooperação; não apenas o esporte enquanto atividade, mas também enquanto influência formativa, contribuindo para o desenvolvimento de características desejáveis de personalidade individual e da vida social.

     

    OLIMPISMO: UMA FILOSOFIA SOCIAL UNIVERSAL

    O olimpismo, dessa maneira, é uma filosofia social que enfatiza o papel do esporte no desenvolvimento mundial, na compreensão internacional, na coexistência pacífica e na educação social e moral. De Coubertin compreendeu, no final do século XIX, que o esporte estava prestes a se tornar um importante fator de crescimento na cultura popular - e que, como atividade física, tinha o potencial de ser universalizável, proporcionando um meio de contato e comunicação entre culturas.

    Uma filosofia universal, por definição, entende-se como relevante a todos, independentemente de nação, gênero, classe social, etnia, religião ou ideologia e, assim, o movimento olímpico tem buscado uma representação universal e coerente de si mesmo - um conceito de olimpismo que identifique uma gama de valores com que cada nação possa sinceramente se comprometer, ao mesmo tempo em que possa encontrar nessa ideia geral uma forma de expressão singular, gerada por sua própria cultura, localização, história, tradição e futuro almejado.

    De Coubertin, sendo um produto do liberalismo no final do século XIX, enfatizou os valores de igualdade, equidade, justiça, respeito pelas pessoas, racionalidade e compreensão, autonomia e excelência (1). Esses são valores que abrangem cerca de 3.000 anos de história olímpica, embora alguns deles possam ser interpretados de maneiras diferentes em momentos diferentes. Eles são, basicamente, os principais valores do humanismo liberal - ou talvez devêssemos dizer simplesmente humanismo, uma vez que as sociedades socialistas não tiveram dificuldades de incluir os ideais olímpicos em sua postura ideológica em relação ao esporte.

    A tarefa contemporânea do movimento olímpico é promover este projeto: tentar entender mais claramente o que os Jogos Olímpicos (e o esporte na sociedade em geral) poderá vir a significar. Essa tarefa será realizada tanto no plano das ideias quanto das ações. Se a prática do esporte deve ser buscada e desenvolvida de acordo com os valores olímpicos, a teoria deve se esforçar para desenvolver uma concepção de olimpismo que suporte essa prática. O ideal seria buscar, ao mesmo tempo, sustentar a prática esportiva e conduzir o esporte para uma visão do olimpismo que ajude a lidar com os desafios que estão por vir.

     

    A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA DO OLIMPISMO

    Baseado em sua herança e tradição, cada sociedade (e cada ideologia) tem uma antropologia política e filosófica - uma concepção idealizada do tipo de pessoa que aquela sociedade (ou ideologia) valoriza, e tenta produzir e reproduzir através de suas instituições formais e informais. Olimpismo é uma dessas antropologias filosóficas, incluindo uma teoria da educação física (2). O ideal olímpico se traduz em algumas frases simples que capturam a essência do que um ser humano ideal deve ser e aspirar. Ele promove os ideais de:

    desenvolvimento harmonioso e integral do ser humano;

    para excelência e realização;

    através do esforço na atividade esportiva competitiva;

    em condições de respeito mútuo, justiça, equidade e igualdade;

    com vistas à criação de relacionamentos duradouros de amizade entre as pessoas;

    relações internacionais de paz, tolerância e compreensão;

    e alianças culturais com as artes.

     

    ESPORTE E UNIVERSALISMO

    No entanto, o olimpismo realiza seus objetivos por meio do esporte, e por isso não pode escapar à exigência de fornecer uma visão do esporte que revele tanto sua natureza quanto seu potencial ético. Podemos sugerir brevemente um conjunto de critérios que indicam a natureza fundamentalmente ética do esporte.

    humano (enquanto os animais podem brincar, o esporte é exclusivamente humano);

    físico (por este motivo, é necessário esforço);

    habilidade (esforço, portanto, não é suficiente - temos de desenvolver habilidades);

    disputa (exige contrato para disputa - competição e excelência);

    controlado por regras (obrigação de respeitar as regras, jogo limpo, igualdade e justiça);

    institucionalizado (requer autoridade legal);

    valores e compromissos compartilhados (os adversários devem ser tratados com o devido respeito como co-facilitadores).

    Chega a ser difícil elencar as características do esporte sem nos apoiarmos em termos que carregam significado ético e tais significados devem ser aplicados em todo o universo de participação esportiva. Sem acordo de adesão às regras, a autoridade do árbitro e valores comuns centrais da atividade, não poderia haver esporte. A primeira tarefa de uma federação internacional é esclarecer regras e harmonizar entendimentos de modo a facilitar a prática universal do seu esporte.

     

    OLIMPISMO: VALORES IMUTÁVEIS?

    Os princípios do olimpismo, para serem universais, devem ser imutáveis e, ainda, aparentemente, serem diferentes em toda parte. Eles não devem mudar ao longo do tempo mas, em todos os tempos, observamos mudanças nos princípios do olimpismo que refletem mudanças sociais. Como esses paradoxos podem ser resolvidos?

    Tais diferenças, ao longo do tempo e do espaço, são inevitáveis. Ideias sociais, ou ideias inscritas em práticas sociais, dependem de uma ordem social específica ou um determinado conjunto de relações sociais para que seu significado pleno seja exemplificado. Isso parece sugerir que esses significados são culturalmente relativos e que, portanto, não poderia haver tal coisa como uma ideia universal do olimpismo. Será, então, que estamos condenados ao relativismo?

    A distinção de Rawls (3) entre conceitos e concepções é útil aqui. O conceito do olimpismo, sendo uma abstração, situa-se em um alto nível de generalidade, embora isso não signifique que ele não seja claro. O que isso significa é que as ideias gerais que formam o seu significado admitem possivelmente disputas de interpretação. Assim, o conceito do olimpismo vai encontrar expressões diferentes, dependendo de tempo e lugar, história e geografia - assim como acontece com os conceitos de democracia, arte e religião. Haverá diferentes concepções de olimpismo, que irão interpretar o conceito geral de forma a trazê-lo para a realidade de um contexto particular.

    Tomados em conjunto, a promoção desses valores será vista como tarefa educativa, e o esporte será visto como meio. Esses valores, sendo articulados em elevado nível de generalidade, admitirão uma vasta gama de interpretações. Mas, apesar disso, fornecem uma base para o acordo entre grupos sociais com compromissos muito distintos. Isso levanta a questão das relações entre essas diferentes formações culturais e nossas próprias atitudes em relação à diferença cultural. Uma forma de abordar essa questão é pela consideração do importante conceito de multiculturalismo.

     

    LIBERALISMO E MULTICULTURALISMO

    A importância da ideia de multiculturalismo para o liberalismo (5) na contemporaneidade já foi tratada em artigo anterior (4). O Estado liberal entende-se como não escolhendo, deliberadamente, qualquer concepção particular do que seja uma vida boa para seus cidadãos seguirem. Ao invés disso, se vê como uma posição neutra frente às concepções alternativas do bem que são encontradas nas democracias liberais mais modernas.

    Nesse ponto, distingue-se acentuadamente dos Estados não liberais, que incorporam e impõe um entendimento específico de vida boa. Ao invés de promover uma cultura sobre outra, entende-se como multicultural. Os cidadãos podem escolher a sua própria versão do bem e adotar os seus próprios objetivos e valores, independentemente do Estado. Em tal Estado, a atenção aos ideais multiculturais como reconhecimento, respeito e igualdade de status para todas as culturas se tornará cada vez mais importante.

    O multiculturalismo é um fato atual para a maioria das sociedades ocidentais, e requer que uma sociedade política reconheça a igualdade de posições de todas as comunidades estáveis e viáveis existentes na sociedade, proibindo, assim, a discriminação contra grupos e indivíduos em razão da etnia, raça, nacionalidade, religião, classe, gênero ou preferência sexual. No entanto, algumas dessas comunidades podem ser autoritárias, não liberais e opressivas - de modo que cabe perguntar se "multiculturalismo" se aplica igualmente a todas as comunidades, ou apenas àquelas que são liberais?

    Rawls (6) procura traçar diretrizes para um direito dos povos aceitável para os membros de ambas culturas, liberais e não liberais, através da introdução do conceito de sociedades razoáveis. Essas sociedades seguem certos princípios fundamentais:

    paz (busca dos seus fins através da diplomacia e do comércio);

    bem comum (uma concepção de justiça);

    consulta (uma hierarquia razoável das mesmas);

    responsabilidade (cidadãos reconhecem suas obrigações e desempenham seu papel na vida social);

    liberdade (alguma liberdade de consciência/pensamento).

    Sociedades razoáveis, mesmo as não liberais, poderiam concordar com um direito dos povos com base em um "liberalismo raso" como esse - e isso pode ser visto de forma muito positiva, por oferecer experiências de aprendizagem em ambos os sentidos, já que cada cultura aprende com a outra. Mas o multiculturalismo tem seus limites, e esses limites são delineados pelas pretensões universalistas do "liberalismo raso", apoiadas por alguma forma de teoria dos direitos humanos. Como diz Hollis (7), sociedades liberais: "(...) devem lutar por ao menos uma tese minimalista e processual sobre a liberdade, a justiça, a igualdade e os direitos individuais."

    No curto prazo, no interesse da paz e do desenvolvimento (ou do ganho político ou econômico), esses compromissos morais básicos podem ser temporariamente diluídos ou arquivados - mas eles são a base inalienável da possibilidade de um multiculturalismo global. Há limites para a tolerância. A democracia liberal (ainda) é um sistema excludente - algumas culturas estão além da fronteira.

    Por que devemos ser multiculturalistas? Porque queremos honrar e respeitar a mais ampla variedade da cultura humana. Por quê? Porque isso enriquece a todos nós. Valorizamos a diversidade, porque cada cultura expressa uma forma de vida humana e nos ajuda a apreciar toda a gama de diferença e escolha. É pela mesma razão que valorizamos o conhecimento da história da evolução social humana: para nos ajudar a entender melhor a nossa identidade como seres humanos.

    Mas isso significa que temos de tolerar as diferenças e temos que aceitar que, por vezes, pontos de vista de outras pessoas vão influenciar o nosso. O cidadão liberal permite que a democracia aconteça - as pessoas podem entender a razão para (e, portanto, aceitar) as decisões, mesmo que não concordem com elas. Tal "pluralismo racional" é característico do liberalismo, mas doutrinas "não razoáveis" não aceitarão tal pluralismo. Os liberais entendem que o problema está naqueles que se opõem à valorização de qualquer coisa que não seja sua própria cultura.

    O que fazer, então? Internamente, procurar, pelo menos em alguma pequena extensão, liberalizar essas culturas (por exemplo, fazendo valer os direitos liberais básicos dos Estados liberais). Assim, em culturas minoritárias, não permitir escravos, mutilação, casamento forçado, prostituição infantil etc - ou permitir que os indivíduos escapem de tais circunstâncias se quiserem; negar aos outros o direito de colocar "cabresto" em indivíduos para seus próprios fins. Externamente, buscar políticas internacionais que visem conter sociedades não liberais hostis de forma a minimizar sua ameaça para as liberais.

     

    O UNIVERSALISMO É ETNOCÊNTRICO?

    Críticos do projeto liberal afirmam que a ideia de democracia liberal é um produto histórico, uma espécie de etnocentrismo ocidental, uma espécie de imperialismo pós-colonial, impingindo valores ocidentais locais ao resto do mundo. O tipo de "universalismo" que tanto o liberalismo quanto o olimpismo defendem seria apenas uma cortina de fumaça etnocêntrica. Não há base para tal universalismo dos valores, porque todos os valores surgem dentro das culturas e, portanto, perdem a validade quando atravessam fronteiras culturais - são culturalmente relativos.

    Podemos chamar essa tese de "a heresia do antropólogo": liberalismo para os liberais! Canibalismo para os canibais! (8). Esta tese sustenta que todas as culturas são igualmente válidas, porque elas só podem ser julgadas internamente, em seus próprios termos - por normas e princípios que se aplicam somente a elas mesmas.

     

    OBJEÇÕES AO RELATIVISMO:

    1. Essa tese não explica a crítica moral entre culturas - pois como podemos criticar as práticas injustas se isso é tudo que elas são - práticas dos outros?

    2. Seria o próprio relativismo um tipo de etnocentrismo dissimulado? É verdade que respeitar outras culturas é abster-se de criticá-las? Ou este é um tipo de desrespeito - não aplicar a outros (negando a outros) os padrões de justificativa e argumento que aplicamos a nós mesmos?

    3. O relativismo é autorrefutável. É uma teoria que afirma que não existem verdades interculturais. Mas será que o relativismo se aplica a si próprio? Se assim for, o relativismo não é verdade (porque diz que não existem verdades interculturais, de modo que o próprio relativismo é apenas uma prática cultural de antropólogos, sem a pretensão de verdade, e, portanto, nada tem a dizer a quem está de fora, como eu). Assim, mesmo que o relativismo seja verdadeiro, ele se torna falso. Mas o relativismo não pode ser "verdadeiro", uma vez que afirma que não existe tal coisa como "verdade".

    4. O conceito de cultura também é assunto complicado. O relativismo, diz Lukes (2002), flerta com a noção de "cultura da pobreza", segundo a qual as culturas são conjuntos coerentes e homogêneos. Mas as culturas não são "caixas fechadas". Conflitos surgem dentro das culturas, bem como entre elas, mas o relativismo não nos oferece nenhum modo de progredir nessa área.

    5. Finalmente, a adesão à "heresia do antropólogo" significa uma rejeição de todas as organizações que pretendem valores universalistas, incluindo Nações Unidas, Organização Mundial de Saúde e Anistia Internacional. Isso significa que não existe tal coisa como direitos humanos, uma ideia que, é claro, está enraizada em noções de nossa humanidade universal comum.

    Dessa forma, Lukes (2002) e Hollis (1999) rejeitam o relativismo como uma forma sensata de lidar com a diversidade. Evidentemente, há uma diversidade considerável, e o trabalho do antropólogo é procurá-la e descrevê-la para nós. Mas o antropólogo excede sua competência profissional, quando procura converter suas experiências em uma teoria ética. A importância de tal pesquisa não pode ser subestimada. Ela nos lembra continuamente que devemos reconhecer o valor da modéstia ou reserva no julgamento moral e crítico, e evitar os perigos da moralização abstrata. Mas a experiência antropológica não é uma base suficiente para uma teoria ética. Os fatos da diversidade exigem explicação teórica - mas os fatos, por si só, não a explicam.

     

    A DEMOCRACIA LIBERAL, UM PRODUTO HISTÓRICO?

    Não devemos aceitar o liberalismo simplesmente por ser o ponto de vista da nossa própria tribo, porque qualquer perspectiva política exige uma justificativa, e teremos sempre argumentos a favor e contra determinados sistemas.

    "A democracia liberal é um produto histórico". Bem, é verdade que os benefícios de sociedades liberais resultam de uma série de invenções europeias:

    a constituição do indivíduo como sujeito legal;

    ceticismo quanto à verdade;

    autocrítica;

    separação entre igreja e política (e o surgimento do Estado laico);

    separação de igreja e conhecimento (e desenvolvimento da visão científica de mundo).

    No entanto, o fato de que o liberalismo aconteceu pela primeira vez no Ocidente não nos confere maior virtude. Talvez ele apenas aconteceu aqui - por assim dizer, contingencialmente. Na Europa, historicamente, as pessoas ficaram simplesmente exaustas das guerras religiosas, e o pluralismo surgiu como uma forma pragmática de levar a vida adiante sem a presença permanente de uma guerra debilitante e destrutiva como pano de fundo. E esse desenvolvimento foi longo e doloroso no Ocidente - através de perseguição religiosa e social (havia julgamentos de acusados de "feitiçaria" em toda Europa, católicos na Inglaterra ainda não tinham direitos políticos em meados do século XIX, o mesmo valendo para as mulheres até depois da Primeira Guerra Mundial e os afroamericanos até depois da Segunda Guerra Mundial etc). As mudanças precisaram de centenas de anos para acontecer, e ainda não estamos satisfeitos com nossos sistemas políticos. É uma longa e dolorosa luta para alcançar estabilidade com liberdade e desenvolvimento, e talvez as condições prévias ainda não existam em todos os lugares.

    "A democracia liberal é um produto histórico". A frase faz parecer que não há nenhum argumento que justifique o liberalismo, embora um elemento muito importante do pensamento liberal, que é parte do projeto liberal, é a afirmação de que o liberalismo expressa uma espécie de "verdade" sobre os seres humanos e a condição humana; que é o melhor modo de organização social para o benefício de todos os cidadãos do mundo. Os argumentos que apresentamos em favor do liberalismo afirmam que é o sistema dentro do qual as pessoas podem encontrar a liberdade máxima para o autodesenvolvimento e a máxima possibilidade de escolha de estilo de vida, e através do qual as comunidades podem progredir ao longo do caminho de desenvolvimento escolhido por elas mesmas, em paz e concórdia com outras comunidades. É um fato marcante que nenhuma democracia liberal jamais declarou guerra à outra.

    Mas temos de permanecer autoconscientes e autocríticos. Só porque uma comunidade reivindica o status de democracia liberal isso não significa automaticamente que eles são os "mocinhos". Assim, esperamos ver democracias liberais críticas, esforçando-se na direção de ideais expressos em termos de direitos humanos e coexistência pacífica. Uma vez que são criações humanas, elas serão imperfeitas e cometerão erros. Diz-se frequentemente que a democracia não é um bom sistema de governo - é ineficiente, pesada, conduzida por meio de compromissos desarrumados e insatisfatórios, e com muitas outras falhas e desvantagens -, mas todos os outros sistemas de governo concebidos pela humanidade são piores!

     

    OLIMPISMO DE NOVO

    Estão delineados, acima, a distinção entre conceitos e concepções, e o argumento de que o conceito do olimpismo tem um alto grau de generalidade. De fato, ele estabelece uma gama de valores liberais "rasos", aliados aos valores superficiais subjacentes ao conceito de esporte. No entanto, os valores que compõem o seu significado admitem interpretações conflitantes, exibindo uma gama de valores "profundos", conforme o conceito do olimpismo encontra diferentes expressões de acordo com o tempo e o lugar, a história e a geografia.

    No que diz respeito à promoção de seus objetivos de compreensão internacional e multiculturalismo, é da maior importância que o movimento olímpico continue trabalhando para uma representação universal e coerente de si mesmo - um conceito de olimpismo com o qual cada nação possa sinceramente se comprometer, ao mesmo tempo em que encontre para essa ideia geral uma forma de expressão (uma concepção) que seja exclusiva para si, gerada por sua própria cultura, localização, história, tradição e futuro almejado.

    Oferecer educação multicultural na e para as democracias modernas é uma tarefa nova e urgente, que deve se colocar para funcionar se quisermos garantir uma herança política viável para as gerações futuras. No presente contexto político global, isso significa promover a compreensão internacional e respeito mútuo; e um compromisso com a resolução pacífica de conflitos.

    No caso do olimpismo, os valores "rasos" subjacentes à estrutura de regras do esporte, cuja aceitação por todos os participantes é uma pré-condição para a existência permanente da competição esportiva, apoiam tais esforços políticos nos níveis educacional e cultural. As crianças que são trazidas para as práticas esportivas, e que estão informadas sobre as competições internacionais como os Jogos Olímpicos, estão se tornando conscientes das possibilidades de cooperação internacional, respeito e valorização mútua.

    Hoje em dia a própria ideia de uma "sociedade fechada" está sob ameaça em toda parte - as pessoas já não dependem mais de formas restritas e controladas de informações. A internet, televisão por satélite e formas globais de comunicação estão contribuindo para a democratização da informação, e a extensa migração de pessoas em todos os continentes está produzindo um novo cosmopolitismo.

    Será necessário níveis cada vez mais altos de dogmatismo, autoritarismo, isolacionismo e extremismo para sustentar sociedades fechadas e exclusivistas. As vidas dessas sociedades estão limitadas. Isso, de qualquer forma, deve ser a nossa esperança, e a esperança de qualquer tipo de internacionalismo pacífico baseado nas ideias de liberdade individual e de direitos humanos.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. De Coubertin, P. "Forty years of olympism", (1894/1934). In: Carl-Diem-Institut (ed). The Olympic Idea: Pierre de Coubertin - discourses and essays. Stuttgart: Olympischer Sportverlag, 1966, pp.126-130.

    2. Parry, J. "Physical education as olympic education". European Physical Education Review, v. 4, nº. 2, pp. 153-167, 1998a. Parry, J. "The justification of physical education". In: Green, K.; Hardman, K. (eds), Physical education -a reader. Aachen: Meyer and Meyer, 1998b, pp. 36-68,

    3. Rawls, J. "The law of peoples". In: Shute, S.; Hurley, S. (eds). On human rights. New York: Basic Books, 1993, pp. 41-82.

    4. Parry, J. "Sport and olympism: universals and multiculturalism". Journal of the Philosophy of Sport, v. 33, nº. 2, 2006, pp. 188-204.

    5. Neste artigo, os termos "liberal" e "liberalismo" referem-se ao liberalismo clássico e devem ser claramente distinguidos da ideologia neoliberal (principalmente norte-americana), que enfatiza os princípios econômicos, especialmente a primazia das forças de mercado na economia global. O liberalismo clássico, ideologia política desenvolvida no século XIX na Europa e nos Estados Unidos, enfatiza os princípios políticos de igualdade, liberdade, reciprocidade e justiça.

    6. Na obra The law of peoples, o filósofo político norte-americano John Rawls, se refere ao direito dos povos como: "uma concepção política particular de direito e justiça que se aplica aos princípios e normas do direito e da prática internacional."

    7. Hollis, M. "Is universalism ethnocentric?". In: Joppke, C.; Lukes, S. (eds), Multicultural questions, Oxford: OUP, 1999, pp. 27-43.

    8. Lukes, S. Liberals and cannibals. London: Verso, 2002. Ver também: Hollis, M. "Is universalism ethnocentric?". In: Joppke, C.; Lukes, S. (eds), Multicultural questions, Oxford: OUP, 1999, pp. 27-43.

     

     

    Tradução de Gilberto Stam
    (*) Este artigo foi traduzido por Gilberto Stam a partir do original em inglês.