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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo jul./set. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300002 

    TENDÊNCIAS

     

    Feminismos e violência de gênero no Brasil: apontamentos para o debate

     

     

    Regina FacchiniI; Carolina Branco de Castro FerreiraII

    IDoutora em ciências sociais, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) e professora dos programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Email: re.facchini@gmail.com
    IIDoutora em ciências sociais, pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp. Email: carolinabcf.uni@gmail.com

     

     

    A violência contra as mulheres aumentou nos últimos anos? As denúncias aumentaram? Existem mais feministas hoje do que antigamente? Estas e outras questões têm sido respondidas frequentemente por pesquisadores dos estudos de gênero e feministas ao longo dos últimos anos, tendo como base a exposição midiática de acontecimentos, como a organização das Marchas das Vadias, a chamada Primavera Feminista, as denúncias de estupros em universidades e os recentes casos de estupros coletivos no Rio de Janeiro e no Piauí.

    Um ponto de partida para pensar essas e outras questões é a articulação de dois elementos. Um primeiro diz respeito às mudanças que têm difundido e diversificado a produção do sujeito político do feminismo no país. Um segundo, que vai ao encontro desse, é a mudança nas convenções que implicam a percepção, reconhecimento e enfrentamento à violência de gênero.

    O movimento feminista brasileiro ganha impulso com a declaração, pelas Nações Unidas, de 1975 como o Ano Internacional da Mulher e com jornais como o Brasil Mulher e o Nós Mulheres.

    Nesse período, a temática da violência já se revestia de centralidade na pauta política do movimento, em sintonia com a bandeira "o pessoal é político". Contudo, como ressalta Machado (1), a pauta de maior visibilidade política envolvia a defesa da vida das mulheres, sintetizada no slogan "quem ama não mata". A crítica à violência cotidiana e crônica contra as mulheres, que já eram pauta dos grupos de SOS Mulher, e as reivindicações referentes à liberdade sexual não encontravam terreno fértil no debate público.

    O pós-redemocratização é marcado pela abertura de espaços de interlocução socioestatais, como os Conselhos dos Direitos das Mulheres (CNDM), criados a partir de 1983. Desses espaços, nasce a proposta da criação de delegacias especializadas e também o chamado "lobby do batom" na Constituinte, que demandava o combate à violência, a redefinição da classificação penal do estupro e a criação de delegacias da mulher em todos os munícipios. A Constituição elaborada a partir dessa movimentação incluiu o direito à "igualdade de gênero".

    Os anos 1990 são marcados por: adoção de formatos institucionalizados pelos grupos; participação socioestatal; criação de redes nacionais; articulação em âmbito internacional e sintonia com organismos internacionais, visando à incorporação pelo Estado brasileiro de resoluções de conferências e tratados internacionais. É nos anos 2000 que são criados órgãos governamentais destinados a gerir políticas para mulheres: primeiramente em 2002, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, com a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, vinculada ao Ministério da Justiça, e, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), que manteve status de ministério entre 2003 e 2015.

    Os anos 2000 apresentam um ponto de inflexão importante, não apenas pela criação de órgãos de gestão, mas pela ampliação das formas de participação, com a convocação de conferências de políticas para as mulheres, que foram base para a elaboração de planos nacionais de políticas para as mulheres. É a partir da ação transversal da SPM em relação a outros ministérios e de sua articulação com o CNDM que se articula a Lei Maria da Penha (2006) e que são implantados sistemas de notificação de violência contra a mulher. Em 2009, a tipificação penal de estupro foi alterada, permitindo abranger outras práticas tidas como sexuais para além da penetração vaginal. Tais mudanças representam passos significativos na alteração dos regimes de visibilidade dos feminismos e da violência de gênero, bem como na mudança de sensibilidades quanto ao que pode ser classificado como violência.

    A alteração dos regimes de visibilidade dos feminismos é também possibilitada, a partir desse período, pela crítica à centralidade da atuação institucional, que dá lugar à emergência de grupos e coletivos que apostam em discursos e "modos de fazer" mais horizontais, resultando em uma multiplicação de campos feministas e pluralização das práticas (2). Além disso, ganha força uma política de mobilização de diferenças, e surgem reivindicações de lugares políticos específicos: as negras, as camponesas, as lésbicas, as indígenas e as jovens. Contudo, é a partir da popularização do uso da internet e da possibilidade de produção de conteúdo por usuárias, que os repertórios feministas alcançam maior disseminação, aprofundando contatos em organizações políticas e grupos já existentes, mas também criando outras conexões político-digitais.

    A partir de 2011, por meio de articulações transnacionais facilitadas pela internet, emergem ocupações do espaço público coordenadas por redes político-comunicacionais feministas (principalmente a partir de blogs, Facebook e Twitter). Eventos como as Marchas das Vadias se consolidam na agenda de combate à violência de gênero e dão lugar à constituição de coletivos locais com reuniões presenciais, estabelecendo-se como nódulos relevantes em meio a essa teia político-comunicacional.

    A articulação entre blogs, redes sociais, coletivos e ocupação do espaço público constitui-se como locus pedagógico e de reconhecimento, ampliando as semânticas e gramáticas políticas referentes à violência de gênero e às formas de visibilizá-la. A Marcha das Vadias e as denúncias de estupros em universidades a partir de 2014 implicam e difundem novas formas de classificar o que é tido como violência, em sintonia com a alteração da tipificação de estupro. Campanhas criadas a partir de depoimentos em primeira pessoa, como #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto, politizam acontecimentos cotidianos e dão corpo a noções como "cultura do estupro", que investem na ideia da não excepcionalidade e do enraizamento cultural das condições que possibilitam a larga disseminação da violência sexual no país. Toda essa mobilização se articula a dados de pesquisas, como os do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que indicam que a cada 11 minutos uma pessoa é estuprada no Brasil, ou do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que indicam que somente 10% dos casos são denunciados e, em aproximadamente 70% dos casos, os agressores são conhecidos ou mesmo pessoas próximas à vítima.

    Em contraste com a maior visibilidade e difusão dos feminismos e das mudanças nas convenções acerca do que pode ser classificado como violência, a virada da última década é marcada por forte reação conservadora. Em uma legislatura apontada como uma das mais conservadoras das últimas décadas, é produzido um conjunto de propostas legislativas que retrocedem direitos, como no caso do PL 5069/2013, que altera e restringe a abrangência do atendimento a mulheres vítimas de violência sexual em hospitais, pela exigência da apresentação de boletim de ocorrência e exame de corpo de delito para a prevenção ou interrupção da gravidez decorrente de estupro.

    Na contramão das evidências que apontam a violência sexual como algo frequente e fortemente enraizado nas desigualdades de gênero persistentes na sociedade brasileira, o necessário combate a partir de políticas educacionais tem encontrado entraves na retirada sistemática de qualquer menção a "gênero" em planos municipais, estaduais e nacional de políticas para a educação. Além disso, a defesa pública de proposições e medidas conservadoras no executivo e no legislativo tem encorajado discursos e práticas que reforçam a violência de gênero e a culpabilização das vítimas.

     

    Referências

    1. Machado, L. Z. Feminismo em movimento. São Paulo: Editora Francis, 2010.

    2. Alvarez, S. E. “Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, 2014.