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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo jul./set. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300008 

    MUNDO
    REFUGIADOS

     

    Serviços comunitários de saúde mental para refugiados: um relato da fronteira turca

     

     

    Nádia Duarte Marini

    Psicóloga, mestranda na Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área humanitária desde 2014 e atualmente na fronteira da Turquia com a Síria

     

     

    Alaa é agente comunitário de saúde mental na ONG turca Support to Life que presta auxílio a outros sírios que, como ele, escaparam da guerra. Segundo Alaa, não há um cidadão sírio sequer que não tenha sido afetado pela atual guerra em que o país se encontra. Os números não são modestos. A Agência das Nações Unidas para Refugiados regional na Síria (ACNUR) estima que cerca de 5 milhões de pessoas estejam refugiadas do país, além de outros 6 milhões deslocados internamente, o que somados significaria quase a metade da população síria antes da guerra, iniciada em 2011. Concentrados principalmente nos países vizinhos, 2,8 milhões dos refugiados estão cadastrados apenas na Turquia.

    As experiências provocadas pela guerra causam ou exacerbam problemas psicológicos. Isso é um fato já conhecido na área de saúde mental. A própria história do desenvolvimento da área traz uma série de casos clássicos de pessoas que sobreviveram à guerra e desenvolveram todo tipo de sintoma psicológico, tais como distúrbios do sono, dificuldade de ajustamento ao meio de origem, rememoração involuntária das cenas de guerra, dentre outros. O estudo de tais casos levou Sigmund Freud a cunhar o termo "neurose de guerra" e teve grande importância no desenvolvimento do conceito de "trauma", processo que ocorreria na vida de um sujeito quando ele experiencia um evento para o qual não há condições psíquicas de elaboração para tal, provocando um distúrbio na forma como aquele evento fica registrado, o que estaria na origem dos sintomas já citados. Muito já se avançou no estudo clínico de casos de guerra. A contribuição de diversas áreas do conhecimento produziu um rol de diferentes intervenções hoje disponíveis ao profissional de saúde mental. A recordação sobre a origem do conceito em Freud, no entanto, se faz importante para apontar o aspecto subjetivo e individual do trauma, que, no caso da guerra, mesmo sendo um evento coletivo e potencialmente traumatizante em grande escala, afeta cada indivíduo de maneira singular. Em termos de saúde pública, isso aponta para o fato de que nem todo indivíduo que passou pela guerra ou por uma situação catastrófica está necessariamente traumatizado. Reações psicológicas temporárias podem aparecer e não devem ser consideradas apressadamente como patológicas, visto serem reações normais em resposta a um evento anormal (a catástrofe), e geralmente desaparecem com o retorno do indivíduo a uma rotina e com o seu engajamento em uma comunidade.

     

     

    AGÊNCIAS HUMANITÁRIAS

    Especialistas em programas de saúde mental no contexto de emergências, como os do Comitê Permanente Inter-agências (IASC) das Nações Unidas, alertam ainda para o risco de se focar no estresse pós-traumático como principal problema psicológico e negligenciar a diversidade de fenômenos subjetivos que podem requerer igual atenção em saúde mental nesses contextos.

    De fato, em campo observa-se reações e processos pessoais tais como o luto, a sensação de não pertencimento, a prostração, as reações psicossomáticas, a desestabilização de casos graves que antes estavam estáveis, além de problemas psicossociais complexos como o aumento de conflitos familiares, a violência contra mulheres e crianças, o casamento com menores e o trabalho infantil.Em todos esses problemas podem acontecer intervenções do psicólogo e do profissional de saúde mental. Para os profissionais que já viram de perto a realidade vivida num contexto de emergência humanitária, constata-se que a dimensão social da catástrofe está implicada intrinsecamente em suas consequências clínicas, o que aponta para um modelo de atenção em saúde mental que reúna ambos os componentes, o clínico e o social.

     

    SAÚDE MENTAL

    Dentro do contexto da Turquia, o modelo de centros comunitários para atendimento de refugiados foi trazido pelas ONGs em resposta à crise humanitária da Síria. Nesses centros comunitários, oferece-se um espaço de encontro para o (re)estabelecimento de laços tanto com a comunidade local quanto com a própria comunidade síria. Os centros são administrados e financiados por diferentes ONGs locais e internacionais e oferecem cursos profissionalizantes, cursos de idiomas, atividades psicossociais para crianças e adultos, e encaminhamento para programas sociais, dentre outros serviços comunitários. Mais recentemente, há uma tendência em agregar um componente de saúde mental e atenção psicossocial nesses centros, de forma integrada às outras atividades sociais já existentes.

    Este é o caso de um dos centros comunitários em Sanliurfa, cidade de fronteira ao sul da Turquia onde trabalha Alaa, um refugiado que busca refazer os próprios laços cuidando de outros refugiados em um projeto de saúde mental. Alaa tem 31 anos, nasceu em Kobani, na Síria, e formou-se em língua e literatura árabe. Atuou como professor em sua terra natal até ter de imigrar para escapar da guerra.

    Hoje, ele mora sozinho e sua família está espalhada em diferentes lugares e países. Como agente comunitário de saúde mental, ele desenvolve atividades psicossociais em grupo para crianças e adolescentes e acompanha pacientes, adultos e crianças, que necessitam de atendimento psiquiátrico. "Depois da guerra, os problemas de saúde mental aumentaram. Todo refugiado vive uma perda, um mal-estar. Alguns precisam de terapia, outros de atendimento no hospital, por isso a importância desse trabalho. Poder ajudar é uma coisa boa", diz ele. Como projeto pessoal, Alaa pretende filmar um documentário que trate da perda.

    Para ele, é importante ouvir, sentir e compartilhar o que os refugiados vivem. Dessa forma, as pessoas têm a oportunidade de falar sobre o que viveram e resignificar experiências, recomeçando caminhos que foram interrompidos pela guerra.

    Das dificuldades, ele diz da sua própria, que é a de estar no lugar de estrangeiro, em uma terra à qual ele não se sente pertencente. A esperança de retornar à sua terra é uma das coisas que dão força a Alaa. "Como refugiado, no lugar do que foi perdido, o que foi encontrado?". Com essa pergunta, endereçada aos refugiados do seu documentário, ele abre espaço para a elaboração de sua própria trajetória. A história, que é pessoal e singular, faz laço com outras histórias.

    O projeto e a experiência de Alaa mostram como o modelo comunitário em saúde mental pode ser uma resposta criativa à crise humanitária. Esse e outros indicativos provenientes do trabalho de campo sugerem que ele é adequado aos contextos de refúgio, onde há grande demanda por cuidados em saúde mental mas, geralmente, poucos recursos humanos e financeiros. A implementação e o estudo de tal modelo podem trazer contribuições ao campo do conhecimento da saúde mental de refugiados. Pode, ainda, agregar um possível benefício à realidade local do sistema de saúde mental da Turquia, já que os serviços são tradicionalmente centrados nos hospitais e o país vem tentando mudar essa realidade, na direção de um cuidado mais acessível e integrado à comunidade.