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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo July/Sept. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300009 

    ARTIGOS
    APRESENTAÇÃO

     

    Desastre da Samarco: aproximações iniciais

     

     

    Celina Maria ModenaI; Léo HellerII

    IPesquisadora do Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento
    IIPesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou, Fiocruz, relator especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário, das Nações Unidas (ONU) e líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento

     

     

    A tragédia do rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da Samarco, controlada pela Vale e BHP Billiton, é considerada o maior desastre socioambiental ocorrido no Brasil e um dos maiores relacionados à mineração no mundo. Transcorridos mais de seis meses do evento, diversos relatórios técnicos foram produzidos por diferentes instituições públicas e privadas, para análise dos impactos e estruturação de planos de resposta ao desastre, estudos acadêmicos vêm se preocupando em compreender a magnitude e extensão dos impactos provocados, bem como a forma como instituições e populações vêm se comportando e se expressando. Dado esse acúmulo preliminar de informações, a revista Ciência e Cultura decidiu, muito oportunamente, dedicar este Núcleo Temático à veiculação de apontamentos que parte da comunidade acadêmica desenvolveu sobre a tragédia.

    Sob o ponto de vista das negociações judiciais e institucionais, é relevante o acordo firmado entre os governos federal e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo e as empresas responsáveis, visando à recuperação, mitigação e compensação dos impactos socioeconômicos e socioambientais do rompimento da barragem. Um dos artigos deste número analisa tal acordo e conclui que, de maneira geral, este atribui poder excessivo às empresas responsáveis pelo rompimento da barragem, enfatizando o afastamento do Estado no atendimento aos afetados (1). Sob esse mesmo tema, o manifesto: "Respeito às vítimas da tragédia provocada pela Samarco (Vale/BHP Billiton) é o mínimo que se pode exigir dos responsáveis!", de 1º de fevereiro de 2016, assinado por diversas entidades, defende que a gestão de todas as medidas pós-desastre tenham o protagonismo do Estado, com transparência e controle social (2).

    A Fiocruz, em "Moção de apoio e de solidariedade às populações atingidas pelo crime ambiental da mineradora Samarco" enfatiza que (3):

    O cenário atual mostra a urgência de uma mobilização do poder público e de toda sociedade. (...) É absolutamente indispensável que o cuidado com os atingidos nesta tragédia seja abordado a partir do princípio de seus direitos humanos e que sejam garantidas adequadas condições, que minimamente restaurem a sua qualidade de vida. (3)

    No trajeto dos rejeitos remobilizados da barragem, o distrito de Bento Rodrigues, moradia de aproximadamente 600 pessoas, foi totalmente destruído, soterrado pela lama. A revista Curinga (vol.16, 2016), em edição especial, reconstrói a história do distrito através dos recortes do século XVII e XXI (4):

    Existem dois bentos, o criador e a criatura. Do primeiro, Bento Godoy Rodrigues, pouco se sabe. É fragmento de textos em livros antigos. Pela origem, nascimento e sepulcro, seria um eterno desconhecido. Porém, deixou seu nome marcado na história e fez do caminho do ouro sua própria estrada real. (...) Desbravando a mata, já ao pé da Serra do Caraça, conseguiu, em um dia e meio de trabalho, o feito de encontrar quase uma arroba do metal precioso. Os aproximados 13kg em pepitas de ouro fez com que desse ao lugar seu próprio nome: Bento Rodrigues. (...) em um tempo de muita fé, São Bento foi designado padroeiro do lugarejo. (...) a organização política fez do povoado um subdistrito da cidade de Mariana. As fazendas viraram casas, as trilhas viraram ruas, o lombo de animais e de escravos deram espaço para carros com motor e para pessoas livres. São Bento ganhou novena - todos os anos, no mês de julho. Houve um tempo que existia coral. Apareceu o time de futebol. Em 1950 a escola foi inaugurada. No final da década de 1970, chegou a energia elétrica. Tinha bar, tinha praça, tinha pássaros e plantações. Bento Rodrigues esteve de pé por 307 anos, até ser enterrado por um rio de lama. (...) Não enterraram a pessoa. No lugar, tudo que estava à vista foi sepultado. Sem direito a despedidas ou a lágrimas de "adeus". É estranho, mas houve uma inversão da ordem. O natural era que tudo acabasse, que com o tempo caísse no esquecimento. Mas é diferente. Do enterro, veio o velório. As memórias de 600 "filhos" de Bento fazem com que a tristeza vire esperança. A troca de flores é diária, até que venha o renascimento: tiram as mágoas, cultivam a fé.(...) O bandeirante Bento Godoy Rodrigues viveu na travessia do século XVII para o século XVIII. Mas Bento Rodrigues é infinito. O subdistrito Bento já não é apenas Rodrigues. Bento agora é Damasceno, é Lucas, é Santos, é Souza, é Silva. É uma porção de outros sobrenomes (pg. 16). (4).

    Os danos ambientais e humanos estenderam-se por 600 km. A população tem se mobilizado de diferentes formas. O jornal A Sirene-para não esquecer remete à sirene da mineradora, que não soou para alertar os moradores da chegada do mar de lama. O jornal também denuncia o impacto da tragédia e os direitos e reivindicações da população afetada. Na matéria "Papo de cumadi" (5), do mesmo jornal, transcrevemos algumas falas relativas ao impacto na saúde:

    (...) cê viu que tanto de gente que tá doente depois desse barro? Doente do corpo e da cabeça. É dengue, é zica, e chico bunha.

    (...) é homem de bem que da roça foi tirado. Olha cumpadi Malaquia, aqui no mato quase nem bibia, na cidade bebe todo dia.

    (...) entrô barro na minha casa, entrô barro no meu guarda-roupa, entrô barro no meu sonho, entrô barro na minha vida, entrô barro na minha esperança.

    (...) é doença du corpo e da cabeça que mata o povo e faz o povo se matá.

    (...) será que tá fartano é rezá?

    (...) Cumadi, nois precisa di rezá: mas é prus hôme que ganha dinheiro sem se preocupá se a gente vai se daná.

    A tragédia que impactou tantas vidas tem diferentes determinações acumuladas, cuja gênese pode ser elucidada por decisões técnico-organizacionais tomadas ao longo da história do sistema. Contribuí-ram para a ocorrência do acidente: dispositivos de monitoramento ausentes por supressão e/ou inoperantes; dispositivo de monitoramento inexistente; não cumprimento do programa de manutenção; adiamento de neutralização/eliminação de risco conhecido; falta de critérios para correção de inconformidades; ausência de projeto; falta de manutenção preventiva (6). Adicione-se às falhas de engenharia a inaceitável conduta do Estado que, em seus procedimentos de licenciamento, autorização e fiscalização, propiciaram o ambiente institucional para que tais falhas se convertessem em tragédia.

    Neste Núcleo Temático, aspectos referentes ao desastre são aprofundados pelos autores com expertise na área. No artigo "O desastre na barragem de mineração da Samarco - fratura exposta dos limites do Brasil na redução de riscos de desastres", Carlos Machado de Freitas, Mariano Andrade da Silva e Fernanda Carvalho de Menezes buscam, a partir da referência das prioridades do Marco de Sendai (2015), extrair lições para redução nos riscos de desastres e impactos ambientais, sanitários e socioeconômicos decorrentes. Os autores apresentam o quadro dos desastres em barragens de mineração no mundo e seus riscos para o Brasil, sistematizam o conjunto de impactos e de ações de mitigação e recuperação e discutem os desafios centrais para a redução de riscos de desastres como o da Samarco. Em complemento, o artigo "Desastre da Samarco/ Vale/BHP no vale do Rio Doce: aspectos econômicos, políticos e socioambientais", de Luiz Jardim Wanderley, Maíra Sertã Mansur, Bruno Milanez e Raquel Giffoni Pinto, elucida pontos essenciais para a compreensão da determinação relacionada a processos e antecedentes econômicos e políticos do rompimento da barragem de Fundão, bem como de seus efeitos socioambientais na bacia do rio Doce.

    "O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações e ações que produzem o sofrimento social", dos autores Andréa Zhouri, Norma Valencio, Raquel Oliveira, Marcos Zucarelli, Klemens Laschefski, Ana Flávia Santos, discute a não neutralidade de conceitos como desastre, conflito ambiental e desastre tecnológico. Questiona arranjos institucionais estabelecidos para confrontar as consequências do desastre e trabalha as dimensões do sofrimento social. Segundo os autores, "muito oportuno seria a garantia de espaços de autoexpressão dos grupos afetados, em toda a sua diversidade sociocultural, com respaldo jurídico, capaz de recuperar esperanças, cada vez mais escassas, de justiça ambiental".

    Norma Valencio em "Elementos constitutivos de um desastre catastrófico: os problemas científicos por trás dos contextos críticos", a partir do pano de fundo do desastre da Samarco, traz uma reflexão sociológica sobre temas relacionados aos desastres: o problema de definição de desastre e o uso de qualificativos; desastres e crises; os diversos tempos e escalas envoltos em um desastre e outras facetas da desumanização.

    Na narrativa "A tragédia da mineração e a experiência da caravana territorial da bacia do rio Doce: encontro de saberes e práticas para a transformação", Marcelo Firpo Porto - que participou da caravana -, apresenta um relato que nos aproxima intensamente das vítimas e do meio ambiente agredido pela tragédia, mostrando a importância da aliança entre grupos científicos e movimentos sociais que buscam juntos conhecer os territórios, vivenciar solidariamente o drama dos atingidos, sistematizar as denúncias e também reconhecer, anunciar e promover experiências de transformação. Trata-se de uma fonte que pode inspirar a "ecologia de saberes" para compreender situações similares que afetam tão dramaticamente um contingente expressivo de pessoas.

    A pesquisa qualitativa exposta no artigo "O desastre da Samarco/Vale/BHP: análise crítica de alguns discursos, racionalidades e percepções", de Mário Freitas, Elisa Alves, Mariane Santo e Sergio Portella, aponta que houve falha na prevenção, mitigação e preparação, tanto por parte da empresa quanto do poder público. A não existência de plano de contingência implicou a incapacidade de dar uma primeira resposta adequada e dificuldades posteriores, em especial as relacionadas com o progresso da lama até o litoral do Espírito Santo. Constataram-se indiscutíveis angústia e desconforto associados ao ocorrido e à súbita e drástica alteração do modo de vida dos atingidos. Segundo os atores entrevistados, fica clara a enorme influência da empresa sobre as pessoas, os políticos e a vida social.

    Em seu conjunto, os artigos que compõem este Núcleo Temático lançam uma primeira luz sobre o que foi, o que está sendo e o que poderá ser o maior desastre socioambiental brasileiro. Neste rico conjunto de contribuições, podem ser visualizadas diferentes abordagens metodológicas e conceituais para dar resposta a essas indagações, ao lado da perspectiva de diferentes atores sociais afetados.

    O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, natural de Itabira, terra de mineração, nos convoca para uma profunda reflexão, necessária e urgente sobre o tema:

    E virá a companhia inglesa e por sua vez comprará tudo
    e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada
    e secado o ouro escorrerá o ferro, e secos morros de ferro
    taparão o vale sinistro onde não mais haverá privilégios,
    e se irão os últimos escravos, e virão os primeiros camaradas;
    e a besta Belisa renderá os arrogantes corcéis da monarquia,
    e a vaca Belisa dará leite no curral vazio para o menino doentio,
    e o menino crescerá sombrio, e os antepassados no cemitério se rirão
    se rirão porque os mortos não choram.
    (Carlos Drummond de Andrade)

     

    Referências

    1. Milanez, B.; Giffoni Pinto, R. "Considerações sobre o termo de transação e de ajustamento de conduta firmado entre o governo federal, governo do estado de Minas Gerais, governo do estado do Espírito Santo, Samarco Mineração S.A., Vale S.A., e BHP Billiton Brasil Ltda". Poemas-política, economia, mineração, ambiente e sociedade. Abril, 2016, 11 páginas.

    2. Associação Brasileira de Agroecologia (ABA–Agroecologia); Associação Brasileira de Antropologia (ABA-Antropologia); Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência (ABCMC); Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes); Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep); Associação Brasileira de Limnologia (ABLimno); Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec); Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (Anppas); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur); Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae); Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes); Coletivo de Luta pela Água–SP; Federação Nacional dos Urbanitários (FNU); Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA); Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); Instituto Brasileiro de Pesquisa e Gestão de Carbono (CO2 Zero).

    3. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). VII Congresso Interno. Ministério da Saúde.

    4. Mesquita, M.; Tavares, M.; Alves, E. O. "Em nomes que nunca morrem". Revista Curinga. Laboratório de Jornalismo/UFOP. Pag. 17. Março, 2016. Ano VI. Edição especial

    5. Papagaio, S. "Papo di cumadi". In: A Sirene-para não esquecer. Ed.nº 2, abril de 2016.

    6. Ministério do Trabalho e Previdência Social - Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Minas Gerais - Seção de Segurança e Saúde no Trabalho. Relatório de análise de acidente. Rompimento da barragem de rejeitos Fundão em Mariana- MG. Abril, 2016, 138 páginas.