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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo July/Sept. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300014 

    ARTIGOS
    MARIANA

     

    A tragédia da mineração e a experiência da caravana territorial da bacia do rio Doce: encontro de saberes e práticas para a transformação

     

     

    Marcelo Firpo Porto

    Engenheiro de produção e psicólogo, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), coordenador do grupo de trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)

     

     

    Plagiando Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), acidentes, como a história, se repetem primeiro como tragédias e depois como farsas. Como diria o filósofo francês Paul Virilio (1), vivemos uma inversão da lógica aristotélica em nossa crise civilizatória contemporânea: o acidente, o transitório e o fugaz se transformam, cada vez mais, em característica marcante do sistema social, político e econômico. Já a substância, entendida como os valores, os sentidos e os processos do viver humano, seja essa substância material ou imaterial, torna-se descartável, instável, considerada "obsoleta" ou "atrasada".

    O capitalismo, em sua fase atual de globalização, possui uma enorme velocidade de crescimento e expansão. A criação destrutiva de Schumpeter (2), por meio de inovações e expansão de mercados, tende a ser violentamente desequilibrada. O metabolismo social passa a ser um conceito estratégico para a compreensão da crise ecológica, dos conflitos ambientais e dos desastres tecnológicos. Ele busca analisar as relações entre os sistemas sociais e econômicos com os sistemas naturais, biofísicos ou ecológicos (3). O conceito se refere aos fluxos de energia e materiais que existem na economia através dos cinco fenômenos ou fases que caracterizam o processo metabólico: a apropriação; a transformação; a circulação; o consumo; e, finalmente, a excreção ou produção de dejetos. Riscos ecológicos globais e desastres tecnológicos podem ser percebidos como sintomas desse profundo desequilíbrio entrópico.

    O desastre da Samarco-Vale-BHP, iniciado no dia 5 de novembro de 2015, ficará marcado como uma das maiores tragédias socioambientais do país. É reflexo de uma crise maior da megamineração e sua recente expansão no Brasil. Tratou-se de uma tragédia anunciada. Acidentes graves com barragens vêm se repetindo em Minas Gerais com frequência: 2001, 2003,2007, 2008, 2014, com mortes e destruição ambiental. A origem da tragédia, portanto, está diretamente relacionada ao modelo de desenvolvimento pautado na megamineração que fez do Brasil o segundo maior exportador de minério de ferro e a Vale a maior produtora do mundo, sendo a terceira maior mineradora mundial. Temos as maiores minas do mundo em Minas e no Pará (Carajás), as importações globais de minérios cresceram mais de cinco vezes entre 2003 e 2013, e o mercado volátil das commodities fazem com que ondas de crescimento sejam seguidas de quedas mais ou menos abruptas que afetam a segurança e gestão ambiental (4).

    O modelo da megamineração envolve muito dinheiro com promessas de desenvolvimento e progresso. Mas carrega consigo muitos impactos socioambientais que os economistas denominam de "externalidades": poluição, apropriação de terras de agricultores, indígenas, quilombolas e ribeirinhos; circulação de caminhões e ferrovias que podem atropelar animais e seres humanos, minerodutos que gastam muita água em tempos de crise hídrica. Tal cenário de degradação ambiental, violação de direitos e mortes está associado a uma gestão ambiental extremamente precária: legislação frágil e não cumprida; licenciamento ambiental acelerado e pouco participativo, com grande fragilidade técnica e política dos órgãos públicos que fiscalizam; empresas que se autorregulam e "investem" nas campanhas eleitorais de legisladores e gestores que passam a "colaborar" com o "progresso".

    No caso do rompimento da barragem de Fundão, a lama de rejeitos da mineração atingiu toda uma bacia hidrográfica até sua foz e região costeira, caracterizando a amplitude e a gravidade da tragédia. A bacia do rio Doce é extremamente importante para a região e dela depende um amplo e diversificado conjunto de comunidades e populações que consomem e vivem de suas águas, seja como bem material ou simbólico, caso evidente do significado espiritual do Watu (rio Doce) para o povo Krenak. São muitos os atingidos: agricultores e assentados da reforma agrária, pescadores, indígenas, cidadãos que bebem a água tratada para consumo humano, os que vivem do turismo cultural e ecológico na região, até mesmo surfistas de Regência (ES), um dos melhores locais para a prática do surfe no país. Uma grande diversidade de culturas, identidades e paisagens ao longo de centenas de quilômetros.

    Nesse contexto, como articular a luta política pela defesa de direitos, influenciar na transformação do modelo de desenvolvimento e produzir conhecimentos numa perspectiva emancipatória? Mais que uma ciência objetiva, neutra e produtora de indicadores aos "tomadores de decisões", a tragédia de Mariana revela a necessidade de uma ciência engajada, cidadã e sensível, antenada com os clamores por justiça e que avance nos processos participativos e compartilhados de produção de conhecimentos e práticas coletivas. Uma aliança entre grupos científicos e movimentos sociais que buscam juntos conhecer os territórios, vivenciar solidariamente o drama dos atingidos pelas tragédias do desenvolvimento, sistematizar as denúncias, mas também reconhecer, anunciar e promover experiências de transformação.

    A proposta da caravana territorial da bacia do rio Doce busca avançar nessa direção.

     

    SOBRE A CARAVANA TERRITORIAL: UMA FERRAMENTA POLÍTICO-PEDAGÓGICA

    A caravana territorial é um instrumento político-pedagógico construído pelo movimento agroecológico no Brasil, junto com diversas entidades, redes e movimentos sociais. Ela vem sendo trabalhada desde o Encontro Nacional de Diálogos e Convergências entre Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo realizado em 2011 (5). No processo de preparação ao III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), ocorrido em 2014, quinze caravanas foram realizadas em diferentes territórios do país reunindo diversos agricultores, professores, movimentos sociais, pesquisadores, estudantes, coletivos e gestores públicos. Elas também têm sido utilizadas por núcleos regionais de agroecologia em conjunto com outros instrumentos metodológicos, como as instalações pedagógicas e os círculos de culturas (6).

    As caravanas são incursões solidárias em um dado território organizadas por distintas redes, movimentos sociais, ONGs e grupos acadêmicos engajados. Rotas são construídas em torno de experiências tanto de anúncios - práticas agroecológicas, feiras alternativas de comercialização, banco de sementes crioulas, economia solidária, saúde popular e comunitária etc -, como de denúncias e resistências. Por exemplo, conflitos ambientais em torno da expansão do agronegócio, projetos de mineração, construção de hidrelétricas, ferrovias, rodovias, minerodutos, dentre outros. Mais que impactos e injustiças socioambientais, as caravanas revelam como a resistência organizada de camponeses, indígenas, quilombolas, mulheres, trabalhadores/as do campo e das cidades possibilitam o emergir dos conflitos, a visibilidade em torno dos direitos violados e a busca por alternativas.

    As caravanas realizam-se por meio de visitas, intercâmbios, observações, atos públicos, rodas de conversa e troca de saberes entre caravaneiros/as e famílias, grupos, coletivos e moradores que recebem as rotas. Trata-se, como explica o "Caderno do(a) Participante da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce" (7), de exercitar um olhar coletivo e popular sobre o território, com suas contradições e os desafios de construção de uma nova sociedade. Ainda segundo o caderno, as experiências com diversas caravanas têm revelado a diversidade de situações, contextos, povos, habitats, complexidades, contradições e anúncios, desafios e possibilidades de autonomia e participação de grupos subalternizados pela economia dominante e por agentes hegemônicos.

    Aliado às caravanas, outros instrumentos criativos de participação e expressão têm sido adotados. Por exemplo, as chamadas instalações pedagógicas (6), que são cenários construídos para compartilhar vivências da caravana, ou mais especificamente de uma rota, para pessoas que não participaram. Costumam ser montadas e apresentadas em momentos de culminância de uma caravana quando esta possui várias rotas, ou em algum evento posterior, como no caso III ENA, que se iniciou com uma apresentação simultânea de 15 instalações pedagógicas que refletiram sobre as 15 caravanas realizadas anteriormente.

    A instalação pedagógica apresenta-se como alternativa viva aos métodos orais ou textuais clássicos que predominam fortemente no mundo acadêmico, aproximando-se de uma instalação artística em sua dimensão estética. Cada instalação é montada coletivamente por aqueles que participaram da rota ou caravana, com uma multiplicidade de símbolos visuais, fotos, performances (por exemplo teatrais, musicais, recitações poéticas, cantos e danças tradicionais etc), e a presença de alguns de seus participantes para falar dos símbolos presentes e dar depoimentos de suas vivências. A instalação pode ser vista como um cenário privilegiado de intercâmbio entre diversos saberes (populares, camponeses, indígenas) e acadêmicos, compondo, a partir de elementos da realidade vivenciada, uma ambiência problematizadora e suscitadora de reflexões. São, portanto, dispositivos dialógicos, captados por diferentes sentidos além da razão (como nas chamadas feiras agroecológicas de saberes e sabores), que apresentam e organizam diferentes elementos significativos das realidades vividas, ressignificando-as e gerando novos saberes e reflexões.

    Outra ferramenta crescentemente utilizada pelos grupos agroecológicos, organizações e movimentos sociais é a chamada facilitação gráfica. Ela pode ser definida como um método de registro, facilitação do trabalho de grupo e compartilhamento sinóptico ou holístico de informações e conhecimentos. Consiste no trabalho de um ou mais facilitadores que vão registrando sínteses publicamente com a utilização de flip charts, papéis largos, murais e outras mídias visuais. Vem sendo usada no contexto, de diferentes organizações, voltado à produção criativa, compartilhamento e divulgação de conhecimentos (8). No contexto da agroecologia e dos movimentos sociais, sua aplicação tem recebido maior dose de ousadia e liberdade artística, pois diversos facilitadores vão compondo, a partir de seus talentos, uma espécie de quadro ou tela com desenhos, imagens e palavras chaves a medida que vão vivenciando certa reunião ou trechos de uma caravana (9). A partir do que também é chamado de "colheita" de informações, relatos significativos são transformados por facilitadores sensíveis em imagens que potencializam a capacidade de compreensão de realidades e temas mais complexos e a organização de ideias. Em vez de ler ou ouvir um relato, trata-se de vê-lo, senti-lo, saboreá-lo.

    A adoção e desenvolvimento de metodologias participativas e criativas, como as instalações pedagógicas e facilitação gráfica, vão além de métodos adotados pelas ciências sociais como a observação participante ou mesmo a pesquisa-ação. Elas fazem a ponte entre concepções, as mais diversas, como a da pedagogia da criação do filósofo e educador norte-americano John Dewey, e autores pós-coloniais como Boaventura de Sousa Santos e sua proposta de ecologia de saberes. Caminha na direção do que Guerrero Arias denomina de "corazonar", uma expressão de origem andina que o autor utiliza para explicar o deslocamento da hegemonia da razão, para um tipo de compreensão de que a condição humana constitui-se entre a afetividade e a razão, cujo horizonte é a construção de outras propostas epistemológicas e outros sentidos da existência: "(...) corazonar la vida es una respuesta insurgente para enfrentar las dicotomías excluyentes y dominadoras construidas por Occidente, que separan el sentir del pensar, el corazón de la razón, seres humanos entre sí y a estos de la naturaleza y el cosmos" (10).

     

    A CARAVANA TERRITORIAL DA BACIA DO RIO DOCE: RELATOS DE UM CARAVANEIRO

    Descrever uma caravana, necessariamente, implica em uma forma particular de relato, que aproxima o relato de viagem, o relato etnográfico, o diário de campo e o ensaio, podendo diluir fronteiras entre ciência, literatura e poesia. Como nos propôs Guerrero Arias (10), um relato em que razão, coração e solidariedade se unam para expressar aprendizados e compartilhar experiências. Estas podem ser de denúncias e resistências contra as diversas formas de opressão contra as comunidades e a natureza, mas também de anúncios, de alternativas de como pessoas, organizações, movimentos sociais trabalham e se mobilizam para transformar a sociedade e, de certa forma, a si próprios como sujeitos coletivos e individuais. Como disse um sábio camponês com quem conversamos na caravana, uma experiência de "meter o pé na estrada" para "reduzir nossa ignorância".

    Segundo a carta política da caravana (11), lida no ato político que cruzou as ruas de Governador Valadares na manhã do sábado (16/04/2016), a realização da caravana foi movida "pelo sentimento de justiça, indignação, luta, resistência e vontade de transformar o modelo de sociedade e de desenvolvimento de nosso país".

    A caravana, que foi definida logo após o rompimento da barragem de Fundão - referido na carta política como uma tragédia-crime -, envolveu dezenas de organizações nacionais - principalmente as envolvidas no já referido Encontro Diálogos e Convergências (5), regionais e locais, com a participação de cerca de 150 caravaneiros e mais de mil pessoas que participaram das inúmeras atividades realizadas. A caravana se dividiu em quatro rotas que percorreram o alto, médio e baixo rio Doce desde o dia 11 até o dia 14 de abril de 2016, e nos dias 15 e 16 todas as pessoas se encontraram no chamado ponto de culminância na Praça dos Pioneiros, no centro de Governador Valadares, permitindo que os cidadãos locais também pudessem interagir.

    No dia 15 foi feito um intercâmbio de experiências por meio de instalações pedagógicas para cada rota, e uma mesa redonda com representantes da comissão de criação do Fórum Permanente de Defesa do Rio Doce, do povo indígena Krenak, das organizações acadêmicas presentes na rota, e do Ministério Público Federal. No dia 16 de abril deste ano, sábado, ao longo de toda a manhã foi realizado um ato político partindo da Praça dos Pioneiros. Cerca de duzentas pessoas caminharam por mais de duas horas ao longo das ruas de Governador Valadares e, ao final, foi feita a leitura da carta política junto à estação da estrada de ferro Vitória a Minas controlada pela empresa Vale.

    A caravana teve quatro rotas: a primeira rota seguiu o caminho da lama de rejeitos a partir de Mariana, revelando o lado mais dramático e também mais conhecido da tragédia-crime e conhecendo experiências de resistência e lutas por direitos, com o especial protagonismo das mulheres. A segunda rota, também no alto rio Doce, seguiu os afluentes dos rios Piranga e Casca que não foram atingidos pelo rejeito da barragem, embora a tragédia-crime também tenha influenciado a região, por exemplo pelo desaparecimento dos peixes que não mais podem fazer a piracema pela morte do rio a jusante. A rota teve como objetivo principal conhecer experiências de recuperação de nascentes e dos rios, de agricultura agroecológica, de saneamento rural com fossas construídas pelas comunidades, da potência das escolas da família agrícola e projetos de extensão.

    A terceira rota partiu de Governador Valadares, e teve por foco os afluentes do médio rio Doce, trazendo a perspectiva da interligação dos acontecimentos relativos à tragédia-crime de Mariana e o modelo de desenvolvimento imposto na região do médio rio Doce, em especial os problemas relacionados aos recursos hídricos. Estes já eram problemáticos antes do desastre devido a empreendimentos como barragens, assoreamento dos rios e falta de saneamento básico. Com o desastre houve uma redução drástica na oferta de pescado, de água potável para a população, e de água para o uso produtivo de agricultores. A população desconfia dos laudos sobre a qualidade da água que é distribuída pelas prefeituras para as residências". Mas há também anúncios de agricultores da reforma agrária, pescadores e indígenas que, em sua resistência, lutam por direitos e outras formas de relação com a natureza e a economia.

    Por fim, a quarta rota percorreu a região do baixo rio Doce desde a foz em Regência até Governador Valadares, e no coletivo participaram também indígenas Tupiniquim, Botocudos e Guarani. Ao longo da rota foram visitadas a Vila de Regência Augusta; comunidades de pescadores de Maria Ortis e Mascarenhas; o assentamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) Sezínio Fernandes; e a aldeia indígena Krenak. Além do sofrimento dos pescadores que vivem de um rio sem peixe, da violência policial contra a comunidade do assentamento da reforma agrária, dos impactos dos grandes empreendimentos da indústria da mineração e do petróleo, os Krenak revelaram com contundência uma grave e inaceitável violação de autodeterminação de um povo, ferindo a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre povos indígenas e tribais. Segundo Andrea Krenak, "o rio faz parte de nós, da nossa cultura, é como se tivessem tirado um parente nosso".

     

    A ROTA DOS RIOS PIRANGA E CASCA: DA RESISTÊNCIA À TRANSFORMAÇÃO QUE JÁ COMEÇOU

    Minha participação na caravana como representante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) ocorreu ao longo da primeira rota, ou rota 1, no alto da bacia do rio Doce, envolvendo os rios Piranga e Casca desde segunda (11/4) até quinta(15/4). Fomos cerca de 40 caravaneiros, homens, mulheres e jovens de várias organizações percorrendo as cidades de Desterro de Melo, Paula Cândido, Araponga, Viçosa, Ponte Nova e culminando em Governador Valadares. Nos quatro dias de atividades cerca de 300 pessoas também se mobilizaram e participaram nos vários momentos de visitas e debates. Nossa alimentação e pernoite ocorreram de forma solidária com a simpatia e dedicação de muitas pessoas e organizações. Por exemplo, pernoitei na casa de um presidente de sindicato rural, numa casa paroquial e nas instalações de uma ONG agroecológica.

    A caravana começou na segunda-feira, no início da noite, na cidade de Desterro do Melo com o vídeo-debate Flores vivas, um filme relato realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) sobre a luta de trabalhadores, homens e mulheres, que foram contaminados por agrotóxicos ao longo da década de 1980 na empresa Brazil Flowers, uma multinacional alemã que produzia rosas para exportação. Abortos, mal formações e vários casos de câncer acabaram fortalecendo uma articulação com técnicos do SUS (Sistema Único de Saúde) e a Fundacentro/MG, e a empresa acabou sendo forçada a fechar as portas em meados dos anos 1990. A luta contra os venenos levaram vários agricultores e o sindicato de trabalhadores rurais a perseguirem alternativas que levaram à agroecologia e ao uso da homeopatia na criação de animais. A relação com o setor de saúde, além de organizações agroecológicas e universidades como a da Universidade Federal de Viçosa (UFV), têm sido fundamental para apoiar essa transição, que atualmente envolve um profundo trabalho de sensibilização e difusão de experiências na região com o projeto Aliar. Esse projeto decorre do Projeto de Lei 018/14 aprovado pela Câmara de Vereadores de Barbacena que cria no âmbito do município o Programa Agroecologia e Homeopatia, um anúncio de processos locais de transição agroecológica. Tratou-se de uma experiência repleta de simbolismos: do sofrimento, principalmente de mulheres que se contaminaram cortando os espinhos das rosas exportadas, forjou-se a luta e a resistência de inúmeros agricultores familiares que, com o passar dos anos, germinou o sonho de transformação e floresce, mais e mais, por meio das práticas agroecológicas e aplicação da homeopatia na região. Mostra também o potencial de um SUS diferente, combativo, antenado aos sofrimentos e ao sonho de transformações das populações do campo.

    No dia seguinte, fomos conhecer a nascente do rio Xopotó, um dos afluentes do rio Piranga. Lá fizemos uma bela mística onde cantos, poesias e relatos significativos dos presentes evocaram e celebraram o sentido das águas como fonte da vida, lugar onde nascemos no ventre de nossas mães que comungam com a Mãe Terra, o milagre da vida. Conversamos sobre as principais estratégias de proteção das nascentes e de recuperação dos rios, a importância do cercamento das nascentes, o problema da pastagem com a grama braquiária que reduz a biodiversidade, impede a infiltração da água e facilita a erosão. Também foi mencionada a falta de agilidade das instituições para pôr em prática ações há muito prometidas, como o cercamento das nascentes da região.

    Na parte da tarde conhecemos a propriedade do Sr. Joaquim, um simpático agricultor que nos recebeu com sua família. Trata-se de uma grande referência em homeopatia agropecuária na região que há cerca de 5 anos vem tratando com sucesso seu gado. Ainda nesse dia, fomos para o município de Paula Cândido, recebidos à noite na casa paroquial com uma apresentação de congado por membros de comunidades quilombolas da região, sob a guia do Mestre Boi, da comunidade de Córrego do Meio. Mestre Boi depois nos acompanhou por toda a rota e, junto com Farinhada, músico popular e militante dos movimentos negro e agroecológico, foram nossos animadores culturais. Caminhamos, cantamos, celebramos e rezamos com Mestre Boi e Farinhada por toda a caravana.

    Na quarta-feira pela manhã, nos dividimos em três grupos para vi-sitar cada qual uma experiência na região de Paula Cândido. A primeira foi à comunidade de São Mateus conhecer a experiência com fossas sépticas econômicas que vêm sendo construídas pela própria comunidade. Foi feita uma demonstração de construção para o grupo, em menos de uma hora de trabalho, mostrando como o saneamento rural pode ser enfrentado com conhecimento técnico e participação comunitária. O segundo grupo conheceu a experiência de resistência na comunidade de Morro do Jacá frente à tentativa de construção de um mineroduto pela empresa mineradora Ferrous. Com a autorização prévia dada pelo governador de Minas Gerais, a empresa começou a colocar placas por onde o mineroduto iria passar, o que provocou uma ampla reação de comunidades, ampliada pela criação de uma coalisão mais ampla, a campanha pelas águas e contra o mineroduto, que amplia a luta articulando inúmeras comunidades, cidades, organizações e movimentos sociais. Por fim, foi visitada a comunidade quilombola Córrego do Meio em sua luta de resistência e titulação da terra, além de experiências com bioconstrução.

    Ainda no final da manhã seguimos para Araponga, onde almoçamos na Escola Família Agrícola (EFA) Puris. Lá o grupo se dividiu novamente para conhecer as experiências agroecológicas com jovens na EFA e na propriedade do sr. Paulinho e dona Fia. Vimos o engajamento e aprendizado de jovens na recuperação de nascentes, na produção agroecológica de alimentos, na construção de fossas que viabilizam o saneamento rural, mostrando a importância e efetividade das EFAs e projetos de extensão. Tive a alegria de conhecer pessoalmente o sr. Paulinho, um camponês que participa do projeto plantadores de água na recuperação das nascentes através da recomposição dos agroecossistemas locais. Em certo momento de sua fala, Paulinho nos contou com tristeza sobre a visita de uma professora universitária que, apelando para o futuro dos filhos do agricultor, conclamou-o a abandonar o projeto em curso para plantar mais eucaliptos, ter mais dinheiro e mandar seus filhos para a universidade. Com lágrimas nos olhos, Paulinho, e todos nós, compartilhou a tristeza por vivenciar o que ele denominou uma "ciência do mal" que se afasta da natureza, da compaixão e só pensa numa produtividade voltada ao dinheiro no curto prazo. Uma ciência que, com os donos do poder, contribui para um mundo de destruição, tal como o planeta vive hoje, numa situação que se agravará mais e mais. E reafirmou seu compromisso com uma agricultura da verdade, da dignidade e da vida, uma lição para todos que lá estavam.

    Viajamos ainda na quarta-feira para Viçosa onde o grupo se reuniu para participar no seminário "Mineração na bacia do rio Doce: impactos, conflitos e resistências" na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Com uma plateia de mais de cem estudantes e professores, além da caravana, ouvimos palestrantes que apresentaram trabalhos sobre a contaminação da bacia do rio Doce, as origens da tragédia da mineração pela lógica destrutiva de aumentar a produção em busca de lucros, mesmo em tempos de queda dos preços do minério de ferro, e dos impactos na vida do rio Doce e espécies que serão possivelmente extintas. Aprendemos que a degradação e contaminação por metais pesados, como o arsênio do rio Doce, é anterior ao desastre-crime, e já estava relacionada à atividade mineradora na região. Depois fomos pernoitar no Centro de Tecnologia Alternativa (CTA) que, desde a década de 1980, apoia a transição agroecológica na região, em forte articulação com agricultores e a UFV.

    Na quinta feira, último dia de nossa rota, partimos pela manhã para Ponte Nova. No percurso a caravana parou no encontro do rio Piranga com o rio Carmo que, juntos, formam o rio Doce. Sofremos então o impacto de ver, pela primeira vez na rota, o rio marrom poluído pelo rejeito da tragédia. Junto com as pessoas da rota 1 que lá também estavam, ouvimos relatos de resistências contra a represa Risoleta Neves, também conhecida como Candonga, de propriedade de um consórcio com a participação da Vale para produzir energia elétrica para a mineração, verificamos como a violação de direitos é um padrão comum de vários empreendimentos. Ouvimos o relato da luta da comunidade de Soberbo, cuja maioria negra foi expulsa do lugar e realocada com a indignação de muitos para "Nova Soberbo", construída pelo consórcio responsável pela Barragem. Anos depois, ainda em luta por direitos, as pessoas viram a chegada da lama, de carros, geladeiras e destroços. Caminhamos por pedras e por cima da lama já sem os destroços recolhidos, junto da água marrom turvada pela lama da tragédia. Nos foi mostrado onde, a poucos metros de onde estávamos, foi encontrado o corpo de uma das crianças arrastada por quilômetros de distância de onde vivia em Bento Rodrigues. Nesse local compartilhamos dores, tristezas de uma tragédia enorme e repleta de violações de direitos, mas também esperanças por um mundo mais justo e em harmonia com a natureza.

    De tarde voltamos à Ponte Nova para debater, na casa paroquial com militantes, agricultores e sindicalistas, alternativas de recuperação ambiental do rio Piranga, um dos principais afluentes do rio Doce, e de enfrentamento mais amplo ao retrocesso político do país. Foi apresentada e discutida a proposta de criação, a partir de projeto municipal de Ponte Nova, da unidade de conservação do rio Piranga, com o apoio da UFV e do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab).

    A caravana não terminou. Como está no trecho que encerra a carta política, no pós-caravana seguiremos juntos no apoio ao recém criado Fórum Permanente em Defesa da Bacia do Rio Doce, na produção de dossiês e materiais que manterão acesa a memória da tragédia, a esperança de recuperação da bacia e as lutas por um mundo mais justo e mais solidário. Lutas que ultrapassam Minas Gerais e Espírito Santo: o país, a América Latina e o planeta precisam de uma nova grande transformação, com pequenas e grandes ações conectadas pela vida.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Virilio, P. The original accident. Cambridge: Polity, 2007.

    2. Schumpeter J. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar; 1985.

    3. Para um maior aprofundamento ver: Hornborg, A. et al. Rethinking environmental history: world-system history and global environmental change. Rowman Altamira, 2007. Gonzales de Molina, M. G, & Toledo, V. M. The social metabolism. A socio-ecological theory of historical change. New York: Springer, 2014.

    4. Milanez B. et al. "Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG)". PoEMAS/UFJF, relatório. Disponível em: http://www.ufjf.br/poemas/2015/12/10/1055/. Acessado em 20/04/2016.

    5. Para maiores informações deste encontro ver: http://dialogoseconvergencias.org/.

    6. Lopes, L. S., et al. "Troca de saberes: vivenciando metodologias participativas para a construção dos saberes agroecológicos". Cadernos de Agroecologia 8 (2), 2013.

    7. Barcelos, E.. Caderno do(a) Participante da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B7W_zAxvffw2aU85SGZhemhObUk/view. [Acessado em 27/04/2016] .

    8. Drago, I. et al. "Metodologias que estimulam o compartilhamento de conhecimento: a experiência do Global Forum América Latina-GFAL." AtoZ: novas práticas em informação e conhecimento 1(1): 38-49, 2011.

    9. Villar, J. P. et al. "Troca de saberes-construindo diálogos entre conhecimento científico e saber popular." Cadernos de Agroecologia 6 (2), 2011.

    10. Arias, P. G. "Corazonar el sentido de las epistemologías dominantes desde las sabidurías insurgentes, para construir sentidos otros de la existencia (Primera Parte)." Calle14: revista de investigación en el campo del arte 4 (5): 80-95. 2010. Disponível online.

    11. Carta política da caravana territorial da bacia do rio Doce. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/2016/04/carta-politica-da-caranava-territorial-da-bacia-do-rio-doce/ . [acesso em 29/04/2016] .