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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo July/Sept. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300015 

    ARTIGOS
    MARIANA

     

    O desastre da Samarco/VALE/BHP: Análise crítica de alguns discursos, racionalidades e percepções

     

     

    Mário FreitasI; Elisa AlvesII; Mariane SantoIII; Sergio PortellaIV

    IBiólogo, mestre e doutor em educação. Pesquisador em redução de risco de desastres, gestão ambiental e educação ambiental, Laboratório de Estudos de Riscos e Desastres (LabRed), professor voluntário permanente do Programa de Pós-graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Email: mfreitas.pesquisa.rrd@gmail.com
    IIMestre em arquitetura urbanismo pela École Nationale Supérieure d'Architecture Paris Malaquais (ENSA) e estudante de pós mestrado em arquitetura e riscos maiores pela ENSA Paris Belleville, França, e bolsista Fapesc no LabRed. Email: elisaxc@hotmail.com
    IIIProfessora associada do curso de geografia e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental da Udesc e coordenadora do LabRed. Email: m4rid4ls4nto@yahoo.com.br
    IVDoutorando pela Universidade de Coimbra, Portugal, no Programa de Doutoramento: Território, Riscos e Políticas Públicas. Assessor da presidência da Fundação Oswaldo Cruz. Email: spportella@gmail.com

     

     

    A ruptura da barragem de rejeitos de Fundão, em Mariana (em 5/11/2015) e suas dramáticas consequências, ainda em curso, definem um dos maiores (senão o maior) desastres ambientais ocorridos no Brasil. De acordo com a Bowker Associates Science & Research in the Public Interest (1), o desastre da Samarco/Vale/BHP é, também, o maior do mundo (não em mortes, felizmente) em termos de volume de lama mobilizado e distância por ela percorrida. Embora ainda decorram as pesquisas sobre as causas da ruptura, o desastre parece assumir contornos criminosos, por erros de planejamento, procedimentos operacionais inadequados e desconsideração de diversos sinais pressagiadores de um desastre. Simultaneamente, nas costas dos atingidos e do Ministério Público, a União, os governos estaduais de Minas Gerais e do Espírito Santo e as empresas Samarco, Vale e BHP firmaram um inaceitável Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta que subavalia os prejuízos e coloca as empresas criminosas a gerir os fundos que vão disponibilizar, a contratar quem vai implementar os programas reparatórios e compensatórios e a decidir quem vai avaliar a sua implementação. O mesmo acordo define, ainda, de forma arbitrária, pessoas "direta e indiretamente atingidas" e duas áreas ambientais que favorece manobras da empresa na fuga a responsabilidades. O poder político, muito dependente de quem financia as suas campanhas eleitorias, vai integrar um comitê interfederativo de interlocução, validação e monitoramento e fiscalização. Os atingidos são remetidos para um conselho meramente consultivo.

    Durante seis meses, assiste-se à emergência de diversas percepções (ou mais exatamente manchas perceptivas), várias racionalidades e muitos discursos que correspondem a outras tantas práticas sociais. E aí se centra, exatamente, a pesquisa promovida pelo Laboratório de Estudos de Riscos e Desastres (LabRed), da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Tratase de uma pesquisa qualitativa, especificamente, um estudo de caso que "surge do desejo de compreender fenômenos sociais complexos" (2, p.20). Nossos objetivos são identificar e caracterizar sumariamente: 1) as percepções (manchas perceptivas) de diversos atores e alguns discursos com elas relacionados; 2) as principais falhas que, segundo os mesmos atores, podem ser identificadas; 3) as lições principais que, para o futuro, podem ser retiraradas. As técnicas de recolha de dados foram: a) análise documental (notícias de jornais, textos de sites e documentos oficiais); b) observação de campo, com registro fotográfico e notas; c) entrevistas não estruturadas individuais e de grupo. A primeira etapa da pesquisa, realizada 21 dias após o desastre, teve duração de uma semana e incluiu, para além da atividade em Mariana (em cujos hotéis estavam instalados os atingidos), visita às povoações de Camargos, Paracatu de Baixo, Pedras e Barra Longa (a ida a Bento Rodrigues foi impossível porque o acesso estava interditado) e vários locais das margens dos rios de Carmo, Gualaxo do Norte até o rio Doce.

    Os moradores dos distritos afetados (em particular Bento Rodrigues) foram abordados em locais públicos de Mariana, especialmente junto ao prédio do centro de convenções, onde funcionou o centro de logística. Encontramos um dos entrevistados de Paracatu na estrada de acesso à povoação destruída pela lama. Os entrevistados de Barra Longa foram abordados nas ruas, junto às casas atingidas. Entrevistamos um total de 25 pessoas (incluindo 4 membros das estruturas de proteção e defesa civil municipal e estadual).

    Neste artigo, apresentamos nosso modelo de análise exemplificando com alguns dos dados recolhidos em novembro de 2015, em especial, os que se referem a manchas perceptivas.

     

    MODELO SISTÊMICO COMPLEXO DE ANÁLISE DO DESASTRE

    Em nossa análise sistêmica complexa das percepções, racionalidades e discursos associados à ocorrência e resposta ao desastre, estamos utilizando um modelo explanado por Freitas e colegas e criado pelo primeiro dos autores (3). O modelo inspira-se, por um lado, nos níveis de estruturação e análise do funcionamento dos sistemas vivos de Maturana & Varela (4) (relações de constituição, relações de especificação e relações de ordem) e, por outro lado, nos níveis de discurso postulados por Fairclough (5) (identitário; relacional; ideacional).

     

     

    ACERCA DAS PERCEPÇÕES DE RISCO E DAS RACIONALIDADES

    Beck (6, p.70) analisa e critica a dicotomia entre "estipulação científica (racional) do risco e percepção (irracional) do risco" e defende que a conscientização acerca dos riscos "precisa ser reconstruída como uma luta entre pretensões de racionalidade concorrentes" (6, p. 71), parcialmente opostas e parcialmente coincidentes. Slovic e colegas (7), em seus estudos clássicos de psicologia psicométrica, salientam que uma teoria geral sobre a percepção de risco deve explicar porque as pessoas têm enorme aversão a certas ameaças e indiferença a outras e, ainda, as diferenças entre percepções de pessoas comuns e percepção dos especialistas. Slovic e coautores (8) realçam, também, a complexa interação entre emoção e razão.

    Wachinger & Renn (9) consideram a existência de dois grandes tipos de abordagens no estudo das percepções de risco: a realista e a construtivista (10) apud (9). A abordagem realista (inspirada nas abordagens clássicas da psicologia e da neurofisiologia) assume a existência de um mundo exterior objetivo, podendo os riscos ser compreendidos de forma objetiva e as percepções trazidas para perto dessa objetividade. Como assinalam Wachinger & Renn (9) nessa lógica, a solução para os problemas de percepção é, somente, introduzir mais informação e/ou maior conhecimento do risco.

    No lado oposto, situam-se as visões construtivistas que negam a objetividade dos riscos e afirmam as percepções de risco como subjetivas e socialmente construídas.

    "A percepção de riscos envolve o processo de recolha, seleção e interpretação de sinais acerca de impactos incertos de eventos, atividades ou tecnologias. Estes sinais podem referir-se a observações diretas (por exemplo, testemunhado um acidente de carro) ou informação de outros (por exemplo, ler num jornal sobre poder nuclear). As percepções podem diferir dependendo do tipo de risco, do contexto, da personalidade do indivíduo e do contexto social"(9, p.8).

    Algumas dessas correntes, contudo, acabaram confundindo a ideia de construção social do risco e da percepção do risco, com a ideia de uma natureza estritamente social desses riscos e dessas percepções. Não partilhando tal perspectiva, num sentido convergente com o de Wachinger & Renn (9) defendemos uma noção biocultural de percepção. Com base em Edelman (11) e Damásio (12), consideramos que a percepção (categorização perceptiva) está relacionada com a aprendizagem conceitual (formação de conceitos) e com outra forma de função cerebral superior, a memória. Assim, a percepção tem uma base biológica e é, antes do mais, idiossincrática, porque dependente da clausura operacional do sistema nervoso (4) e das complexas interações entre razão e emoção.

    Ligadas às histórias de vida, as percepções podem alterar-se com o tempo e ser afetadas por múltiplos fatores. Não basta, pois, simplesmente saber se uma pessoa valoriza (e quanto), como nas perspectivas psicométricas, um certo risco, mas antes quais são e como se organizam diversas dimensões perceptivas, um certo risco e/ou desastre, como elas evoluem e porque etc. Por isso, preferimos falar de manchas perceptivas: a) individuais refletindo, as complexas dinâmicas do acoplamento estrutural idiossincrático de cada ser humano (com o meio físico e social), uma parte do qual se faz em linguagem (discursos constantemente produzidos, partilhados e/ou negociados); b) sociais, emergindo da consensualidade, mas, também, conflitualidade entre as manchas individuais. As manchas perceptivas individuais e sociais são constantemente negociadas entre si e no confronto com as versões científicas e com a realidade.

     

    DISCURSO COMO PRÁTICA SOCIAL

    O domínio linguístico humano tem características excepcionais já que "o observador vê que as descrições podem ser feitas tratando outras descrições como se fossem objetos ou elementos do domínio das interações" e, deste modo, "o domínio linguístico passa a ser parte do meio de interações possíveis" (4, p.181). Assim, o discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, identidades, relações e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação, mas de significação do mundo (5, p.91). Assim, como afirma Foucault (13) não se pode "imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas", mas antes "conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos" (13, p.53). Para Fairclough (5), os processos constitutivos do discurso "devem ser vistos (...) em termos de uma dialética, na qual o impacto da prática discursiva depende de como ela interage com a realidade pré-constituída" (5, p.87). O mesmo autor (5, p.81-82) retira da análise foulcaultiana, uma outra ideia-chave, a "primazia da interdiscursividade e da intertextualidade", já que "qualquer prática discursiva é definida por suas relações com outras e recorre a outras de forma complexa". Foucault postula, também, o princípio da descontinuidade: os discursos devem ser tratados como "práticas descontínuas" (13, p.52) que "se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem" (13, p.53). A interdiscursividade e a descontinuidade se materializam no cruzamento e rearticulação de discursos que se ignoram, estão desavindos ou se consideram como irreconciliáveis. A questão do contexto é, também, realçada tanto quanto à situação social como ao contexto verbal em que o enunciado ocorre, que determinam "a forma que ele toma e o modo pelo qual é interpretado" (5, p.27).

    Fairclough (5) retira ainda, da análise foucaultiana outras questões centrais como: a) a "natureza discursiva do poder" (p.81) lembrando que "(...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar, o discurso é o poder a ser tomado" (p.10); b) "a natureza política do discurso", sendo que "a luta pelo poder ocorre tanto no discurso quanto subjacente a ele" (p. 82); c) a "natureza discursiva da mudança social" já que, "as regras de formações discursivas definem não objetos e conceitos estáticos, mas os campos de suas possíveis transformações" (p.83).

    Para Fairclough (5, p.92), de acordo com as funções (níveis) que atribui à linguagem: primeiro, "o discurso contribui (...) para a construção do que variavelmente é referido como 'identidades sociais' e 'posições do sujeito' para os 'sujeitos' sociais e os tipos de 'eu' (...) "; segundo , "o discurso contribui para construir relações entre as pessoas"; terceiro, "o discurso contribui para a construção de sistemas de conhecimento e crença" (5, p.91).

     

    PERCEPÇÕES, RACIONALIDADES E DISCURSOS SOBRE O DESASTRE

    Apresentaremos, agora, alguns resultados de nosso estudo, procurando caracterizar as manchas perceptivas que conseguimos detectar. Em sua esmagadora maioria, trata-se de pessoas cujas comunidades foram total ou quase totalmente destruídas (Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo) ou bastante afetadas (Barra Longa). As duas primeiras comunidades têm sido alvo de maior foco e cuidado por parte da Samarco o que, em certos aspetos, pode condicionar os resultados. Populações mais afastadas e cujos impactos a empresa e o poder consideram ser menos diretos podem ter em certos aspectos manchas perceptivas diferentes.

    Consciência da existência de risco

    Os entrevistados manifestaram diferentes graus de consciência de risco e que poderíamos, essencialmente, dividir em dois grandes tipos: a) consciência geral pouco objetivada e relativamente subvalorizada do risco existente (alguns moradores de Bento Rodrigues); b) não consciência do risco (moradores de Paracatu de Baixo e Barra Longa).

    Sabíamos que havia algum risco... mas nada assim... eles [a Samarco] diziam que a barragem era segura... que não havia perigo...” (EBR.1)

    (...) que havia algum risco sim... mas não pensávamos que acontecesse e que fosse assim (...)

    (...) a gente não sabia que tinha esse risco não! Nós nem acreditamos. A distância é muito longa né... para chegar aqui, de lá de onde saiu essa lama... Para quem conhece esse trecho todo aí... Mas disseram que tem muita lama... não esperava esse tanto de lama não! (EPB.1)

    Os moradores de Barra Longa, por exemplo, conscientes relativamente a um risco de inundação (já ocorrida no passado) não tinham consciência do risco relativo aos rejeitos de mineração.

    Nós tínhamos medo do rio aumentar. Nós vigiamos o rio, pois já tivemos cheia aqui que alagou tudo. Quando ele começa a aumentar já ficamos de olho. Mas não imaginávamos que seria desse jeito. Porque nem choveu (...) quando tem muita chuva é que ficamos com medo que eles abram as comportas e aí alague tudo aqui embaixo. (...) Para falar a verdade eu nunca nem tinha ouvido falar nesse trem de barragem em Mariana (...) que havia risco, que havia esse problema aí. Hoje o comentário é só esse. Agora eles estão falando que tem a outra que pode vim. O senhor esteve já nela? (EBL.2/3/4).

    As percepções de riscos são, pois, dependentes de contexto e de experiência prévia (14). A proximidade a uma eventual fonte de risco é, também, um fator importante. Mas, para além de tudo isso, as respostas evidenciam unanimidade relativamente a graves falhas, tanto da Samarco, como do poder público, no que se refere a atividades de prevenção, nomeadamente, consciencialização face a riscos existentes. E esses são aspectos que tanto o discurso político como o discurso empresarial preferem não abordar.

    Ausência total de instrumentos de preparação e falha da primeira resposta

    Há unanimidade quanto à inexistência de qualquer tipo de alerta ou alarme por parte da empresa ou da proteção e defesa civil (PDC). Moradores de Bento Rodrigues entrevistados referem que o aviso partiu de "conhecidos" que trabalhavam em empresas terceirizadas e ligaram, ao que seguiu uma reação auto-organizada da população, baseada na comunicação direta entre moradores, tendo sido os que, deles, possuíam carros a fazer o transporte dos outros para as zonas mais altas.

    Em Paracatu de Baixo a lama chegou cerca de 4 horas depois o que permitiu que os moradores tivessem tempo de salvar suas vidas, mas não seus pertences. O alerta e alarme foi feito por moradores e familiares que habitavam Bento Rodrigues que ligaram alertando familiares e amigos. Estes resistiram um pouco em acreditar e a providência de se refugiarem em terrenos altos só ocorreu depois que um helicóptero dos bombeiros veio para ordenar o deslocamento dos moradores para locais mais altos até a chegada de socorro: "(...) teve helicóptero que veio, conversou ... falou para retirar o pessoal que a lama estava vindo" (EPB.2).

    Em Barra Longa não houve nenhum tipo aviso, o que gerou desconforto na população, uma vez que os bombeiros haviam avisado Paracatu de Baixo. A população preveniu-se para a chegada da lama por meio de informações dos moradores de Gesteira e Campinasque, de início, também não acreditaram que o "mar de lama" chegaria até eles mas, ao constatarem a quantidade de lama, reproduziram o alerta de evacuar aos moradores de Barra Longa.

    Aí o pessoal de Campinas e de Gesteira que antecipou: - Podem sair porque já vem muita água mesmo. Muita água e muita lama" (EBL.2/3/4, área urbana).

    Não, da Samarco não! Aqui ninguém veio avisar. Agora minha irmã que ligou aqui o tempo todo" (EBL.1, área rural).

    A opinião de elementos da PDC municipal e estadual vão no mesmo sentido.

    (...) comigo diretamente não, com a defesa civil não. Eu fiquei sabendo pela secretaria. Não sei se eles ligaram lá na guarda municipal, e avisaram lá. Quem me avisou foi a guarda municipal... Então fui para lá. No entanto que quando eu cheguei na entrada da Fundão, eu topei com alguém da Samarco, me identifiquei como defesa civil.... Aí no que eles me falaram, eu voltei, procurei o sinal, liguei lá para central de monitoramento. Na nossa central nós temos a patrulha rural que roda os distritos (...) (EPDC.1).

    Os depoimentos recolhidos são, também, unânimes em assinalar a deficiência da primeira reposta, associada às falhas na preparação (não existência de planos de contingência nem de empoderamento das comunidades para lidar com um desastre como esse). Os discursos sobre essa matéria são, também, interessantes de seguir, com a empresa a dizer não ser obrigada por lei a ter formas de alerta tipo sirene e o poder público a falar pouco sobre essa matéria, em parte, escamoteando suas próprias responsabilidades.

    Assistência humanitária

    Afirmando não estar na situação ideal, os entrevistados reconheciam na data da entrevista o esforço da empresa em fazer o máximo necessário para o bem-estar de todos: "(...) a Samarco está dando muita assistência agora" (EBL.2/3/4) ou "(...) em geral a empresa tem feito o melhor que pode (...)" (EBR.3). Era, também, generalizado, o reconhecimento do bom atendimento por parte dos funcionários da empresa junto à população. Tal bom atendimento pode, também, ser por nós observado.

    A Samarco são pessoas.... barragem, prédios, carros... não faz nada. Na resposta... a Samarco são pessoas. Essas pessoas estão envolvidas, motivadas para dar todo carinho e atenção para a população e estão trabalhando. Elas estão angustiadas porque sabem que vão perder o emprego, que a empresa vai quebrar, elas estão angustiadas porque a camisa que elas vestem está sendo criticada no mundo inteiro. Elas estão tristes, mas estão motivadas e trabalhando (EPDC.2).

    Para além de atestar o que acabava de referir-se sobre o bom atendimento dos funcionários da Samarco, a afirmação transcrita ilustra a complexidade das dinâmicas geradas, a multiplicidade de discursos mais racionais ou mais emotivos gerados, as conivências estabelecidas, as contradições várias que vão surgindo etc. e que noutro momento analisaremos em detalhe. Esta avaliação da ação da empresa relaciona-se diretamente com um outro aspecto que passamos a abordar.

    A população e os agentes de PDC demonstraram satisfação com as ajudas humanitárias relacionadas à arrecadação de doações. O voluntariado foi também realçado, porém com a ressalva, por elementos da PDC, que em situações de grande impacto, como neste caso, há um limite muito sutil entre o valor da ajuda prestada e os problemas emergentes de ajuda despreparada, em demasia, e/ou não demandada. Houve, também, um conjunto de problemas relativos à logística e assistência humanitária, já bastantes vezes referenciados.

    "Onde que é a DC para entregar doação para Mariana?". "Minha senhora, nós não estamos recebendo doações". "Mas como não? Que absurdo (...)!". "Não minha senhora! Lá já tem o suficiente". "Mas eu quero doar!" Tem gente que chegou com caminhonete aqui com colchão para doar para Mariana. (...) no tsunami em 2010 nas Filipinas, teve gente que queria doar aqui e gritava com a gente, mas eu quero doar para aquele povo lá. "Mas minha senhora, como eu vou levar lá?" "Aluga um avião e leva". "Mas minha senhora fica mais caro. Eu vou levar um monte de roupa velha usada, é melhor mandar o dinheiro e eles compram lá. E até melhor que movimenta o comércio, fazem o dinheiro girar lá". (...) Agora está lotado de coisa lá, daqui a pouco vai começar a roubar (...). Aí a televisão vai denunciar, e quem doou, na próxima não doa mais, esse povo desvia (...). Mas ele não vê, que lá está lotado (EPDC.2)

    Reabertura da empresa

    Apesar de todo o ocorrido, a população afetada deseja o não fechamento da empresa: "(...) a Samarco também não pode fechar, gente... se não, acaba com Mariana" (EBL.5, área urbana), "a empresa tem que voltar..." (EPB.1),

    A Samarco é a décima exportadora do Brasil. Ela gera imposto, ela gera emprego, ela gera economia para a cidade. Eu como DC no conceito doutrinário, lá fala: (...) restabelecer a normalidade social (...) fala de minimizar o prejuízo econômico e social (...). Então eu tenho que minimizar o prejuízo econômico e social de todo mundo. Fechar a empresa para puni-la pelo desastre é punir uma cidade inteira, cuja economia gira em torno da Samarco. A padaria vende é para o funcionário da Samarco (...). Aí nós estamos punindo a cidade. A ânsia pela punição é uma coisa que nós temos que falar (...). A gente tem que punir? Claro que tem! Que horas? Na hora que todo mundo está abrigado, assistido, acolhido, todo mundo está indenizado, que o meio ambiente já tem projetos. Agora assim, vamos lá. Sentar e resolver. Você está punido! Criminalmente, civilmente. (EPDC.2)

    Esse aspecto é tão relevante que, na nossa nova visita a Mariana, em maio passado, identificamos uma mudança nas percepções dos habitantes da cidade que, invertendo sua postura de solidariedade para com os atingidos, de forma totalmente desajustada, os responsabilizam agora pela não abertura da empresa e os veem como "beneficiados".

    Essas percepções entrecruzam-se com o que chamamos de racionalidades que, sendo igualmente percepções, correspondem a níveis de formulação e sistematização conceituais mais densas e legitimadas por grupos ou comunidades com posicionamento privilegiado, sejam eles científicos, políticos, empresariais etc. (figura 2).

     

     

     

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    No que diz respeito à prevenção, mitigação e preparação, tudo falhou. Nem a empresa nem o poder público haviam realizado qualquer trabalho de conscientização sobre riscos de rompimento de barragens, parecendo antes prevalecer, apesar de várias evidências, uma quase irracional confiança total na segurança da barragem, cujo risco de ruptura era avaliado pelo DNPM como baixo. Não haviam sido instaladas ou sequer discutidas soluções estruturais de mitigação face a um eventual rompimento da barragem. Não havia sido elaborado pela empresa ou pelo poder público (nomeadamente, proteção e defesa civil) qualquer plano de contingência. Não haviam sido instalados meios adequados de alerta/alarme e os habitantes de Bento Rodrigues, Camargos, Pedras, Gesteira, Barra Longa e outros povoações não receberam qualquer alerta da Samarco ou da proteção e defesa civil. Paracatu de Baixo recebeu um alerta improvisado, através de um helicóptero dos bombeiros. O mais grave, é que parece que essa não é uma situação exclusiva dessa barragem, mas da grande maioria das barragens existentes no país.

    A não existência de plano de contingência e as graves deficiências no que se refere à fase preparação, implicaram na incapacidade de dar uma primeira resposta adequada e em posteriores dificuldades na continuação das ações de resposta ao acidente, em especial, as relacionadas com o progresso da lama até ao litoral do Espírito Santo. Apesar do aproveitamento de pessoas com saber técnico-operacional que ajudaram na instalação do sistema de comando operacional (SCO), surgiram problemas associados ao seu posterior funcionamento, resultando em atuação de forma desdobrada e com algumas "tensões" internas, o que deve ter contribuído para diminuição de eficácia.

    As percepções relativamente à assistência humanitária e, em particular, às medidas tomadas pela Samarco na assistência às famílias atingidas foi, em geral, positiva. Embora criticando detalhes, os entrevistados consideravam que a empresa estava fazendo o que devia fazer. Em geral, a confiança era também grande quanto ao futuro cumprimento de obrigações por parte da empresa. Esta confiança/dependência acaba impedindo que muitos atingidos vejam como a Samarco não cumpre muito do que deveria e se evidencia como a empresa está distante do seu lema de "fazer o que tem que ser feito" ao não pagar uma só multa pelos crimes que cometeu neste caso e outros anteriores.

    Constatou-se uma indiscutível angústia e desconforto associados ao ocorrido e a súbita e drástica alteração do modo de vida dos atingidos. A permanência nos hotéis era dolorosa e as pessoas, sempre que podiam, reuniam-se em praças, nomeadamente, junto ao centro de convenções, onde foi instalado o centro de logística. A sensação de deslocamento foi constantemente assinalada pelos entrevistados, mas, apesar de tudo, ha-via também manifestações de resiliência. O elogio ao fato de estarem vivos (muitas vezes, atribuindo isso à proteção divina), a afirmação da disposição de aguentar firme até ver a situação resolvida, a confiança em que tudo melhorará, foram também evidências recolhidas.

    A importância da empresa no contexto municipal foi igualmente assinalada por vários entrevistados, ficando muito clara a sua enorme influência sobre as pessoas, os políticos e a vida social. Esse poder desproporcional, assente em diversas estratégias de promoção da dependência (que incluem o trabalho terceirizado) e em pesadas contribuições para as campanhas eleitorais de diversos políticos, cria contextos de impunidade e poder relativamente discricionários, redução ou branqueamento de responsabilidades e amplo campo de manobra para uma atuação pouco responsável da empresa em termos ambientais, de responsabilidade social e sustentabilidade. Esta estratégia é, ainda, sustentada por um discurso estruturado no autoelogio quanto à responsabilidade social e à sustentabilidade (que efetivamente são deficientes) e um conjunto de ações que, sendo de diminuto valor econômico, são de elevado poder endoutrinante no presente e para o futuro (como ações em escolas). Ao mesmo tempo, contudo, suas práticas ambientais passadas e presentes deixam muito a desejar, cometendo crimes ambientais cujas multas, depois, não pagam. Sendo de assinalar que esta desconformidade se tem mantido mesmo após o desastre, como atesta a prática de corte ilegal de Mata Atlântica já neste mês de junho de 2016.

     

    Referências

    1. Lindsay new land bowker, Samarco dam failure largest by far in recorded history. lindsaynewlandbowker (2015). Disponível online.

    2. Yin, R.K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Bookman ed., 2015.

    3. Freitas, M.; Annunciato, D.; Nardi, I.; Silva, B. A mediação como prática discursiva transformadora. Um estudo de caso com comunidades piscatórias ribeirinhas de Botucatu. Lisboa: CEA-ISCTE & GERPRESS, 2009, p.191-203.

    4. Maturana, H. R.; Varela, F. J.. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Palas Athena, 2001.

    5. Fairclough, N.. Discurso e mudança social. Trad. I. Magalhães. Brasília Ed. Universidade Brasília, 2001.

    6. Beck, U.; Nascimento, S.. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Editora 34, 2011.

    7. Slovic, P. "Perception of risk". Science. 236, 280-285, 1987.

    8. Slovic, P.; Weber, E.U. "Perception of risk posed by extreme events"-Center for Decision Sciences (CDS) Working Paper, Columbia University, 2002.

    9. Wachinger, G. et al.. Risk perception and natural hazards. CapHaz-Net WP3 Rep. Dialogik Non-Profit Inst. Commun. Coop. Res. Stuttg., 2010.

    10. Renn, O. Risk governance: coping with uncertainty in a complex world. Earthscan, 2008.

    11. Edelman, G. M. Biologia da consciência: as raízes do pensamento. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

    12. Damásio, A.. O mistério da consciência. Editora Companhia das Letras, 2015.

    13. Foucault, M.. A ordem do discurso. Edições Loyola, São Paulo, 2008.

    14. Moura, E. "Percepção de risco em áreas de população vulnerável a desastres naturais do município do Guarujá-SP. 2011". Dissertação de mestrado. Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.