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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo jul./sept. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300017 

    ARTIGOS & ENSAIOS

     

    Michelangelo, Da Vinci e a inovação

     

     

    Rogério Cezar de Cerqueira Leite

    Professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e presidente do Conselho de Administração do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)

     

     

    Foram dois inquestionáveis gênios que, embora contemporâneos, nunca se entenderam, para dizer o menos. Historiadores da arte atribuem esta rivalidade à inveja que fica visível, frequentemente, nas críticas de um em relação ao outro, bastante irracionais, creio, não obstante, que a razão do conflito era de natureza conceitual. Michelangelo era um escultor que também pintava e Da Vinci foi um pintor que fez, além de pintar, de tudo um pouco. Em resposta a uma pergunta sobre o seu método, Michelangelo dizia que a obra já estava lá dentro do mármore. O que ele fazia era só “tirar” a escultura do interior da pedra, ou melhor, remover o material excedente. Enquanto isso a pintura se faz por adição, não só das cores, das tintas, mas também das ideias. Se por um lado Da Vinci sintetiza, por outro Michelangelo analisa. Enquanto Da Vinci, coerentemente com sua aptidão para síntese, era também um inventor, Michelangelo foi também um arquiteto, que via este talento como uma extensão da escultura.

     

    DA ARTE DE INOVAR

    Durante muito tempo pensou-se, com alguma razão, que pequenas empresas eram mais aptas para inovar. Grandes organizações exigem administração e regras, ou seja, burocracia, o que reduz necessariamente a agilidade de ações e decisões.

    Dois dos mais surpreendentes fenômenos do setor de inovação servirão de base para nossas reflexões: os laboratórios do Sistema Bell e o Vale do Silício, ambos nos EUA. Em meados do século XX os grandes laboratórios industriais americanos assumiram a liderança da inovação no planeta. O mais bem-sucedido deles foi aquele mantido pela AT&T, empresa detentora de monopólio das telecomunicações nos EUA e Canadá e nas comunicações intercontinentais. Em começos da década de 1960, 20 mil funcionários se localizavam em Murray Hill, o maior dos quatro ou cinco laboratórios de então, com 3,5 mil doutores, alguns administradores, muitos técnicos e engenheiros. Distribuíam-se em dois grandes blocos de pesquisadores. No primeiro, uns 20%, os membros se dedicavam a fazer pesquisas “puras”. Eram da linhagem de Michelangelo. O segundo grupo era composto por aqueles que engendravam novos materiais e dispositivos, como Da Vinci. Punham juntas coisas desvendadas pelos primeiros. O sucesso desse imenso laboratório se deveu à sua dimensão, à sua concentração de pesquisadores em um único espaço (como no Projeto Manhattan, da bomba nuclear).

    Então, como se explica o sucesso do Vale do Silício, onde milhares de pequenas empresas competiam virulentamente entre si e, portanto, seus pesquisadores e seus engenheiros não tiveram, como aqueles do Bell, a oportunidade de trocar ideias informalmente com companheiros da mesma empresa. Se a tal massa crítica fosse mesmo necessária, então por que teriam tanto sucesso essas diminutas empresas (10 mil ao todo)? A razão está em um fenômeno que fazia com que se aglomerassem nesse espaço específico. Por que a poderosa Siemens da Alemanha e tantas outras organizações europeias e japonesas precisariam inserir suas pequenas empresas subsidiárias lá, no Vale do Silício, senão para usufruir, ou melhor, compartilhar de um certo meio ambiente?

    Um dos dados essenciais para entendermos o sucesso do Vale do Silício é o reduzidíssimo “tempo médio de residência” de executivos dessas empresas, que chegou a ser de seis meses. “Espionagem industrial”, porém, branca, consentida, que ocorria de várias formas, as mais imaginativas. O Vale do Silício funcionava, pois, por meio de trocas informais de informações como um imenso cérebro, tanto quanto o faziam os cientistas da Bell.

    Recentemente o The Economist, atendendo sua vocação neoliberal, investiu contra iniciativas de governos de realização de pesquisas por conta própria. Há instituições governamentais no setor de ciência e tecnologia tão eficientes quanto as privadas. A polêmica entre a economista italiana Mariana Mazzucato, que contesta a supremacia da empresa privada sobre a pública para a inovação, e a revista The Economist é supérflua, pois não percebe as condições essenciais para o sucesso no setor de pesquisas.

    É bom não esquecer que as pequenas e médias empresas do Vale do Silício concentram “engendradores” (Da Vincis), como também acontecia com outros fenômenos similares, tais como a rota 128 nos arredores de Boston e o tecnopolo de Grenoble, na França. Essa ocorrência só se dá, entretanto, em terreno fértil, como o entorno da Universidade de Stanford no primeiro caso, a proximidade do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade de Harvard no segundo, e como também é o caso de Grenoble, com a sua universidade, e os inúmeros institutos públicos de pesquisas de seus vizinhos. A conclusão é, pois, que não bastam engendradores. É necessário que outras instituições como universidades e instituições de pesquisa forneçam o material básico para alimentar os engendradores (Da Vincis).

     

    BASE CIENTÍFICA É BASE DA INOVAÇÃO

    Foi por perceber a indispensabilidade de um espaço fértil em ciência para a implantação de uma indústria tecnologicamente intensiva que se propôs e se instituiu em torno da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o primeiro tecnopolo planejado do mundo, já em meados da década de 1970. Os acontecimentos anteriores eram espontâneos. Todavia, o exemplo de Campinas e o sucesso de projetos similares bem-sucedidos no exterior serviu para o surgimento de vários parques tecnológicos no Brasil, sempre no entorno de universidades ou centros de pesquisas. Essa irrefutável realidade mostra que não há inovação sem uma base científica fecunda.

    O problema nas instituições públicas, que é dominante no Brasil, é a estabilidade prematura do funcionário, uma perversão que é abrangente, ou melhor, que não é peculiar às instituições de pesquisa. Para este e outros problemas relacionados a instituições públicas encontraram-se soluções em vários países. O que é, entretanto, incontornável é o imperativo de uma massa crítica de cérebros e de uma gestão que perceba a distinção da natureza dissimular entre as vocações dominantes em cada pesquisador, pois há inclinações naturais irremovíveis. Uns nasceram para desvendar, outros para engendrar, embora nem sempre eles próprios percebam essa dicotomia.

    Recentemente, a percepção de que inovação é quase sempre determinante para o desenvolvimento econômico e mesmo para a competitividade entre empreendimentos específicos comerciais e industriais, tem produzido pressões para que universidades e instituições de pesquisas se dediquem crescentemente à busca de inovações. Essas pressões trazem consequências perigosas. Em primeiro lugar, a conversão de grupos de pesquisas básicos em ferramentas da produção de inovação, se levada a extremos, eliminaria a produção de conhecimento fundamental que é a base sobre a qual se lastreia a pesquisa aplicada e consequentemente a geração de inovação. Em segundo lugar, há o risco de se violentar a vocação própria do pesquisador de ciência básica e aproveitá-lo, com frequência, com baixa eficiência. O pior, entretanto, dessa tendência, se perniciosa em si, é que por falta de experiência ou de inteligência de seus gerentes, as instituições públicas no Brasil elegeram um parâmetro de medida absolutamente inadequado para avaliar o sucesso de pesquisadores e instituições, tal seja o número de patentes. A patente só tem existência real quando resulta em inovação, que tenha resultados financeiros. O pagamento de royalties, quando a patente é cedida a terceiros, seria uma boa medida, todavia muitas patentes de sucesso servem apenas para impedir um competidor por algum tempo de ocupar uma parcela de mercado e outros para uso próprio. E, portanto, não se pagam royalties nesses casos. Outras vezes serve apenas para contratos entre companhias que não querem competir. O registro de patente avalia apenas uma aparente originalidade e não o eventual futuro financeiro de uma inovação. Ou seja, o registro, ou pior ainda, a deposição de uma patente é inteiramente irrelevante. Como consequência, o que se observa com frequência hoje no Brasil é uma perversão que valoriza algo que não pode ser medido e sacrifica talentos para a pesquisa.

    O Brasil deve prosseguir na busca de inovações, mas deve repensar os métodos atualmente utilizados para atingir tais metas, pois os atuais talvez estejam sendo prejudiciais aos próprios propósitos.