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Ciência e Cultura
versión On-line ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo jul./sept. 2016
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300021
CULTURA
PROSA
Albatroz, cena 44 (fragmento de um roteiro cinematográfico)
Bráulio Mantovani
INT. VAGÃO DE TREM - EM MOVIMENTO - NOITE
Simão acorda assustado no assento do trem que o leva para Albatroz. Em sua testa, o mesmo curativo feito no hospital e as mesmas roupas. Ele olha pela janela e vê -
P.V. SIMÃO - PELA JANELA DO TREM: o escuro da noite é entremeado por postes iluminados que parecem passar correndo pela janela.
NO ASSENTO, Simão está confuso: "Estou acordado ou estou sonhando?". Ele olha para o lado e se surpreende ao ver Catarina (sua mulher) sentada ao lado. Ela sorri com ternura. Simão agarra Catarina e começa beijá-la. Ela parece não entender a intensa demonstração de amor.
SIMÃO
Você tá bem? Como é que você veio parar aqui? Eu achei que você tava - Foi tudo um trote?
CATARINA
Eu - Eu não sei do que você tá falando.
SIMÃO
O sequestro?
CATARINA
Sequestro?
SIMÃO
Alícia? Weber?
CATARINA
É piada? Se for, eu não tô entendendo.
SIMÃO
É que não era pra você estar aqui.
CATARINA
Mas então por que você me chamou?
SIMÃO
Eu chamei?
CATARINA
Você me mandou uma mensagem de texto. Eu vim. Eu andei o trem inteiro atrás de você - Você tava aqui dormindo e eu não quis te -
Simão sente raiva e alívio ao mesmo tempo.
SIMÃO
Filha da puta! Foi um trote.
CATARINA
Da Alícia?
SIMÃO
Só pode ser. Meu amor, eu preciso -
CATARINA
Não precisa.
SIMÃO
Mas eu tenho que falar. Faz tempo que eu - Eu sei que eu não tô sendo legal com você - Que tem um monte de coisa assim - meio - meio obscura na minha vida. Mas eu quero que agora a gente fale tudo, sabe? Com a maior clareza.
CATARINA
Se der -
SIMÃO
Tem que dar.
CATARINA
Bom, se não der pra você falar com clareza, pelo menos tenta ser preciso com as obscuridades.
Simão se afasta momentaneamente, surpreso: algo na fala de Catarina parece estar fora do lugar.
SIMÃO
Por que você disse isso?
CATARINA
Você diria o quê?
SIMÃO
Não sei - Acho que a mesma coisa.
CATARINA
Faz sentido.
Simão novamente estranha.
SIMÃO
Por quê?
CATARINA
Porque se não fizesse, você ia dizer outra coisa.
SIMÃO
Você tá me dizendo que você só disse aquilo porque era o que eu queria dizer?
CATARINA
Não, mas quase. O que eu quis dizer é que eu disse o que eu diria se eu precisasse dizer o que você precisa me dizer. Foi por isso que eu disse aquilo. Entendeu?
SIMÃO
Espera aí! Não tem como você saber o que eu preciso dizer pra você. Ou você sabe?
Catarina pensa um pouco.
CATARINA
Humm - Agora eu não sei bem o que dizer. Porque - Pensando bem - Tem a ver com aquela história da mosca e da manteiga, sabe?
SIMÃO
Do que você tá falando?
CATARINA
Daquela história da mosca que sonha que era uma manteiga que voa e quando acorda pensa que pode ser que a manteiga é que tá sonhando com a mosca. Uma mosca azul - eu acho.
Simão olha perplexo para Catarina, que tem um insight:
CATARINA (CONT.) (CONT'D)
Não é uma mosca! É uma borboleta azul!
Catarina cai na gargalhada. Simão se surpreende. É uma explosão de riso que não combina com seu jeito taciturno.
CATARINA (CONT.) (CONT'D)
Butter-fly. Entendeu? Manteiga que voa - Fly, mosca -
SIMÃO
Onde é que você ouviu essa história?
Catarina tenta se lembrar, mas não consegue.
CATARINA
Não sei -
Simão começa a ligar os pontos.
SIMÃO
Eu sei por que você não consegue se lembrar.
CATARINA
Por quê?
SIMÃO
Porque você não tá aqui.
Catarina gargalha novamente.
CATARINA
Essa é boa!
SIMÃO
Eu também não tô aqui.
Catarina fica intrigada.
SIMÃO (CONT.) (CONT'D)
Nós dois - aqui, nesse trem - Isso não tá acontecendo de verdade.
CATARINA
É um trote?
SIMÃO
Não. É um sonho. Eu devo tá dormindo no laboratório daquele cientista maluco!
Catarina fica aflita.
CATARINA
Não, não! Você tá junto comigo.
SIMÃO
Pode ser. Pode ser que eu sonhei com o laboratório. E eu tô em casa, dormindo do teu lado.
Catarina ri com ternura, aliviada.
CATARINA
Meu sonho é estar agora em casa, dormindo do teu lado.
Simão coloca a mão na testa de Catarina, um pouco acima dos olhos.
SIMÃO
Eu vou provar pra você que é um sonho. A gente vai fechar os olhos juntos. E quando eu abrir os olhos, você não vai tá mais aqui. Eu não vou tá mais aqui nesse trem. Eu vou tá do teu lado, na nossa cama, no nosso quarto.
Simão cobre os olhos de Catarina e, com a outra mão, faz o mesmo com seus próprios olhos lentamente, seguindo a contagem:
SIMÃO (CONT.) (CONT'D)
Um - Dois -
FADE OUT:
Bráulio Mantovani nasceu em São Paulo em 1963. É bacharel em língua e literatura portuguesas pela PUC-SP e tem master em escrita de roteiros cinematográficos pela Universidad Autónoma de Madri. É autor do roteiro de Cidade de Deus (indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado), Tropa de elite e Tropa de elite 2, entre outros. Tem publicados dois livros Perácio - relato psicótico (Leya) e a peça teatral Menecma (Sesi)
As páginas publicadas são do roteiro inédito Albatroz, que tem como pano de fundo a neurociência. A produção do filme será iniciada no segundo semestre de 2016, com direção de Daniel Augusto. No elenco principal estão Ângelo Antonio, Andrea Beltrão, Camila Morgado e Maria Flor.