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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400004 

    NOTÍCIAS DO BRASIL
    ZIKA VÍRUS

     

    Emergência sanitária transforma panorama da ciência brasileira

     

     

    Roberto Takata

     

     

     

    Um elusivo patógeno, relativamente pouco estudado e praticamente desconhecido a não ser por um punhado de especialistas, levou quase 70 anos para dar meia volta ao mundo desde sua primeira detecção, em 1947, em macacos reso sentinelas - animais utilizados para monitorar a circulação de doenças, mantidos em gaiolas instaladas no alto das árvores da floresta de Zika, em Uganda. A partir daí, o vírus zika (ZIKV) passou a revelar novas e perigosas facetas que, se por um lado, desconcertam cientistas, por outro, proporcionam oportunidades de modificar, para melhor, o cenário da ciência nacional e internacional.

    Em fevereiro deste ano, o imunologista Wilson Savino, diretor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em entrevista ao jornal inglês The Guardian, comparou o estado de desconhecimento a respeito da epidemia de zika à Aids no início dos anos 1980. Fazia pouco mais de dois meses que o Ministério da Saúde havia considerado como confirmada a relação entre o ZIKV e a epidemia de microcefalia no país; e que a Organização Mundial da Saúde (OMS) acabava de declarar a microcefalia e a síndrome de Guillain-Barré (SGB) como emergência em saúde pública de interesse internacional, com a relação causal altamente sugerida, mas ainda não comprovada. Desde então o conhecimento científico sobre o vírus e seus efeitos avançou muito, em boa parte, graças a esforços da comunidade científica brasileira.

     

    PREPRINTS

    Os primeiros estudos científicos, com indícios mais sólidos da relação causal, foram publicados em março de 2016. A equipe do biólogo Stevens Rehen, do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgou os resultados da análise sobre infecção de organóides cerebrais - pequenos aglomerados 3D de células neurais organizados como no cérebro - e neurosferas - aglomerados de células-tronco neurais - por ZIKV. O trabalho demostrou que o vírus afeta células nervosas. Distribuído inicialmente como preprint - versão preliminar de artigo, anterior à publicação em periódico científico após o processo de revisão por pares -, acabou sendo publicado na revista Science, em maio. Em outro trabalho, publicado também em maio na Cell Stem Cell, o virologista Hengli Tang e colaboradores, da Florida State University, também mostraram o efeito da infecção do ZIKV sobre células neurais. Frente a esses e outros dados, em junho, a OMS declarou que um consenso científico havia sido atingido a respeito da relação causal entre o ZIKV e a microcefalia e a SGB.

    Ainda em maio, o grupo associado a Rehen divulgaria outro preprint, demonstrando que o composto denominado cloroquina é capaz de inibir a infecção de vários tipos celulares pelo ZIKV. A publicação de preprints segue os preceitos de uma declaração da OMS de setembro de 2015, encorajando a divulgação dos dados o mais rapidamente possível, durante emergências em saúde pública, encurtando, assim, o processo de análise por parte das revistas e o compartilhamento de dados com autoridades e com o público. Para Rehen, a pré-publicação confere agilidade ao processo, ao mesmo tempo em que aumenta o número de avaliadores potenciais e diminui potenciais conflitos de interesse. "A gente tem que chacoalhar o modelo e o preprint ajuda a atingir esse objetivo", diz.

    Os periódicos também atenderam ao chamado da OMS. Os artigos da equipe de Rehen e de Tang, demonstrando o efeito do ZIKV sobre células neurais, levaram apenas dois ou três meses entre a submissão e a publicação, processo que normalmente levaria um ano ou mais. Um estudo sobre a eficácia de vacinas contra o ZIKV testadas em macacos reso e publicado no começo de agosto na Science, com participação do virologista Paolo Zanotto, da Universidade de São Paulo (USP), demorou apenas duas semanas entre o envio do manuscrito e a publicação. Além disso, boa parte dessas pesquisas tem sido disponibilizada em acesso aberto.

     

    ALÉM DA MICROCEFALIA

    Entender a relação entre o ZIKV e a microcefalia é o principal objetivo das pesquisas e a maior preocupação das autoridades sanitárias. No entanto, outros defeitos fetais foram associados ao vírus, bem como sequelas mais sérias do que uma "dengue branda", como baixo peso em fetos e recémnascidos. Em adultos, exemplos de implicações são a artrogripose (contratura das articulações, especialmente das mãos e dos pés, que ficam curvados como um gancho); inflamação de meninges e encéfalo e a já mencionada síndrome de Guillain-Barré.

    A relação entre a infecção por ZIKV e a SGB foi sugerida ainda durante a epidemia ocorrida entre dezembro de 2013 e março de 2014 nas ilhas da Polinésia Francesa. Um aumento do número de casos da síndrome também foi observado no nordeste brasileiro entre janeiro e julho de 2015. Estudo realizado por cientistas da Polinésia Francesa, Reino Unido e França, publicado em abril deste ano na revista The Lancet, analisou retrospectivamente os casos de SGB durante a epidemia de zika no território ultramarino francês concluindo pela relação entre ambos.

    A despeito do reconhecimento dessa associação, pouco se sabe sobre a SGB causada pelo ZIKV. "O nome que estamos dando para essa síndrome é um pouco complicado, porque essa Guillain-Barré não tem uma natureza autoimune como a tradicional", explica Zanotto.

    Outros vírus e microrganismos também causam a condição; mas isso costuma ocorrer após a fase da infecção aguda, quando o paciente convalesce. O caráter autoimune decorre de os próprios anticorpos produzidos pelo corpo do indivíduo atacarem seus nervos periféricos. "O que a gente está observando na questão específica do zika, é que talvez o próprio vírus esteja matando as células neuronais periféricas", diz Zanotto.

     

    REDES

    Uma característica em comum desses trabalhos é a participação não apenas de um grande número de pesquisadores, mas também de diferentes instituições. Na visão de Zanotto, que coordena a Rede Zika - iniciativa que envolve vários grupos de pesquisa e laboratórios da USP, e conta com colaboração internacional, como a do Instituto Pasteur de Dakar, Senegal - o trabalho em rede tem sido essencial na pesquisa do ZIKV, ajudando a otimizar os recursos materiais e humanos. "Trabalhar em rede é sempre muito melhor do que trabalhar individualmente", concorda Savino, da Fiocruz. Desse modo é possível "utilizar equipamentos de médio e grande porte, que nem todos os laboratórios têm". Para ele, o modelo de trabalho em redes pode representar "uma mudança de paradigma na produção científica brasileira, favorecendo cada vez mais a cooperação em detrimento da competição".

    A formação de redes tem sido incentivada pelos órgãos de apoio e fomento. Em fevereiro deste ano, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) lançou edital prevendo a formação de redes cooperativas de pesquisa sobre dengue, chicungunha e zika, destinando um total de R$ 12 milhões a serem liberados em dois anos para compras de equipamentos, custeios e de bolsas. Em março, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) lançou edital semelhante, com investimentos de até R$ 5 milhões.

     

    CRISE DE RECURSOS

    Por outro lado, as crises econômica e política têm colocado em risco a liberação de recursos. "Não tive financiamento nenhum até agora", revela Stevens Rehen, "já recebemos uma parcela de um recurso da Faperj; mas de outros dois projetos, aprovados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ainda não entrou nenhum recurso". Wilson Savino também relata dificuldades: "Tem bolsas que permitem compras menores. Mas os recursos de monta para equipamentos e material, esses ainda não foram liberados". Para Zanotto, ao menos em nível federal, essa situação tende a mudar. Parte do problema foi que, com a mudança de governo, muito do que havia sido acertado com o então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, hoje também das Comunicações, e a Capes tiveram que ser renegociados, atrasando a liberação das verbas e formulação de editais.

    Mesmo com poucos ou até nenhum recurso novo, o trabalho dos grupos de pesquisa brasileiros para explicar aspectos fundamentais da biologia e epidemiologia do ZIKV foi expressivo. "Se você olhar a produção científica de 2015 para cá no mundo inteiro sobre zika, 27% foi feita no Brasil", observa Savino. "Isso demonstra a rapidez com que a comunidade científica brasileira respondeu a esse problema, levando a uma série de descobertas importantes", conclui.