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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo out./dez. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400005 

    NOTÍCIAS DO BRASIL
    BIODIVERSIDADE

     

    Caça a mamíferos ameaça bioma da Caatinga

     

     

    Giselle Soares

     

     

    Mesmo ocupando cerca de 11% do território brasileiro, com mais de 750 mil km2, a Caatinga ainda é, hoje, um dos biomas menos conhecidos e menos protegidos do país. A escassez de chuvas, que pode perdurar por até onze meses, diminui a disponibilidade de água para plantas e animais e contribui para definir não apenas a paisagem, mas também os hábitos dos moradores. Apesar de ter sido, durante muitos anos, descrita como um ecossistema pobre em espécies e endemismos, essa visão está mudando. Estudos recentes apontam que a Caatinga apresenta uma expressiva riqueza de vertebrados silvestres quando comparada a outras regiões semiáridas do mundo. Em relação aos vertebrados terrestres, estão catalogadas, na região, 56 espécies de anfíbios, 117 de répteis, 591 de aves e 153 de mamíferos.

    Único bioma exclusivamente brasileiro, com um rico patrimônio biológico, a Caatinga sofre com as consequências do desmatamento (mais de 45% de seu território original já foi desmatado, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente) e de atividades de caça, fatores que, combinados, contribuem para a extinção de várias espécies, sobretudo de aves e mamíferos.

    Com o objetivo de elaborar um catálogo dos mamíferos de caça de importância etnozoológica nesse bioma e seus impactos potenciais, um grupo de pesquisadores ligados a universidades da Paraíba e do Piauí publicou, no fim de julho, o artigo "Game mammals of the Caatinga biome", no periódico Ethnobiology & Conservation. O estudo, liderado pelo professor Rômulo Romeu Nóbrega Alves, do Departamento de Biologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), mostra parte dos resultados das teses de doutorado dos biólogos Wedson Souto, Raynner Barboza, Hugo Fernandes-Ferreira, além da dissertação de Anderson Feijó. A finalização do artigo coube aos professores Pedro Estrela e Alfredo Langguth, especialistas em mamíferos. Todo o processo durou cerca de quatro anos.

     

    ENTENDENDO OS MOTIVOS

    O trabalho estabelece uma detalhada descrição de 41 espécies que são ou eram caçadas na Caatinga para diversos fins. Cerca de 31% dos animais documentados estão na "Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais" (IUCN) e na "Lista Nacional das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção", do Ministério do Meio Ambiente. O levantamento contém informações sobre as espécies de mamíferos, seus usos e as formas de interação com as pessoas. De acordo com Alves, os resultados de suas investigações sugerem que, no caso dos mamíferos, a caça é um fator que tem provocado uma forte pressão sobre as populações naturais das espécies, principalmente as de grande porte, como a onça-pintada (Panthera onca) e o queixada (Tayassu pecari), presentes em raros pontos do bioma.

     

     

    Das 41 espécies catalogadas, 31 são ou eram capturadas para fins alimentares, 38 para medicina popular, 23 utilizadas como ornamentos, 24 como animais de estimação, 31 para fins mágico-religiosos (nesses casos, apenas algumas partes dos animais são utilizadas, como chifres, unhas ou pele) e 25 mortas em situação de conflito com seres humanos. Algumas espécies, como a anta (Tapirus terrestris), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e o tatu canastra (Priodontes maximus) já foram completamente extintas da região. "Por ser uma atividade que ocorre de maneira clandestina na maior parte da região, as informações sobre a caça são escassas, embora sua importância econômica e ambiental seja evidente. É necessário entender as razões que levam as pessoas a caçar mesmo em um cenário de clandestinidade. Só é possível pensar em estratégias de conservação se houver informações disponíveis sobre o problema", explica o professor Rômulo Alves. A carne de mamíferos selvagens constitui uma importante fonte de proteína para diversas comunidades rurais e urbanas, especialmente em períodos de seca sazonal, quando a colheita se torna escassa e os animais domésticos sofrem com a fome e a sede.

    Uma das espécies mais importantes para a caça na região é o veado-catingueiro (Mazama gouazoubira). Além de muito apreciado pelo sabor e maciez de sua carne, esse animal é, muitas vezes, alvo de competições, por ser considerado difícil de perseguir. A população está em declínio em diversas localidades, em parte devido à caça, mas também pela perda de habitat.

    Outras espécies muito utilizadas como alimento no semiárido brasileiro são o mocó (Kerodon rupestris) e o cateto (Pecari tacaju), também usado na medicina popular para tratar doenças como trombose, bronquite e AVC.

    O tatupeba (Euphractus sexcinctus), além de consumido como alimento, é, assim como o cateto, empregado na medicina popular. Fragmentos de cauda pele e gordura são prescritos para tratar feridas, dor de ouvido, asma, dor de garganta, pneumonia, sinusite, surdez , garganta grossa ou para desviar a inveja.

     

    ASPECTOS CULTURAIS

    Para Alves, em uma perspectiva ecológica e conservacionista, a redução da pressão de caça representaria o ideal de conservação e estratégia de manejo da fauna. Todavia, essa redução não é viável na região, uma vez que a caça de animais silvestres está indissociavelmente ligada a fatores socioeconômicos.

    "Ignorar as motivações que levam as pessoas a usarem os produtos da fauna silvestre implica impor medidas de controle que não funcionam por uma série de fatores. A prova disso é que a caça é disseminada na região, e em todo Brasil, apesar de a legislação proibir. Por ser um tema complexo, é uma atividade que deve ser entendida em suas diferentes nuances para que se possa pensar em estratégias que busquem a conservação das espécies, mas também a manutenção das pessoas que se utilizam desse recurso como fonte de subsistência.

    Os produtos animais são usados para diferentes fins. No caso do uso alimentar, e quando as comunidades locais dependem da atividade para subsistência, é recomendável que sejam planejadas formas de exploração sustentável do recurso. Nesse âmbito, a própria legislação permite que as comunidades tradicionais possam caçar para sua subsistência. Na maior parte da Caatinga, no entanto, a caça está associada ao aspecto cultural.

    Muitas vezes o indivíduo inicia as atividades cinegéticas ainda na infância, influenciado por parentes. As pessoas envolvidas consideram a prática como um esporte e é comum que se reúnam com amigos nos fins de semana em clima de descontração e aventura", esclarece.

    Diante dessas realidades distintas, Alves aponta a necessidade de implementar medidas destinadas a garantir a sustentabilidade da caça regional e minimizar os impactos sobre as populações animais. Como ações que poderiam contribuir para equilibrar a situação, os pesquisadores destacam o desenvolvimento de programas educacionais de manejo da vida selvagem (no caso da caça de subsistência), com fortes componentes de legislação ambiental e sua aplicação efetiva (no caso de caça para entretenimento); a criação de canais de comunicação entre instituições acadêmicas e governamentais e os envolvidos na caça e a intensificação das ações de fiscalização da caça para entretenimento. Além dessas medidas, o pesquisador afirma que é preciso considerar também o comércio ilegal de animais silvestres, que estimula a caça e representa um problema ambiental mundialmente reconhecido. Outros fatores, a exemplo da agricultura de corte e queima e a contínua remoção da vegetação para a criação de bovinos e caprinos, contribuem para o empobrecimento ambiental da região.

    As descrições dos mamíferos de caça registrados no artigo foram baseadas em amostras de coleções científicas, além de dados disponíveis na literatura. Os pesquisadores visitaram as coleções de mamíferos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP). O catálogo pode ser acessado no endereço http://ethnobioconservation.com/index.php/ebc/article/view/90/79.