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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo out./dez. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400006 

    MUNDO
    GEOPOLÍTICA

     

     

    Brexit e o novo momento para a Europa

     

     

    Chris Bueno

     

     

    A União Europeia (UE) é um conjunto de 28 países, criado há 24 anos, visando a integração política e econômica do continente europeu.

    Apesar de ter sido oficialmente fundada em 1992, suas origens são bem mais antigas, sendo que o grupo é conhecido globalmente pelo grau de integração entre seus membros.

    Entretanto, recentemente, a União Europeia sofreu uma grande rachadura: o Reino Unido, um de seus 12 membros fundadores, anunciou que deixará o grupo.

    A decisão histórica, anunciada no dia 24 de junho, foi tomada depois de um referendo em que, através de votação popular, os britânicos escolheram deixar o bloco europeu. Batizado de Brexit (contração das palavras inglesas Britain, de Grã-Bretanha, e exit, de saída), a decisão pode significar um novo momento para a Europa e também a abertura para que outros países se retirem do bloco, com o potencial para mudar o rumo da geopolítica mundial nas próximas décadas. "O que ocorreu no Reino Unido pode ser observado em outros países da União Europeia, como França, Áustria, Holanda e Dinamarca, entre outros. Nesses países, grupos de direita e de extrema direita associam a imigração, a globalização e o burocratismo de Bruxelas, sede da União Europeia, aos problemas econômicos enfrentados por seus cidadãos.

    Mesmo do outro lado do Atlântico os discursos xenófobos e antiglobalização têm atraído o apoio de parcela significativa da população dos Estados Unidos", explica o historiador Marcos Cordeiro Pires, professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Unesp.

     

    RESISTÊNCIA

    Foram 17.410.742 votos a favor da saída e 16.141.242 pela permanência (52% contra 48%).

    Até hoje, nunca um país membro havia deixado a União Europeia. Agora, há uma grande preocupação de que haja um efeito dominó, com outros países organizando consultas similares e deixando o bloco. "A Holanda e a França já exteriorizaram insatisfações em permanecer, mas as questões são distintas. O Reino Unido é um caso único no bloco em termos de resistência à integração, discordância em relação a decisões comunitárias, inconformismo com o aumento da imigração e melancolia em relação a se sentir menos representado pelo bloco do que de forma independente", aponta o advogado Manuel Furriela, coordenador do curso de relações internacionais do Complexo Educacional das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).

     

     

    Oficialmente, o referendo não é "vinculante", ou seja, ele não torna obrigatória a decisão de sair do bloco europeu. No entanto, especialistas acreditam ser muito difícil o Reino Unido permanecer no grupo depois do referendo e com toda a pressão popular. Além disso, a saída não acontecerá imediatamente: deve demorar no mínimo dois anos, tempo para concluir todas as leis e acordos comerciais e encerrar a participação do Reino Unido na União Europeia. Quando isso acontecer, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte (países que formam o Reino Unido) deixarão de fazer parte dos tratados do bloco e de aceitar imigrantes com passaporte da União Europeia, além de terem que fazer a revisão de todos os contratos e acordos comerciais.

     

     

    A saída do Reino Unido da União Europeia representa não apenas a desunião no bloco europeu, mas também dentro do Reino Unido. Na Escócia (62%) e na Irlanda do Norte (55,8%), a maioria da população votou pela permanência no bloco, enquanto que na Inglaterra (53,4%) e no País de Gales (55,8%) a maioria optou pela saída. Há um conjunto de fatores que explica porque a maioria da população votou pela saída. O processo de integração do Reino Unido à UE foi conturbado desde a criação do bloco europeu. Sempre esteve presente certa desconfiança de que a União Europeia tenderia a esvaziar a soberania democrática. Também havia a desconfiança com relação aos partidos e lideranças tradicionais, que se agravou nos últimos anos com a crise econômica e a insatisfação social no Reino Unido - especialmente depois da crise financeira de 2008, que aumentou significativamente a desigualdade de renda. "Some-se a isso o impacto da imigração e a manipulação dessa questão em ações da campanha pela saída e por grande parte da mídia sensacionalista, fator decisivo nesse contexto todo", explica o sociólogo Giorgio Romano Schutte, coordenador do curso de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC).

     

    NACIONALISMO

    O Reino Unido deixa o bloco europeu num momento de discussões fervorosas sobre nacionalismo e identidade nacional. "A globalização é um projeto em crise. Entregou muito menos do que prometeu. Desde a década de 1980, as disparidades de renda aumentaram em quase todos os países do mundo.

    Os grupos beneficiados com a liberalização da economia mundial são poucos. Há um ditado nordestino que diz: 'em tempos de murici, cada um cuida de si'. Ele pode ajudar a explicar a emergência do isolacionismo, do nacionalismo, da intolerância, do fascismo e da xenofobia em todas as partes do mundo, inclusive no Brasil", explica Pires.

    "Temos, em muitos países, um ressurgimento do nacionalismo. Basta olhar para a França, a Polônia ou a Hungria, entre outros. Isso, em conjunto com a crise da UE, significa que há a possibilidade de mais saídas", explica o cientista político Kai Enno Lehmann, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). "Sabemos que tanto esse sentimento nacionalista quanto a crise da União Europeia não vão sumir de repente, mas como simplesmente não há precedentes, não temos a menor ideia sobre o que vai acontecer".

    Para os defensores do Brexit, com a saída da União Europeia, o Reino Unido conseguirá finalmente retomar o controle da economia e recuperar seu crescimento. Também será possível aumentar o controle sobre a imigração e, consequentemente, melhorar a segurança e diminuir o desemprego.

    A imigração foi uma questão muito explorada pelos grupos de direita que defenderam a saída da UE. "Eles associam o mal-estar sentido pelos cidadãos ao ingresso de imigrantes no país, principalmente aqueles provenientes de países do leste europeu que recentemente ingressaram no bloco.

    Segundo os grupos xenófobos, essas pessoas não só competem pelos empregos com os nativos como também tendem a pressionar o sistema de bem-estar social. Ademais, são esses os supostos responsáveis pela insegurança associada ao terrorismo que assusta o país. Assim, sair da União Europeia seria o meio de controlar as fronteiras e conter o indesejado fluxo migratório", afirma Pires.

    No entanto, as reações do mercado logo após os resultados do referendo apontaram para a direção contrária: a moeda britânica caiu à sua mais baixa cotação em três décadas e a bolsa de Londres teve uma queda assustadora. Especialistas vêm apontando que a saída do Reino Unido do bloco europeu pode trazer consequências graves para a economia britânica - mas o referendo mostrou que esse é um preço que a maioria dos britânicos está disposta a pagar em nome da identidade nacional.

    Esse ressurgimento do sentido de identidade nacional na agenda política é, segundo especialistas, uma reação aos impactos da globalização. "Ele se expressa como sentimento de defesa", aponta Schutte. "De fato, essa frustração com o processo de globalização pode ser manipulada facilmente. Paradoxalmente, até nos Estados Unidos a popularidade de Donald Trump pode ser analisada a partir dessa perspectiva.

    A globalização mostrou-se excludente demais para grande parcela das populações e não há um projeto alternativo de inclusão convincente", diz. "É uma reação contra a globalização, com certeza, e todas as incertezas que ela traz", concorda Lehmann. "A ideia é 'vamos retomar controle', um tipo de pensamento muito popular entre aquelas pessoas que sofrem com as consequências da globalização. Mas vamos descobrir que não é possível 'voltar atrás', 'desfazer' a globalização, e, quando tivermos essa realização - que sair da União Europeia não vai resolver o problema de imigração ou da insegurança de emprego, ou que não haverá um muro na fronteira com o México, ou que os centro-americanos vão continuar chegando aos Estados Unidos - politicamente será um momento muito perigoso para o mundo", finaliza.