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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400009 

    ARTIGOS
    LIXO

     

    Apresentação - lixo: uma ressignificação necessária

     

     

    Leonor Assad

    Professora de agronomia no Departamento de Recursos Naturais e Proteção Ambiental, do Centro de Ciências Agrárias (CCA), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com pós-doutorado realizado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e especialização em jornalismo científico no LabJor/Unicamp. Email: assad@cca.ufscar.br

     

     

    Lixo é um produto da cultura humana. Palavra de origem controversa, segundo muitas fontes o termo vem do latim lix, que significa cinzas e está vinculado às cinzas dos fogões (1). Antes das transformações provocadas pela Revolução Industrial, a maioria dos resíduos domésticos era composta por restos de alimentos e por cinzas do fogão e da lareira. Enquanto o material orgânico era dado aos animais ou usado como esterco, as cinzas eram descartadas e constituíam o lixo. Atualmente, usamos o termo lixo para nos referir a qualquer material de origem doméstica, industrial, agrícola ou comercial que se joga fora por não ter utilidade, ou porque nos repugna por estar suja, ou porque não gostamos mais, ou ainda porque consideramos velho, ultrapassado ou fora de moda. Lixo também é usado para se referir ao local ou recipiente onde se acumulam esses materiais.

    Tecnicamente, o que chamamos de lixo é constituído por materiais que podem ser reaproveitados (os resíduos) e por materiais que não podem ser aproveitados (os rejeitos). No Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) estabelece que resíduo é todo o material, substância, objeto ou bem que já foi descartado, mas que ainda comporta alguma possibilidade de uso (2), por meio da reciclagem, do reaproveitamento ou de processamento industrial. No lixo temos uma grande parte que é resíduo e uma pequena parte que é rejeito (3). A diferença entre um e outro depende, muitas vezes, de conhecimento tecnológico sobre como tratar, como reaproveitar, como reciclar.

    Ou seja, a noção de lixo depende do que o gerador do lixo considera inútil, indesejável ou descartável. Além disso, a geração de lixo, em particular de resíduos sólidos, é geralmente considerada um problema urbano. Isto porque as taxas de produção de resíduos tendem a ser muito mais baixas em áreas rurais. Em média, os residentes em áreas rurais são geralmente mais pobres, consomem menos produtos comprados em lojas – o que resulta em menos embalagens – e tendem a ter níveis mais elevados de reutilização e reciclagem (4). A urbanização e o desenvolvimento econômico geram aumento de poder aquisitivo, aumento no consumo de bens e serviços e, consequentemente, aumento na quantidade de resíduos gerados.

    A taxa de urbanização tem aumentado rapidamente, tanto no Brasil como no mundo (5). Isto traz desafios cada vez maiores à eliminação de resíduos. Cidadãos e corporações, provavelmente, terão de assumir responsabilidades crescentes pela geração e eliminação de resíduos sólidos urbanos (RSU) e, em especial, no design de produtos e na separação de materiais (4).

    A média global de geração de RSU é de 1,2 kg por pessoa por dia, um pouco acima dos 1,1 kg por pessoa por dia, estimados para o Brasil (6). Mas esses valores escondem as fortes desigualdades mundiais e brasileiras. Enquanto Hong Kong produz 2,47 kg de RSU por pessoa por dia, Delhi produz 0,57 kg (4); no Brasil, a média da região Sul é de 0,77 kg de RSU por pessoa por dia enquanto que na região Sudeste a média de geração de resíduos é de 1,2 kg (6). Na verdade, as taxas per capita reais são altamente variáveis, pois existem consideráveis diferenças nas taxas de geração de resíduos entre países, entre e dentro de cidades. E nada expõe mais essas desigualdades sociais, e os impactos que somos capazes de causar ao ambiente onde vivemos, do que o lixo que prolifera em bairros e favelas da periferia de grandes cidades, principalmente quando se vê crianças brincando ou catando no lixo material que possa ser vendido.

    Atualmente, as cidades no mundo geram cerca de 1,3 bilhão de toneladas de RSU por ano e este volume deverá aumentar para 2,2 bilhões de toneladas em 2025 (4). Os custos de gestão dos RSU também aumentarão (para cerca de 375,5 bilhões de dólares) em 2025 e serão mais graves em países de baixa renda, onde aumentará mais de cinco vezes.

    No Brasil, em 2014, foram gerados aproximadamente 78,6 milhões de toneladas de RSU, representando um aumento de 2,9% em relação a 2013, índice superior à taxa de crescimento populacional no país no período, que foi de 0,9% (6). O porcentual de resíduos encaminhados para lixões ou aterros sanitários permaneceu praticamente inalterado nos últimos anos - 57,6%, em 2010 e 58,4%, em 2014. Entretanto, as quantidades destinadas inadequadamente aumentaram e chegaram a cerca de 30 milhões de toneladas por ano, em 2014 (6). Do ponto de vista ambiental, aterros sanitários pouco se diferenciam dos lixões, pois não possuem o conjunto de sistemas necessários para a proteção do ambiente e da saúde pública e o que se constata é que boa parte desse lixo poderia ser reaproveitado.

    De um modo geral, os resíduos, ou lixo reaproveitável, podem ser classificados em orgânico e inorgânico, este último englobando principalmente papel, plástico, vidro e metal. Tem-se também os resíduos de construção e demolição - como entulho, concreto e alvenaria - que, em algumas cidades, podem constituir quase a metade dos resíduos inorgânicos, dependendo da importância da indústria da construção civil. Em países de baixa renda, como Moçambique, Guiné, Malawi e Sérvia, a fração orgânica representa em média 64% dos resíduos sólidos urbanos, enquanto que nos países de renda alta, como Estados Unidos, Japão, Itália, Nova Zelândia e Cingapura, a fração orgânica é de 28% em média (4).

    A PNRS estabelece a logística reversa (7) como um dos instrumentos de implementação da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. Os produtos e respectivos resíduos compreendidos por essa obrigatoriedade são: os agrotóxicos, seus resíduos e embalagens; pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; produtos eletroeletrônicos e seus componentes; e medicamentos e suas embalagens. Atualmente, 94% das embalagens plásticas primárias, que entram em contato direto com o agrotóxico, e cerca de 80% do total de embalagens vazias de defensivos agrícolas que são comercializadas, têm destino adequado e confere ao Brasil o papel de líder mundial na destinação adequada desses materiais, a frente de países como a Alemanha, Canadá e França (6). O programa de reciclagem de óleos lubrificantes está presente em 14 estados (todos das regiões Sul e Sudeste, e Nordeste com exceção de Maranhão e Piauí) e no Distrito Federal, cobrindo 2.950 municípios, com 42.000 pontos geradores cadastrados e visitados regularmente (6).

    Três setores industriais brasileiros - alumínio, papel e plástico - possuem considerável participação nas atividades de reciclagem. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), citando dados do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre), aponta que apenas 13% do total de resíduos urbanos gerados no Brasil são encaminhados para reciclagem (8). Apesar desse baixo percentual de reaproveitamento, o Brasil possui certo destaque. Os dados disponíveis apontam que, em 2012, 35% do alumínio, 46% do papel e 21% do plástico são reciclados (6). Se considerarmos latas de alumínio e garrafas PET os porcentuais de reciclagem sobem para 98% e 59%, respectivamente (6). Alguns produtos, como o vidro, não obtêm níveis maiores de reciclagem devido à insuficiência de fábricas para seu processamento em relação à escala em que é feita a coleta, além de constituírem processos de transformação ainda muito onerosos.

    Esses índices são, em grande parte, devidos aos catadores de materiais recicláveis, que desempenham papel fundamental na implementação da PNRS. Com organização de trabalho bastante heterogênea, os empreendimentos econômicos coletivos de catadores são também heterogêneos, sobretudo no que tange a fatores como posse de maquinários e infraestrutura física; acesso a crédito e conhecimento técnico; local de atividade e tipos de produtos trabalhados; histórico de formação e critérios de aceitação de novos sócios; tempo dedicado pelos cooperados e divisão interna de trabalho; processos de gestão; estabelecimento de parcerias; características regionais em que se inserem os empreendimentos; entre outros (9).

    Todos esses números fazem dos temas resíduos sólidos e lixo, assuntos bastante pesquisados no país. No banco de dados de Grupos de Pesquisa (GP) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), aplicando-se os termos resíduos sólidos ou lixo no nome do grupo, no nome da linha de pesquisa, ou nas palavras chave, encontram-se registrados 312 grupos de pesquisa atualizados com resíduos sólidos, 40 com termo lixo e três com ambos. A título de comparação, e usando o mesmo procedimento, foram identificados 22 grupos com a expressão jogos eletrônicos, 86 com doenças negligenciadas, 171 com o termo neurociência e 1.047 com solos. Uma característica importante é o caráter multidisciplinar da pesquisa na área. Resíduos e lixo são temas estudados nas engenharias, nas ciências agrárias, nas ciências exatas e da terra, nas ciências aplicadas, nas ciências biológicas, nas ciências da saúde e nas ciências humanas (10).

    Atenta à importância do tema, a revista Ciência e Cultura tem publicado nos últimos anos várias matérias relacionadas ao assunto. Com este Núcleo Temático a revista reconhece, mais uma vez, a importância social, política e econômica do tema lixo. O conjunto de artigos que se segue foi elaborado com o intuito de trazer algumas abordagens sobre o tema, mas não tem a pretensão de trazer um panorama completo da área.

    O primeiro artigo foi elaborado pelo agrônomo Jean Carlos Cardoso e pela enfermeira Fernanda de Cássia Israel Cardoso, ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Araras (SP). Os autores abordam diferentes aspectos relacionados à produção do lixo e sua transformação em resíduos, discutem a reciclagem de resíduos e os cuidados no gerenciamento de resíduos da área de saúde. O segundo artigo foi elaborado pelo economista Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, em parceria com a administradora Sylmara Francelino Lopes Gonçalves Dias e com a filósofa Maria Cecília Loschiavo dos Santos. Como resultado dessa parceria interdisciplinar, tem-se um texto que discute a relação de organizações dos catadores de materiais recicláveis com atores do Estado, com as empresas e com a sociedade civil.

    No terceiro artigo, o administrador Vinícius Ferreira Baptista discute as políticas públicas para cooperativas de catadores de materiais recicláveis. Baptista aponta que indústrias, prefeituras e atravessadores têm conseguido materiais a baixíssimo custo a expensas do trabalho muitas vezes invisível de catadores.

    Os dois artigos seguintes focam na reciclagem de resíduos orgânicos, que representam em torno de 55% do total dos resíduos sólidos urbanos. Assim, o quarto artigo, escrito pela bióloga Thais Menina Oliveira de Siqueira e pelo agrônomo Marcos José de Abreu, reflete a experiência de ambos em compostagem de resíduos orgânicos e em atividades junto a comunidades urbanas e periurbanas, estimulando a agroecologia, a agricultura familiar e a construção de hortas em escolas. No quinto artigo, Manfred Fehr, engenheiro químico pela Université Laval, Canadá, com vasta experiência no Brasil e no exterior, demonstra a viabilidade econômica da compostagem e propõe um esquema de coleta e compostagem de aproximadamente metade dos resíduos biodegradáveis do município de Toribaté (MG), com 655 mil habitantes.

    Este Núcleo Temático se fecha com o instigante texto da socióloga Valquíria Padilha, que discute a nossa sociedade de consumo, a qual nos induz a um consumismo atrelado à obsolescência programada de produtos. A autora critica com clareza nosso modelo produtivista-consumista e pondera que não basta reduzir, reaproveitar e reciclar: "é necessário repensar o modelo de crescimento econômico que temos seguido nos últimos 200 anos visto que nosso sistema é essencialmente insustentável".

    Os artigos deste dossiê refletem a multidisciplinaridade e a abrangência do tema e confirmam que o lixo que estamos produzindo é um problema contemporâneo que afeta a todos, mas para o qual existem soluções.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Mucelin, C. A.; Bellini, M. "Lixo e impactos ambientais perceptíveis no ecossistema urbano". Sociedade & Natureza, 20, n. 1, p. 111-124. 2008.

    2. Brasil. Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS); altera a Lei nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília: Câmara dos Deputados, n. 81, 2010.

    3. Segundo a PNRS, são considerados rejeitos os materiais que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não possuem outra possibilidade que não a disposição final.

    4. World Bank. What a waste: a global review of solid waste management. Urban Development Series - Knowledge Papers, 15. 2012. 98 p.

    5. O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, estima que 84% da população brasileira é urbana. Mas pesquisa apoiada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário estima que o porcentual da população residente em municípios essencialmente e relativamente rurais corresponde a 37% da população total do país. A taxa de população urbana brasileira seria então de 63%, superior à estimativa global, que considera que, hoje, mais de 50% da população mundial vive em cidades. Detalhes dessa pesquisa encontram-se em Bitoun, J.; Miranda, L. I. B. de. "A tipologia regional das ruralidades brasileiras como referência estratégica para a política de desenvolvimento rural". Raízes, 35, n.1, jan-jun, p. 21-33. 2015.

    6. Abrelpe - Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2014. São Paulo, 2014. 120 p.

    7. A PNRS define a logística reversa como um instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados à viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada.

    8. Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Situação social das catadoras e dos catadores de caterial reciclável e reutilizável, 2012. 68 p.

    9. Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Diagnóstico sobre os catadores de resíduos sólidos. Brasília: Ipea, 2011.

    10. Disponível em http://lattes.cnpq.br/web/dgp. Acesso em 15 de agosto de 2016.