SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.68 número4 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo oct./dic. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400012 

    ARTIGOS
    LIXO

     

    Governança pública do lixo ou como a subversão do "social" contamina as políticas públicas para cooperativas de catadores de materiais recicláveis

     

     

    Vinicius Ferreira Baptista

    Administrador, mestre em políticas públicas e formação humana, professor assistente do Departamento de Administração Pública da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Centro de Ciências Exatas e Tecnologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Email: viniciusferbap2007@hotmail.com

     

     

     

    Primeiramente, é importante colocar a opção de não utilização do termo "resíduos sólidos" neste artigo e, sim, o termo "lixo", utilizado propositadamente, com o intuito de sumarizar as relações sociais, produtivas, institucionais e, sobretudo, éticas, morais e políticas, que orientam as ações de governança pública que envolvem atores da coleta seletiva, em um primeiro momento partindo da análise do município do Rio de Janeiro e, tentando, em um sentido mais amplo, propor elementos analíticos que permitam ampliar para uma generalização da coleta seletiva e redes de governança para outras localidades.

    De início, podemos entender que a conjuntura que trata das condições materiais, produtivas, estruturais, logísticas, sanitárias, financeiras e mercadológicas não é nova no âmbito dos estudos de políticas públicas orientadas para cooperativas de catadores; de fato, existe uma literatura plenamente reconhecida e que até serve de base inicial para trabalhos posteriores (1; 2; 3; 4). Por outro lado, desde o início de nossas pesquisas nessa área (5; 6; 7), até hoje, procuramos sempre discutir as condições e orientações políticas e institucionais que circundam as cooperativas e os catadores de materiais recicláveis – notadamente questões sociais envolvidas.

    Os catadores de materiais recicláveis sempre estiveram presentes para gestores públicos, as empresas recicladoras e a sociedade civil organizada; porém de forma invisibilizada, uma vez que os aspectos de custos e benefícios para uma intervenção organizada de atores sobre essa conjuntura ser custosa e não trazer benefícios em um primeiro plano (na visão dos atores envolvidos). A atuação entre esses três atores com os catadores se resumia à uma forma de exploração desorganizada via atravessadores - notadamente, pequenos e médios sucateiros que faziam a conexão entre os materiais recolhidos pelos catadores de rua e pequenas cooperativas e os grandes sucateiros - e, posteriormente, com as empresas recicladoras, que retornavam o material às empresas produtoras novamente. Autores como Demajorovic e colaboradores (8) exemplificam como valores de venda são capazes de invisibilizar esse processo, de forma a manter o status quo pelo aspecto financeiro. No âmbito estatal, até 2010, a maioria das iniciativas que envolviam cooperativas de catadores se resumia a participações esporádicas com doação de materiais. Era, todavia, um processo incipiente e com pouca gestão correlacionada que não permitia o desenvolvimento das ações das cooperativas.

    Pois bem, com a sanção da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei 12.305/2010, tal panorama ainda não mudou, uma vez que temos, agora, uma exploração formalizada institucionalmente e promovida pelo Estado. A conjuntura dos resíduos é altamente desfavorável aos catadores: muitos deles são analfabetos; sua gestão é amadora; os valores de venda são achatados por recicladoras e atravessadores; não há fidelidade dos cooperados (que possuem visão empregatícia e não de propriedade); há falta de cultura cooperativista; e, por fim, as prefeituras não criam planos estruturais com sua participação e a maioria das políticas orientadas é assistencialista. O grande interesse nessa conjuntura desfavorável se dá unicamente pelo aspecto financeiro, a partir do momento em que catadores de materiais recicláveis passaram a ser visíveis ao sistema político dos resíduos sólidos urbanos (RSU). A indústria, a prefeitura, os atravessadores e a reciclagem, como um todo, perceberam enorme vantagem sobre o trabalho dos catadores, conseguindo materiais a baixíssimo custo, com valores chegando a triplicar em relação ao valor de venda da cooperativa para o pequeno sucateiro e do grande sucateiro para a indústria da reciclagem, como pode ser visto em Demajorovic e colaboradores (8). O lixo é um grande negócio, mas para aqueles que exploram e achatam o valor do trabalho.

    Esse grande negócio é fomentado institucionalmente e promovido pelo Estado via redes de governança pública. Estas redes, teoricamente, são formadas por atores públicos e privados, capitaneados pelo Estado, e convergiriam interesses, custos e benefícios no sentido de intervenção na realidade social para resolução de problemas públicos (9). No caso da coleta seletiva e dos catadores, o desafio da governança pública se refere à gestão interna, externa e de redes que a envolvem. A PNRS determina o indeterminável, em termos de gestão pública brasileira: confluência de interesses. A PNRS induz à uma pretensa governança pública, que de "pública" não tem nada. Olson (10) já situava que atores que se unem em um grande grupo não irão convergir interesses mecanicamente e disputarão lógicas internas, que desorientarão a própria tentativa de organizar uma lógica de grupo e de ação coletiva.

    No âmbito da coleta seletiva e das cooperativas, só há vantagem competitiva quando os valores dos resíduos são achatados, quando as cooperativas não são pagas pelo serviço prestado (a ideia contida na disposição de resíduos recicláveis, por órgãos públicos e privados, para cooperativas, se dá na doação assistencialista e não na prestação de um serviço, já que as cooperativas vão ao local para retirar o resíduo que representaria um custo para dispor adequadamente e não são pagas por isso), quando cooperativas não possuem condições estruturais de prestar serviço, nem gestão adequada. Isso se traduz em vantagem competitiva para os demais atores da cadeia da coleta seletiva, como os médios e grandes sucateiros e as empresas recicladoras, que lucram com a venda de materiais, além das grandes empresas que têm materiais retornados ao processo produtivo a baixo custo. Dessa forma, sistemas de coleta seletiva precisam ser criados de modo a não instituírem custos, minimizarem ao máximo perdas de resíduos e maximizarem lucros dos que estão no meio para o fim da cadeia produtiva.

    Quando observamos as estruturas da coleta seletiva de diversas cooperativas, como colocado anteriormente, o que conseguimos constatar é que se trata de um sistema que, além de achatar os preços de vendas, não colabora no sentido de renda e permanência de cooperativados e que força as cooperativas a focarem no recebimento, coleta e triagem de materiais e não no seu beneficiamento - o que poderia gerar renda, tecnologia, novos processos, metodologias e participação socioeconômica na sociedade. Pelo contrário, a ideia de doação e o não pagamento pelo serviço prestado aprisiona as cooperativas porque as mesmas não têm condições de processar mais material devido à sua incipiente infraestrutura. E esse é o modelo-base de programas de coleta seletiva

    No caso do Programa de Coleta Seletiva Solidária (PCSS) do município do Rio de Janeiro, vemos esse processo se dar dessa forma. Não há investimento nas cooperativas e sim um investimento direcionado a minimizar custos de outros atores - empresas, sucateiros e recicladoras em geral. No Rio de Janeiro temos estações de transferência de resíduos, onde catadores de cooperativas são alocados para desenvolverem triagem de resíduos e venderem estes pelo preço de mercado. Há uma renda com valor de venda baixo apenas, e mesmo isso não retorna à cooperativa já que o serviço prestado continua não sendo pago; ou seja, não há desenvolvimento das cooperativas e as mesmas são um mero apêndice do sistema de coleta.

    No caso da coleta seletiva do Rio de Janeiro há uma subversão da questão social envolvida. E nos parece que tal subversão se alastra para várias capitais no país. Essa subversão - calcada no aspecto assistencialista; que não paga pelo valor do serviço prestado; que não permite que bancos públicos financiem máquinas, equipamentos e veículos; em que órgãos públicos não pagam pela retirada dos resíduos pelos catadores; em que cooperativas não fazem parte do sistema que planeja a coleta seletiva; em que os preços de venda são achatados propositadamente; em que não há qualquer apoio ou projeto que oriente questões jurídicas, organizacionais, gerenciais e operacionais nas cooperativas - faz com que o sistema do PCSS no Rio de Janeiro não seja capaz de prover mudanças sociais. Pelo contrário, as aprofunda negativamente. Primeiro pela renda, que é baixa e que impacta na baixa adesão e permanência dos cooperativados; segundo pela base social e institucional, que orienta participação indireta e como apêndice das cooperativas; terceiro, pela questão do trabalho da triagem, que é enfatizado em detrimento da agregação do valor pelas cooperativas. Todo esse sistema é fomentado em uma estrutura de governança pública em que diversos atores contribuem para tal - a ênfase aqui é o valor do lixo. Em outra corrente, algumas cooperativas vêm atuando de forma independente à essa governança estruturada pelo município do Rio de Janeiro, fomentando parcerias, melhorando estrutura e gestão e trazendo pessoas para profissionalizar as cooperativas - a ênfase aqui é o valor pago pelo lixo. E é dessa forma que as cooperativas vêm tentando furar o bloqueio dessa visão subversiva do "social" que mais as prende do que liberta de processos exploradores.

    Por fim, no momento, as cooperativas apenas participam como extensão do processo da coleta seletiva no município do Rio de Janeiro. Somente aparecem nas fotos e sites. Mas estão fora do planejamento, fora da concepção da gestão. Enquanto se mantiver esse sistema, teremos essa forma maquiavélica de gestão onde a Prefeitura, o Estado e a União aparecem como benfeitores de permitirem maior visibilidade e oportunidade às cooperativas. E com atravessadores e demais empresas da cadeia de reciclagem angariando lucros absurdos devido ao baixo valor pago às cooperativas. Se as cooperativas não fossem atendidas pela PNRS e não estivessem visíveis, tais valores poderiam ser ainda menores. E não é assim; se as cooperativas estão visíveis não foi graças à PNRS, mas à conjuntura social, econômica e política atrelada aos resíduos. De fato, a PNRS potencializou os catadores. Mas, se ainda mantivermos essa visão deturpadora e um tanto social e politicamente alienante da realidade, não conseguiremos mudar a participação indireta das cooperativas para a direta e, de fato, trazer mudanças sociais positivas.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Barbosa, R. N. C. A economia solidária como política pública: uma tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: Cortez, 2007.

    2. Besen, G. R. "Sustentabilidade dos programas de coleta seletiva com inclusão social: Avanços, desafios e indicadores". Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade [Anais...], 4, 2008, Brasília.

    3. Jacobi, P. R.; Besen, G. R. "Gestão de resíduos sólidos em São Paulo: desafios da sustentabilidade". Estudos Avançados, São Paulo, 25, 71, abril, 2011.

    4. Jardim, A.; Yoshida, C.; Machado-Filho, J. F. (eds.). Política nacional, gestão e gerenciamento de resíduos sólidos. Barueri, SP: Manole, 2012.

    5. Baptista, V. F. "As políticas públicas de coleta seletiva no município do Rio de Janeiro: onde e como estão as cooperativas de catadores de materiais recicláveis?" Revista de Administração Pública (impresso), 49, p.141 - 164, 2015a.

    6. Baptista, V. F. "Por uma política pública e não um simples instrumento de gestão de política: a coleta seletiva na visão vazia da Política Nacional de Resíduos Sólidos". Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista, 4, p.50-70, 2015b.

    7. Baptista, V. F. "Liberdade pelo trabalho ou trabalho pela liberdade? - O caso dos catadores de materiais recicláveis". Revista Brasileira de Políticas Públicas, 3, p.119-135, 2013.

    8. Demajorovic, J.; Caires, E.; Silva, L.; Silva, M. J. C. E. "Integrando empresas e cooperativas de catadores em fluxos reversos de resíduos sólidos pós-consumo: o caso Vira-Lata". Cadernos Ebape.Br (FGV), v. 12, p. 513-532, 2014.

    9. Kissler, L.; Heidemann, F. G. "Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade?". Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, 40, 3, Junho, 2006.

    10. Olson, M. A lógica da ação coletiva. São Paulo: Edusp, 2011.