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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo oct./dic. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400019 

    ARTES PLÁSTICAS

     

    Novas cores na história da arte brasileira: negros pintores

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

     

    São escassos os estudos sobre pintores negros brasileiros, especialmente aqueles que viveram e produziram no período pós-abolição. É como se ao negro não coubesse o lugar de sujeito criador, mas somente objeto de criação. Artistas negros não são parte do cânone. Ao lançar luz sobre a produção cultural negra no Brasil nos primeiros anos da República, o historiador Kleber de Oliveira Amancio busca reverter essa invisibilidade. Na pesquisa "Reflexões sobre a pintura de Arthur Timotheo da Costa", ele mostra como a sociedade em que esse pintor viveu queria se livrar de seu passado escravista, apagando a presença negra por meio da marginalização e perseguição dessa população. No fim do século XIX e início do XX, no contexto da pós-abolição da escravidão no Brasil, os negros tinham pouco acesso às carreiras artísticas.

    De acordo com Amancio, enquanto na realidade norte-americana uma classe média negra estabelecida se organizava em irmandades que ofereciam bolsas a jovens artistas negros, no Brasil, um negro promissor que não tivesse recursos financeiros era obrigado a buscar as instituições do governo se quisesse se aperfeiçoar. No Rio de Janeiro, a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) desempenhou importante papel nesse sentido. O estudo dos registros de alunos da escola permite afirmar que, sim, havia artistas negros. Arthur era um deles. "O caso de Timotheo da Costa é emblemático. Quase todos os manuais de história da arte que encontrei, ainda no início da pesquisa, definiam-no como o pintor que fazia a ponte entre o 'acadêmico' e o 'moderno' na arte brasileira. No entanto, mesmo sendo a ele atribuída tamanha importância não havia ainda um estudo de fôlego a respeito de sua obra", conta.

     

     

    RETRATOS DE PRETO

    Timotheo iniciou seus estudos na Casa da Moeda e, como outros artistas do período, acabou indo para a ENBA onde teve aulas com grandes pintores brasileiros, como Henrique Bernardelli (18581936) e Rodolfo Amoedo (18571941). Para Amancio, a viagem para Paris, em 1907, representa uma virada em sua breve carreira (o pintor morreu aos 40 anos). Na capital francesa ele morou no Quartier Latin onde conviveu com nomes como Picasso e Modigliani. Essa região concentra várias universidades, como a Sorbone, e os tradicionais liceus de Paris, Henri IV e Louis Le Grand. Também é famosa por ter sido frequentada por muitos artistas. "Nesse período a cidade passava por uma revolução artística importante. As vanguardas estavam vencendo a batalha contra as academias e tornando-se establishment", afirma.

    Esse ambiente teria forte influência na pintura de Timotheo desse período em diante. Em suas paisagens, retratos, algumas paisagens urbanas e trabalhos de decoração, encontram-se traços do impressionismo e pós-impressionismo. "No entanto, ele adota uma interpretação bastante própria dessas vanguardas, é irônico e ácido, mas com sutileza. Ao mesmo tempo em que é um pintor com bastante entrada nas elites, na medida em que passa a trabalhar como decorador e circular em meio a uma clientela endinheirada, sua obra é também uma crítica a essa incipiente burguesia", afirma Amancio.

    Para ele, esse pintor carioca apresenta um olhar bastante arguto sobre a sociedade em que vive. "Pessoas que certamente não pagariam por seus retratos são também suas personagens. Há aí um compromisso político manifesto. A forma como ele as pinta é bastante particular e é possível notar que combate estereótipos. Um exemplo é a obra Cabeça de negro, de 1906.

    Neste quadro vemos um negro de cútis bem escura pitando um cachimbo em plena luz do dia. "Para mim, é uma síntese do Brasil. Um Brasil clandestino e vergonhoso aos olhos das elites. Arthur Timotheo está contando a história de personagens que não se rendiam, que buscavam estabelecer suas vivências com as possibilidades que a situação histórica lhes oferecia, mesmo que essa fosse essencialmente adversa", analisa.

    Adversa porque, nos anos seguintes à promulgação da Lei Áurea, as formas de sociabilidade da população negra recém-liberta eram alvo de constante preocupação. Nesse sentido, Amancio cita a promulgação da repressão à vadiagem, discutida na Câmara concomitantemente à lei que libertaria os escravos. "O debate do texto da lei no parlamento e a prática policial rotineira em sua aplicação evidenciam seus intentos: controlar as vivências dos negros; regrar suas vidas, reduzir o espaço para que se tornassem, efetivamente, cidadãos", explica. Daí que Retrato de negro, se mostra extremamente provocativo. Nesse contexto de marginalização, "os negros buscavam negociar, enfrentando o racismo e todas as situações indigestas que ele podia ocasionar. Seja com a criação de associações, jornais 'negros', ou ainda pelas práticas cotidianas individuais que sabotavam sistematicamente os planos propostos pelas elites", pontua o pesquisador.

     

    MAIS DO QUE ILUSTRAÇÃO

    A negação desse passado negro se reflete na pequena quantidade de obras de Timotheo da Costa nos acervos de museus públicos brasileiros. De acordo com Amancio, a maioria das obras está com colecionadores particulares, "alguns dos quais, desconfio, sequer sabem que se trata de um pintor negro", diz ele. O Museu Afro-Brasil mantém a coleção pública mais significativa, com pouco mais de 30 obras.

    Há algumas na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Uma das razões dessa sub-representação deve-se também à ausência de estudos sobre a população negra após o fim da escravidão. "Os negros foram negligenciados pela então chamada historiografia da 'transição'. Durante muito tempo os historiadores ignoraram a presença negra no Brasil no período pós-abolição, optando por construir uma história do trabalho livre que contava apenas as desventuras dos imigrantes, sobretudo os europeus", acredita Amancio. "É como se num passe de mágica aqueles sujeitos que compunham grande parcela da população, milhões de desenraizados que para cá vieram forçadamente assim como seus descendentes, simplesmente deixassem se existir". Nas últimas décadas, no entanto, esse cenário começou a se modificar a partir do interesse de novos pesquisadores e da introdução de novas fontes, obras de arte, entre elas.

    Nesse sentido, a pesquisa sobre o pintor Arthur Timotheo da Silva mostra o potencial explicativo da produção artística, tanto no sentido de reafirmar a sub-representação da cultura negra nos cânones da arte brasileira, quanto como um instrumento de interpretação do Rio de Janeiro da Belle Epoque a partir do olhar desse pintor, um negro pintor entre brancos.