SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.68 número4 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo out./dez. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400020 

    DIVERSIDADE

     

    Os desafios da museologia de gênero

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     


    Clique para ampliar

     

    Uma longa parede ocupada por molduras de diversos tamanhos, mas sem as respectivas pinturas. Essa é a instalação Elementos de beleza: um jogo de chá nunca é apenas um jogo de chá da artista plástica Carla Zaccagnini, do acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Para além de um incômodo inicial que a obra pode suscitar, a instalação traz uma mensagem forte, ela emoldura várias ausências. Afinal, o que não vemos nos museus? Que lugar ocupam as mulheres, os negros, os gays nos espaços museológicos? Ao questionar as escolhas que determinam os acervos e exposições nos museus, a museologia de gênero busca ocupar esses espaços para reverter essas ausências em afirmação de identidades femininas, LGBT ou étnico-raciais.

    A discussão de questões de gênero nos projetos museológicos se insere em um movimento internacional iniciado na década de 1980 que passa a questionar a função social dos museus e que foi denominado de Nova Museologia ou Museologia Social. "É nesse campo fértil, e hoje em expansão, que se assenta a possibilidade de uma museologia de gênero, a partir de uma mirada feminista, cujas discussões inspiram um olhar crítico à forma como os museus, enquanto dispositivos de poder, acabam por perpetuar posturas sexistas e machistas", afirma Camila Wichers, museóloga e arqueóloga da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG). A partir da perspectiva da museologia de gênero é possível considerar outras identidades, além da masculina, como eixos estruturadores dos patrimônios culturais e das coleções museológicas.

     

    ESTEREÓTIPOS

    "Como arqueóloga, me incomodava o fato de que as mulheres indígenas que produziram as vasilhas cerâmicas que eu analisava ficassem invisibilizadas nas narrativas construídas pela arqueologia. A menção recorrente ao 'homem pré-histórico' também não me agradava. Depois, já em diálogo com a museologia social, observei que as representações nos museus reforçavam as narrativas arqueológicas androcêntricas", conta Camila. Segundo ela, nos museus históricos, por exemplo, os homens são frequentemente retratados nos postos de controle político. No campo da arqueologia, as narrativas tendem a reproduzir no passado (as vezes muito recuado) os estereótipos de gênero do presente, perpetuando sexismos e assimetrias.

    "Dessa forma, machos/homens são fortes, agressivos e dominantes. Fêmeas/mulheres são apresentadas como fracas, passivas e dependentes. Cabe à museologia desestabilizar visões sobre o passado e presente, produzindo contra-narrativas sobre o gênero e cartografias de resistência nos espaços culturais e museológicos e também fora deles", afirma.

    Novas narrativas museológicas permitem encontrar mulheres como chefes de família, garimpeiras, parteiras, benzedeiras, cozinheiras, quitandeiras, lavadeiras, professoras, entre outros ofícios que desafiam o estereótipo do feminino confinado no universo doméstico e a conduta passiva e submissa. Essa foi a proposta da exposição Mulheres no sertão goiano: violências, educação, ofícios e direitos, em cartaz ao longo de julho deste ano no Museu de Antropologia da UFV. A mostra foi organizada por alunos do curso de museologia da universidade.

    "Nosso objetivo era provocar uma reflexão sobre o lugar da mulher no sertão de Goiás, construindo uma reflexão profunda sobre cenários de opressão e de libertação feminina na sociedade goiana", afirma Tony Boita, professor do curso de museologia da UFV, responsável pela exposição.

    Outro tema abordado nessa exposição foi o ofício geracional. Mantido por mulheres urbanas, indígenas e campesinas, foram e são importantes instrumentos que fortalecem a cultura e economia de muitos municípios, grupos e comunidades, mas que frequentemente são invisíveis para o poder público e na história do trabalho. As bonecas Karajá, por exemplo, confeccionadas por ceramistas Karajá dos estados de Goiás, Tocantins e Pará, foram registradas como patrimônio imaterial, em 2012, nos livros de registro de saberes e expressões do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A produção de tecidos de modo artesanal, realizado por fiandeiras no interior do sertão goiano, compreendem saberes que fortalecem laços e garantem a sustentabilidade e a autonomia da mulher de Goiás. De acordo com Boita, ao ocuparem os espaços museais, essas práticas dão visibilidade às mulheres por trás delas. "O fato de Goiânia ser a quinta capital mais violenta para as mulheres no Brasil aponta a urgente necessidade de se mostrar a realidade das mulheres nesse território", diz.

     

    MEMÓRIA LGBT

    Movimentos sociais podem ser molas propulsoras de mudanças na realidade dos museus na medida em que se dê voz a seus atores. "Não falo a partir do lugar da mulher indígena ou negra. Sou uma profissional de museus, posso e devo dialogar com os movimentos sociais, mas não devo ser protagonista de ações museológicas acerca dessas pessoas", comenta a pesquisadora da UFG. Isso significa que a comunidade deve estar envolvida na preservação de suas memórias e nos projetos para sua manutenção.

    Se reconhecer nos museus ainda é um desafio para a comunidade LGBT. "É como se não existíssemos", lamenta o museólogo da UFG, Alex de Oliveira Fernandes. "Onde está a minha comunidade LGBT (lésbicas, gays, travestis, transexuais, transgêneros) dentro dos museus? Cadê a língua pajubá, a vestimenta das drag queens? Cadê o homem goiano gay, a feminista lésbica?", questiona.

     

     

    Buscando consolidar um espaço de memória LGBT em Goiânia, Oliveira idealizou um museu de percurso, traçando os caminhos já percorridos pelo público LGBT, de forma que se possa identificar e valorizar esse patrimônio. São lugares espalhados pelo centro da cidade onde essas pessoas se sentem acolhidas e protegidas, transformando-se, assim, em espaços de afirmação de identidade. O processo de mapeamento foi feito por meio de aplicação de questionários, para caracterizar a relação dos frequentadores com os locais identificados, e de documentação fotográfica. Depois foram desenvolvidos um mapa, identificando os pontos de cultura LGBT, catálogos informativos e cartazes de identificação. Segundo Oliveira, mais do que um extenso conjunto de espaços físicos, o trabalho de mapeamento mostrou um importante patrimônio imaterial, carregado de memórias do universo LGBT.

    O principal objetivo do museu de percurso LGBT é solidificar os laços de identificação entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros por meio de um circuito significativo para essa comunidade. "A cultura LGBT continua marginalizada e os homofóbicos fazem dessa invisibilidade uma arma. A valorização da nossa memória é um meio de confrontar a homofobia e diminuir o preconceito", acredita Oliveira.

    Para Camila, o museu do percurso é um espaço conceitual e afetivo da comunidade LGBT. "Entretanto, há que se pontuar que esse trabalho se debruçou sobre espaços de homens gays. Ou seja, há toda uma discussão sobre a representatividade de outros segmentos dessa comunidade", pondera. "O museu acontece quando os membros da comunidade ou pessoas solidárias ao movimento estão juntos, dialogando, percorrendo os lugares de memória da comunidade", conclui. Esse é o meio para dar sentido aos museus. Todos devem se reconhecer neles, sob pena de restarem apenas molduras vazias.