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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo out./dez. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400021 

    ENTREVISTA

     

    A internet e os museus imaginários

     

     

    Erik Nardini Medina

     

     

    Entre 1935 e 1947, ao analisar as consequências da intersecção entre fotografia, técnicas de impressão e as viagens internacionais, o escritor francês André Malraux apontou para a eliminação dos enquadramentos e dos limites físicos que o museu tradicional impunha como lugar primordial para sua divulgação. Nascia aí o conceito de museu imaginário que, segundo Malraux, tem como precursor os livros de arte capazes, já no final do século XIX, de disseminar imagens em uma escala nunca vista até então. É a partir do conceito de museu imaginário que o escritor, fotógrafo e curador Pedro Karp Vasquez escreve "O caderno dos lamentos e das recriminações", ficção que relata os dramas de uma jovem apaixonada. No texto, publicado na Revista Studium (v. 37, 2016), Vasquez cria e expõe uma mostra particular com 14 fotografias coletadas na internet. A ideia é mostrar que, como previu Malraux, todos nós somos, ou podemos ser, curadores de nossos próprios museus.

     

     

    Vasquez é autor de 26 livros, sendo que alguns se tornaram obras de referência como Dom Pedro II e a fotografia no Brasil (1985); Fotógrafos alemães no Brasil do século XIX (2000) e O Brasil na fotografia oitocentista(2003). É formado em cinema pela Université de la Sorbonne e mestre em ciência da arte pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi responsável pela criação do Instituto Nacional da Fotografia, da Funarte, assim como do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas Tecnologias, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Atualmente é editor na Editora Rocco.

    Nesta entrevista para a revista Ciência e Cultura, Vasquez mostra como a internet se tornou fonte para se colecionar imagens e, ao mesmo tempo, um veículo de divulgação, possibilitando a cada indivíduo divulgar seu museu imaginário particular. Um exemplo é a página "Theories of the deep understanding of things" onde uma pequena equipe de anônimos seleciona obras de arte e fotografias e publica em álbuns. As novas formas de divulgação colocam em cheque as fronteiras do museu tradicional e deixam a pergunta: estamos preparados para romper as amarras do que pode ou não pode acontecer em um museu? Parece que sim. Confira a íntegra da entrevista com o fotógrafo.

    Ciência e Cultura: De onde veio a ideia da narrativa proposta em "O caderno dos lamentos e das recriminações"?

    Pedro Vasquez: O que eu quis fazer no artigo foi uma obra de ficção baseada no conceito de museu imaginário, de Malraux. É muito interessante porque ele precede todo mundo nesse insight. Existe uma coisa estranha, porém muito positiva, que são esses sites que disponibilizam imagens de graça, em alta resolução e de autoria anônima. Esse modelo autoriza o uso de imagens de todas as partes do mundo, o que possibilita a qualquer indivíduo criar seu próprio museu imaginário, mesmo ignorando o conceito de Malraux, já que ele não é tão conhecido nos tempos atuais e todo esse pessoal da internet é muito novo.

    C&C: Que insight foi esse?

    Pedro Vasquez: O cruzamento da fotografia, com o aprimoramento das técnicas de impressão e com a intensificação das viagens internacionais fazem surgir os primeiros livros de fotografia e de arte, ainda no final da primeira metade do século XIX. Malraux constata que eles eram ligados, sobretudo, à arqueologia e egiptologia. Daí que traziam imagens da Terra Santa e de lugares longínquos como a China e o Japão. Isso fez com que, pela primeira vez, a pessoa não precisasse ir ao sítio arqueológico ou até o museu para ter contato com essas imagens. A fotografia aproximava as pessoas de lugares e coisas muito distantes como as pirâmides do Egito, as ruínas gregas e a muralha da China. Esse é o pano de fundo de uma ideia amplamente disseminada que via a fotografia como uma janela para o mundo, um conceito que ainda domina a revista National Geographic e o Discovery Channel, veículos que enviam fotógrafos e cinegrafistas para os locais mais longínquos e inacessíveis para que o leitor/expectador posso conhecer tais cenários, de forma tranquila e segura, na sua casa.

    C&C: Como a disseminação de imagens possibilita essa espécie de curadoria particular?

    Pedro Vasquez: Malraux diz que, a partir da reprodução das obras de arte, todo mundo poderia criar o seu próprio museu. Ele não usa o termo curador, porque essa expressão até hoje não é muito usada na França. Eventualmente é usado pelos mais modernos, os franceses preferem o termo connoisseur de exposition. Então, apesar dele não usar o termo curador, quer dizer que, sim, qualquer um pode ser curador do seu próprio museu.

    C&C: O colecionismo é uma prática antiga. Pode dar exemplos de objetos que as pessoas colecionavam antes de desembarcarmos na era digital?

    Pedro Vasquez: Eu me lembro que, no meu tempo de escola, na década de 1960, existiam pessoas que faziam coleções de cartões postais e que se correspondiam com outras apenas para trocar informações sobre essas coleções, estabelecendo uma espécie de "rede de relacionamento". Era o embrião do que chamamos hoje de redes sociais. Da mesma forma podemos considerar os salões internacionais organizados antigamente pelos fotoclubes como precursores dessas redes, já que eles eram agremiações independentes e não instituições oficiais, ligadas a qualquer instância governamental. Então, o cidadão de Paris mandava imagens da capital da França para alguém em Tóquio e vice-versa. E, nessa troca de imagens, as pessoas colocavam em prática a teoria de Malraux: em muitos casos elas não chegaram a ir a esses países, mas tinham uma coleção de cartões postais com fotos desses lugares. É uma coisa de fases: revistas em quadrinhos, selos, ou as estampas do sabonete Eucalol, são alguns exemplos que podemos ver hoje sendo vendidos ou trocados em lugares como a Praça XV, no Rio de Janeiro, ou na feira do vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp), em São Paulo. É também comum colecionar objetos em desuso, por exemplo, caixinhas de fósforo, hoje substituídas por isqueiros descartáveis. No auge do tabagismo as caixinhas de papelão com fósforos fininhos e achatados eram um brinde que você encontrava em aeroporto, restaurante, motel. Eu me lembro de uma série da CBF que tinha caixinhas com craques da seleção brasileira. Foram ondas de colecionismo.

    C&C: O que vemos hoje na internet, como as páginas de arte e memes no Facebook, Tumblr, Instagram, Pinterest, empenhados na popularização de determinados estilos artísticos, são museus imaginários de seus autores?

    Pedro Vasquez: Sim, acredito que todos esses mecanismos, sobretudo o Pinterest (que tem uma base de 176 milhões de usuários ativos e que se apresenta como "o catálogo mundial de ideias"), sejam novas versões de museus imaginários no sentido antevisto por Malraux. Com a diferença que ele, vivendo na era pré-digital, jamais poderia antecipar a paradoxal concretude de um museu virtual, algo que não existe de modo palpável e restrito a um espaço específico, porém tem existência irrefutável e onipresente na internet. Existem, hoje, diversos museus virtuais - tanto institucionais quanto pessoais, devidos ao esforço de um único indivíduo - e todos eles são museus imaginários porque não são de "pedra e cal", moram na "nuvem". E chegam aos mais longínquos recantos, permitindo que um número assombroso de pessoas faça a "viagem ao redor de seu quarto", preconizada pelo escritor Xavier de Maistre (1763-1852), graças ao sistema de arqueologia imaginária e simbólica instaurada por Malraux. E o que você faz no Pinterest (e em outros sites)? Você se inscreve gratuitamente e tem acesso a diversos grupos de imagens, de pessoas que colecionam imagens sobre história da fotografia, animais selvagens, outros sobre cidades históricas, e você pode se apropriar dessas coleções virtuais, ou de parte delas, e acrescentar à sua coleção pessoal. Isso se tornou a concretização do museu imaginário do Malraux.

     

     

    C&C: Você já participou de exposições virtuais. Como foram essas experiências?

    Pedro Vasquez: Eu participei de exposições virtuais com meu próprio trabalho fotográfico. Em 2005 expus minhas fotografias no, então, Centro Cultural Telemar, hoje Oi Futuro, numa mostra intitulada "Espiral", composta por 80 fotografias que focalizavam o caminho de um indivíduo em busca de própria essência. E isso me lembra uma coisa engraçada. Como as exposições virtuais ainda eram uma coisa incipiente, o museu enviou um cartão postal pelos correios, convidando algumas pessoas. Essa exposição teve uma abertura, coquetel, as obras foram projetadas numa tela enorme, as pessoas se encontraram. Tudo como se fosse uma exposição convencional. Mas, depois, o acervo ficou disponível apenas na internet. Muitas pessoas foram até lá (depois da abertura) e ficavam claramente decepcionadas por não encontrarem a exposição mencionada no convite. Fiz uma outra exposição hospedada no site de Lucia Guanaes (fotógrafa brasileira radicada na França) que convidava pessoas cujo trabalho ela admirava. Foi em 2006, a mostra chamava-se "Aller-Retour" e focalizava meu roteiro cotidiano de ida e vinda do trabalho, entre a cidade de Niterói e o centro do Rio. Ou seja, era uma mostra hospedada em um site particular, não tinha um viés institucional, do ponto de vista de um museu estar sediando uma exposição virtual.

    C&C: Essas exposições virtuais geram mais engajamento do que exposições tradicionais? Como vê essa mudança?

    Pedro Vasquez: Sem dúvida alguma, mesmo porque alguns desses comentários são mais extensos e consistentes - tanto favorável quanto desfavoravelmente - do que as breves palavras de incentivo que se costuma encontrar nos livros de assinaturas de galerias e museus. Sem esquecer que os comentários postados, normalmente, podem ser lidos por todos, o que por vezes gera debates acalorados que se desdobram e se adensam, abrindo novas e proveitosas perspectivas para todos os envolvidos. Isso foi algo que me impressionou muito. Muitas pessoas entraram em contato via site ou diretamente por e-mail para comentar a exposição. Por outro lado, hoje em dia você faz uma exposição física em um centro cultural e às vezes a visitação é pequena. Por exemplo, fui na exposição do fotógrafo Alair Gomes (1921-1992), na Biblioteca Nacional, em duas ocasiões e vi apenas doze visitantes incluindo eu. E isso em uma exposição na Biblioteca Nacional, de altíssimo nível. E Alair Gomes foi exposto na Fundação Cartier, na França, com sucesso absoluto. É preciso mencionar que foi no período dos Jogos Olímpicos. Eu acho que hoje em dia é muito mais fácil ter um retorno de algo feito na internet do que em algo em que seja preciso se deslocar. E mesmo que uma exposição tenha uma boa visitação você não sabe o que as pessoas pensam, porque poucos se manifestam.

    C&C: Como você vê a questão da experiência em uma exposição na internet?

    Pedro Vasquez: É interessante observar que essas exposições virtuais criam uma nova maneira de se relacionar com a arte justamente porque existem diversas limitações, tudo fica reduzido ao formato da tela do seu computador. Desde uma pintura de 3mx5m até uma fotografia de 30cmx40cm. Isso nivela para baixo. Não é possível ter a sensação de textura e profundidade que a obra ao vivo permite. É uma relação totalmente diferente. Mas isso é normal porque qualquer empreendimento de vulgarização (no sentido de popularização, facilidade de acesso) sempre é uma aproximação. Nunca será como ver ao vivo.

    C&C: Walter Benjamin, crítico da reprodutibilidade técnica, dizia que a "aura" se perde quando uma obra é observada fora do ambiente do museu. Em sua opinião, como ele se posicionaria nessa discussão sobre exposições virtuais?

    Pedro Vasquez: A visão de Benjamin já está datada. Ele morreu no período da Segunda Guerra Mundial, em 1940 e não poderia imaginar, como ninguém poderia, o que se tornaria essa reprodutibilidade. Ela se tornou infinita, ilimitada e com vários suportes, colocando outros problemas. Teve um episódio recente sobre a tela Abaporu, de Tarsila do Amaral (1928), em exposição no Museu de Arte do Rio de Janeiro por ocasião dos Jogos Olímpicos. Em uma reportagem sobre a vinda do quadro para o Brasil, eu percebi uma espécie de "patologia do selfie" em que a pessoa está vendo as coisas de costas. Porque, a partir do momento em que ela tira uma selfie na frente do Abaporu ela não está preocupada em olhar a tela, mas sim em mostrar para os outros que ela estava lá. Outro episódio foi o comentário que Mick Jagger fez após o último concerto dos Rolling Stones em São Paulo, em fevereiro deste ano, sobre como é esquisito as pessoas assistirem ao show pela tela do celular. Eu acho que Walter Benjamin ficaria doente com isso, porque a pessoa não está vendo mais nada, mas praticando um ritual que envolve a imagem técnica.

    C&C: Quando a pessoa saca o celular para praticar o "ritual do estar" ela está de alguma forma montando o seu próprio acervo de museu imaginário ou isso é outra coisa?

    Pedro Vasquez: Eu chamaria isso de autobiografia ilustrada, o que é diferente. Isso entra no, já abandonado, conceito de fotoblog. O princípio de um fotoblog é o desejo: "bom, vou fazer um blog e contar toda minha vida". Daí a pessoa fazia dez postagens e cansava porque não tinha mais o que contar. Depois as publicações maiores foram sendo substituídas por legendas: "Estive em Veneza, amei! " Mas isso também se perdeu, simplesmente porque as pessoas não têm o que dizer. Então, o conceito é diferente.

    C&C: O que surgiu no lugar dos fotoblogs?

    Pedro Vasquez: As pessoas abandonaram esse formato. Alguns ainda estão no ar numa espécie de "cyber cemitério". Em seu lugar surgiram ferramentas como o Instagram e Facebook, onde não existe o compromisso de fazer postagens regulares. Existe um caráter de descontração. Você pode postar os famosos memes, fazer uma brincadeira, ou você pode fazer um uso profissional para divulgar eventos, trabalhos. Eventualmente são publicadas fotos do filho e alguém vai reagir dizendo que "amou", "que achou lindo". São banalidades importantes. Todo mundo quer que os outros digam que seu filho é lindo, assim como todo mundo quer ouvir as pessoas dizendo "eu te amo", mesmo que isso seja banal. Umberto Eco, morto este ano, foi mal compreendido quando escreveu sobre a figura do imbecile (imbecil), indicando que qualquer um poderia ir às redes sociais e falar as maiores besteiras e isso era um problema. E realmente é um problema que se expressa, por exemplo, quando vemos ataques racistas na rede.