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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100004 

    NOTÍCIAS DO BRASIL
    BIOLOGIA

     

    Medicamentos da Amazônia azul

     

     

    Patricia Piacentini

     

     

    Os oceanos cobrem mais de 70% do nosso planeta. O estudo de tamanha biodiversidade tem o potencial de gerar importantes avanços na área de farmacologia. Entretanto, os recursos naturais marinhos só passaram a ser objeto de pesquisa nas últimas décadas, com o surgimento das técnicas de mergulho autônomo e de robôs que podem atingir grandes profundidades, viabilizando a coleta de organismos no fundo do mar. Assim, os oceanos passaram a ser investigados de forma mais sistemática pelos grupos que estudam produtos naturais e seu potencial terapêutico. "No começo deste século, a descoberta de compostos de invertebrados que vivem no oceano em microrganismos simbiontes ou isolados em sedimentos do assoalho marinho, a possibilidade de cultivo desses microrganismos e o reconhecimento de uma diversidade microbiana inestimável associada ao ambiente marinho surgem como uma resposta a uma demanda crescente por inovação terapêutica, principalmente para o câncer e doenças infecciosas", salienta Leticia Veras Costa Lotufo, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB/USP). Trata-se de um potencial comparável à diversidade biológica da floresta amazônica, daí o termo "Amazônia azul", para se referir à potencialidade do oceano para o desenvolvimento de novos fármacos.

     

     

    "É uma fonte de modelos moleculares incríveis para serem testados com vistas à identificação de protótipos de fármacos. O conhecimento sobre o mundo molecular presente nos oceanos é importante para o entendimento funcional do próprio ecossistema e, consequentemente, para se buscar bioprodutos de valor agregado", define Vanderlan da Silva Bolzani, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (IQ/Unesp).

     

    BELOS E VENENOSOS

    Foi especialmente a partir da década de 1950 que cresceu o interesse de pesquisadores brasileiros pela complexa química dos organismos marinhos. O potencial farmacológico foi uma consequência natural dessas investigações. "Logo de início foram descobertas substâncias de uma esponja do Caribe, Cryptotethya crypta, que apresentaram potente atividade antitumoral e antiviral. Essas pesquisas resultaram no desenvolvimento do ARA-A e o ARA-C. O primeiro é um antiviral utilizado para tratar infecções causadas pelo vírus da herpes, e que posteriormente passou a ser utilizado para tratar pacientes infectados com o vírus HIV. Já o ARA-C é usado no tratamento da leucemia", explica Roberto Gomes de Souza Berlinck, professor do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (IQSC/USP).

    Outro exemplo é o molusco Conus magnus, uma concha do mar das Filipinas, que deu origem ao medicamento chamado Prialt ou Ziconotida — um peptídeo sintético inspirado no produto produzido naturalmente pelo molusco —, aprovado em 2005 pela agência norte-americana que regulamenta alimentos e medicamentos (FDA). Segundo Bolzani, o desenvolvimento do medicamento tem uma história interessante: tudo começou a partir da curiosidade de um menino sobre os venenos dentro de conchas que ele, atraído pela beleza, coletava nas Filipinas. Já adulto e professor de biologia na Universidade de Utah, nos Estados Unidos, Baldomero Olivera analisou as substâncias tóxicas desses moluscos. "O resultado foi a criação de um analgésico mil vezes mais potente que a morfina e com a vantagem de não causar dependência", conta a pesquisadora da Unesp. Para estimular projetos de pesquisa com vistas ao aproveitamento sustentável do potencial biotecnológico da biodiversidade marinha existente nos ecossistemas costeiros e nas áreas marítimas sob jurisdição brasileira, em 2007, foi lançado o "Programa de levantamento e avaliação do potencial biotecnológico da biodiversidade marinha" (Biomar), coordenado pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM). Para Lotufo, o programa representa um marco nos estudos da biodiversidade marinha no Brasil. Posteriormente, em 2013, o Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico (CNPq) lançou chamadas específicas visando à estruturação de redes de pesquisa no Brasil nessa área. Com esses esforços, o país registrou um aumento da produção científica, estruturação de redes de pesquisa, formação de recursos humanos e depósitos de patentes. "Temos atualmente sete compostos de origem marinha em uso clínico e 25 em fase de testes em seres humanos", conta Lotufo.

    Entretanto, segundo a pesquisadora, o maior gargalo para evolução dos estudos com as substâncias de origem marinha tem sido o suprimento de quantidades adequadas para os testes em humanos, porque o fator limitante da utilização na terapêutica está na toxicidade associada ao uso", explica.

    "O Brasil tem uma das leis mais restritivas de acesso ao patrimônio genético, o que talvez seja o nosso principal entrave no desenvolvimento de produtos e serviços a partir da nossa biodiversidade", lamenta.

     

    NA COSTA BRASILEIRA

    A pesquisadora desenvolve estudos sobre o potencial biotecnológico de bactérias do litoral brasileiro. "Nosso foco é a microbiota associada a invertebrados produtores de substâncias bioativas e, paralelamente, estamos estreando os estudos com os microrganismos associados ao sedimento marinho", conta. "O estudo químico e farmacológico levou ao isolamento de moléculas com potencial anticâncer que se encontram em diferentes fases do processo de caracterização de seu mecanismo de ação. Mais recentemente, novas estratégias de prospecção foram incorporadas, incluindo estudos para maximizar o isolamento de substâncias bioativas inéditas, além de possibilitar a compreensão da complexa interação microbioma-hospedeiro e seu papel no funcionamento dos ecossistemas", diz Lotufo. As pesquisas foram apresentadas na 68ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que aconteceu entre os dias 03 e 09 de julho de 2016, em Porto Seguro (BA).

    O grupo do IQSC/USP, do qual Berlinck faz parte, se dedica à descoberta de substâncias presentes em animais, como esponjas e moluscos, e em microrganismos (fungos e bactérias), que possam ser úteis para o desenvolvimento de novos medicamentos. Já se sabe que algumas delas têm a capacidade de matar os parasitas que causam a leishmaniose e a doença de Chagas. O grupo também estuda os processos pelos quais essas substâncias são formadas pelos organismos de origem (biossíntese), principalmente em bactérias e fungos marinhos. "Estudamos a maneira pela qual essas substâncias são 'construídas' dentro das células desses microrganismos, através de regulação gênica e várias reações controladas por enzimas. Muitos desses processos de biossíntese envolvem a participação de enzimas bastante peculiares, que podem ser produzidas em maior escala e utilizadas em processos biotecnológicos. A partir desse conhecimento, é possível 'imitar' esses sistemas para produzir essas enzimas em escala industrial e utilizá-las para diferentes finalidades tanto na indústria farmacêutica como na de alimentos, cosméticos e agroquímica", destaca Berlinck.

     

    SUSTENTABILIDADE

    Uma questão importante sobre as pesquisas com recursos naturais marinhos é que elas sejam realizadas de forma sustentável. "Não podemos incorrer em erros antigos, em que a obtenção de produtos era pautada numa prática exploratória irresponsável sem preocupação com o impacto ambiental dessas atividades. Não conhecemos adequadamente nossa diversidade, mas reconhecemos seu valor inestimável e, portanto, é fundamental traçar programas que envolvam equipes multidisciplinares para o contínuo esforço do conhecimento da nossa biodiversidade, incluindo seu potencial uso como alimento ou fonte de produtos biotecnológicos", explica Lotufo.