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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100005 

    NOTÍCIAS DO BRASIL
    DIREITOS HUMANOS

     

    Novas regras para adoção: avanço ou retrocesso?

     

     

    Patricia Piacentini

     

     

     

    Segundo dados do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), hoje no Brasil há mais de 46 mil crianças e adolescentes em instituições de acolhimento. Desse número, de acordo com o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), apenas sete mil estão aptas para adoção. Por outro lado, o mesmo cadastro mostra que há mais de 37 mil pessoas interessadas em adotar. Esses números expõem o descompasso entre perfis de pretendentes e os das crianças e adolescentes cadastrados. Por exemplo, 55% dos pretendentes preferem crianças de zero a três anos de idade, de acordo com o CNA.

    Considerando a necessidade de minimizar esse desencontro e acelerar os processos de adoção no Brasil, o Ministério da Justiça e Cidadania propôs um conjunto de medidas para alterar a legislação brasileira para adoção de crianças e adolescentes.

    As alterações colocadas em debate pelo ministério estão voltadas, sobretudo, para a definição de prazos para os procedimentos. No caso da entrega voluntária, a proposta da pasta é que a mãe biológica tenha até dois meses para reclamar a guarda da criança ou indicar um parente para ser o guardião caso se arrependa da decisão. Depois desse período, a criança é inserida no cadastro nacional. Além disso, após um mês vivendo em abrigos, os bebês recém-nascidos e crianças sem certidão de nascimento também são cadastradas para adoção. Em entrevista para o Portal Brasil, em outubro de 2016, logo após a publicação do anteprojeto, Claudia Vidigal, secretária nacional da promoção dos direitos da criança e do adolescente, afirmou que o principal objetivo de estabelecer esses prazos é assegurar que as crianças não fiquem eternamente em um período de adoção.

    Outra sugestão é que o estágio de convivência antes da adoção deve ser de até 90 dias. Já para a conclusão de todo o processo de adoção, o prazo pode chegar até um ano. No caso da adoção internacional, ainda não há prazos previstos para a conclusão do processo. Contudo, as crianças que ficarem mais de um ano no cadastro nacional sem serem adotadas ficarão disponíveis para os pretendentes a pais que vivem no exterior.

    De acordo com o especialista em psicologia jurídica do Tribunal de Justiça de São Paulo, Carlos Nakamura, flexibilizar os procedimentos da adoção representa um retrocesso que não aumentará o número de adoções para a grande maioria das crianças atualmente em abrigos e poderá trazer mais riscos ao êxito das adoções. "Reduzir prazos processuais e o estágio de convivência, no contexto da adoção, faz menosprezar a realidade psíquica de crianças e adolescentes abrigados, já que seu tempo subjetivo nem sempre acompanha o tempo do processo judicial. Fatalmente, estreitar esse tempo conduzirá a mais riscos na construção dos novos vínculos adotivos, afirma Nakamura.

     

    O IDEAL E O REAL

    A proposta do governo federal limita o estágio de convivência antes da adoção a noventa dias, no máximo. "A redução do prazo ignora o conhecimento secular da clínica psicanalítica do luto, por exemplo, sobre a forma peculiar como o psiquismo humano se reposiciona, após muito esforço, diante da perda de algo amado", aponta. "As crianças vitimizadas se ressentem de violações sofridas, mas também de perder as relações com seus pais", diz ele.

    Outra mudança importante que o pacote de medidas prevê é a oficialização das chamadas adoções prontas, nas quais as crianças são inseridas em família substituta de maneira informal, por meios particulares e, não raro, inidôneos. Para Nakamura, o projeto viabiliza adoções fora da "fila" de pretendentes habilitados, negligenciando a realidade de profunda desigualdade social de nosso país, em que eventualmente a entrega de filhos na extrema pobreza possa ser um meio de sobrevivência. "Privatizando a colocação de crianças, o anteprojeto oportuniza possível contradição à própria lei em vigor, que tipifica como crime tal prática, conforme seu art. 238 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca, Lei 8069/90)", acredita o psicólogo.

    A demora nos processos de adoção faz com que as crianças permaneçam em instituições de acolhimento e, em alguma medida, afastem-se, a cada ano, do perfil indicado pelos interessados em adotar.

    Na opinião de Nakamura, os procedimentos do judiciário destinam-se a atender a interesses das crianças e adolescentes. "Afinal, se o Estado não foi capaz de promover e fortalecer as possibilidades de a criança ou adolescente permanecer em sua família, que ao menos seja capaz de dispor-lhes família substituta à altura de suas necessidades e direitos. Retirar do judiciário esse papel é, no mínimo, uma temeridade", finaliza.

    No final de 2016, a Secretaria Nacional da Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente submeteu o anteprojeto à consulta pública para que a população e entidades interessadas no tema opinassem sobre as propostas. Os próximos passos são avaliar as sugestões e, se necessário, adequar o texto para em seguida enviar a proposta para votação na Câmara dos Deputados.