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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100013 

    ARTIGOS
    GÊNERO

     

    Problemas de gênero na e para a democracia

     

     

    Carla Rodrigues

    Filósofa, feminista, professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É coordenadora do laboratório de pesquisa "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" e autora, entre outros, de Duas palavras para o feminino (NAU Editora/Faperj, 2013). Email: cr@carlarodrigues.com.br

     

     

    Nenhuma quantidade de vontade ou riqueza pode eliminar as possibilidades de doença ou de acidente de um corpo vivo, embora ambas possam ser mobilizadas a serviço dessa ilusão. Esses riscos estão embutidos na própria concepção da vida corporal considerada finita e precária, o que implica que o corpo está sempre à mercê de formas de sociabilidade e de ambientes que limitam sua autonomia individual.
    Judith Butler (1)

    Problema, argumenta a filósofa Judith Butler no prefácio de Problemas de gênero, talvez seja um termo que não precise ter um valor tão negativo. Ela lembra que no seu "primeiro discernimento crítico da artimanha sutil do poder" percebeu que a lei sempre nos ameaça com problemas justamente para impedir que tenhamos problemas (2). Ainda que por caminhos diferentes dos percorridos por Butler, descobri muito cedo que é impossível evitar problemas, como é de todo inútil ou mesmo indesejável. A rebeldia nos ensina que é melhor ter problemas por tê-los criados do que ter problemas por não mais poder criá-los. Nós, mulheres, sempre criamos problemas para as diferentes formas de governo. Foi assim que, na tragédia de Sófocles, Antígona teve problemas por enfrentar o poder soberano de Creonte, atitude lida por Hegel como indicação da necessária passagem da lei divina e familiar para a lei pública e estatal. No limiar da modernidade, na França revolucionária do século XVIII, Olympes de Gouges criou muitos problemas aos formuladores da paradoxal "Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos Cidadãos", enunciado explícito da exclusão das mulheres do âmbito da universalidade. Dois séculos depois, coube à filósofa francesa marxista Françoise Collin criar problemas ao afirmar que nenhum país ocidental poderia se declarar uma democracia até que as mulheres também tivessem conquistado o direito de votar, apontando o que seria a primeira grande crise de representação da democracia.

    Este artigo parte do diagnóstico do filósofo franco-argelino Jacques Rancière, para quem democracia é o

    (...) poder de qualquer um, a indiferença das capacidades para ocupar as posições de governante e de governado. O governo político tem assim um fundamento. Mas esse fundamento o transforma igualmente em uma contradição: a política é o fundamento do poder de governar em sua ausência de fundamento. (...) A democracia não é nem uma sociedade a governar nem um governo da sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo governo deve, em última análise, descobrir-se fundamentado (3).

    Nessa contradição apontada pelo autor, as marcações de gênero, raça e classe - mulheres, negras, homossexuais, pessoas trans, moradores de periferias - produzem as pessoas ingovernáveis sobre as quais o poder do Estado se impõe a fim de fundamentar o apagamento do que considero o ponto mais importante do diagnóstico de Rancière: democracia é uma forma de governo baseada na indistinção entre quem pode ser governado e quem pode governar. Digo o ponto mais importante a fim de segui-lo no argumento de que as democracias representativas são hoje, na sua grande maioria, oligarquias sustentadas sobre a ideia de que há uma diferença clara e distinta entre quem pode governar - os donos do saber e do dinheiro - e quem precisa ser governado, aqueles cujas marcações os colocam necessariamente em posição de subalternidade. É desta diferença, a rigor, inexistente no fundamento democrático que (mal) sobrevivem as democracias, mesmo aquelas que, para Rancière, estão buscando formas de aprimoramento em seus mais diversos adjetivos: deliberativa, agonística, porvir, radical, direta.

    Odeia a democracia, segundo Rancière, todo aquele que pretende mantê-la restrita a uma forma de governo apropriada pelas oligarquias em nome da promoção de um bem comum para o povo. Amar a democracia é defendê-la como forma de organização social capaz de promover direitos a todos aqueles que nasceram sem nenhum título particular para exercer o poder, sem riqueza ou conhecimento. Escrito para influenciar o debate político francês - há pelo menos 10 anos marcado pelo avanço das forças de extrema-direita -, é um diagnóstico duro e cada vez mais atual de como a democracia está posta a serviço de manter o poder na mão de poucos, se valendo de argumentos técnicos (a capacidade de gestão), políticos (a necessidade de alternância no poder) e econômicos (contas públicas sob controle).

    Que historicamente o privilégio do poder sempre foi masculino, sabemos. Na política como na economia, na cultura como na sociedade, a prevalência do masculino sobre o feminino tem - ainda que não exclusivamente - origem na separação entre público e privado, que vai pelo menos desde Antígona até a Revolução Francesa, e chega até os nossos dias sob o que Rancière chama de confinamento à esfera privada.

    Foi o que aconteceu, por exemplo, com os trabalhadores, durante muito tempo considerados apenas no âmbito doméstico. Foi também o que aconteceu tradicionalmente com as mulheres, consideradas dependentes de seus pais ou maridos e restritas ao campo do casamento ou da família. Mas essas lutas não confirmam os "limites" da democracia. Elas confirmam, ao contrário, as capacidades de sua extensão. Essas formas polêmicas de extensão da democracia transbordam ao que se reduz, frequentemente, nas lutas das minorias defensoras de suas identidades. Trata-se antes de sair da condição de "minoria" na qual está a grande maioria dos humanos, confinados numa condição subalterna (4).

    Para falar da condição feminina restrita ao âmbito privado e subalterna não bastaria recuperar a separação grega das funções do senhor e do escravo, do marido e da mulher, do pai e dos filhos (5). Não bastaria porque aquela separação entre as funções na pólis e as funções na oikos se estabelecia em condições de co-pertencimento de uma esfera à outra, de tal modo que o acento estava na interdependência estabelecida na relação entre as diversas esferas e não na autonomia individual. É a crítica a esse ideal de autonomia individual que me interessa discutir neste artigo, mobilizando tanto Butler quanto a filosofia de Jacques Derrida.

     

    DEMOCRACIA RADICAL E CRÍTICA À VIOLÊNCIA DE ESTADO

    Na segunda onda feminista, iniciada a partir dos anos 1960, uma das palavras de ordem mais fortes era "O privado também é público". Tratava-se desde ali de um problema, desses que, como propõe Butler, é melhor tê-los criado. E indicava a necessidade de "extensão" da democracia, para repetir os termos de Rancière. Quando as diferenças que inferiorizam as mulheres adentram os espaços públicos, o fazem de modo a interrogar a hegemonia do homem ocidental branco, heterossexual, reconhecido pelas instituições - sobretudo, pelo Estado - como sujeito de direitos e como senhor de um regime de validade de verdade sobre o que é o mundo.

    A partir daqui, do meu ponto de vista, a tarefa política passa a ser esgarçar as separações que promovem exclusão e violência, e me parece interessante mobilizar os argumentos de Butler em defesa de uma democracia radical como instrumento de enfrentamento da violência de Estado, maior e mais aguda contra gêneros não inteligíveis na ordem normativa. A principal tarefa de uma democracia radical hoje seria enfrentar, confrontar, interrogar, questionar, fazer oposição à violência de Estado, esta que se justifica em função da defesa dos territórios, lucra com essa atividade e se fundamenta na força de exploração da precariedade dos corpos. Importante contextualizar o diagnóstico de Butler (1), que emerge na sua obra como modo de crítica à política externa norte-americana e suas guerras "em favor da democracia", sobretudo aquelas iniciadas a partir do 11 de setembro. Com Butler, pretendo argumentar que só haverá democracia (radical) quando e se qualquer corpo - independentemente da sua marcação de gênero, raça, classe, etnia ou religião - não estiver desigualmente exposto à violência estatal.

    Na crítica à violência de Estado, o que está em jogo na filosofia de Butler é a "ontologia do corpo", noção com a qual se pode pensar a distribuição desigual da precariedade da vida a partir de marcadores de gênero, sexualidade e as sobreposições entre raça e classe.

    O corpo é um fenômeno social: ele está exposto aos outros, é vulnerável por definição. Sua mera sobrevivência depende de condições e instituições sociais, o que significa que, para 'ser' no sentido de sobreviver, o corpo tem que contar com o que está fora dele (1).

    Nessa ontologia corporal, passa a ser preciso pensar de que forma a democracia vem sendo mobilizada a fim de manter a separação entre corpos que merecem viver e corpos que merecem morrer, considerando que os corpos de mulheres, gays, lésbicas, jovens negros, pessoas trans, são corpos marcados e expostos à violência de Estado - seja direta, no número de autos de resistência da polícia militar em caso de morte de jovens negros; seja indireta, na violência perpetrada no aparelho estatal contra mulheres vítimas de estupro ou na falta de atendimento a mulheres em situação vulnerável por complicações em casos de aborto inseguro.

    Articular o reconhecimento da vulnerabilidade dos corpos com o problema da democracia (radical) é minha estratégia de entrelaçar o debate sobre a ampliação de direitos que acredito estar presente no que se pretende ser um governo democrático. Dito em outras palavras, a sustentação do conceito de democracia, com todas as suas complexidades, é uma forma de operar a democracia, torcê-la, retorcê-la, a fim de enfrentar seus paradoxos, ponto em comum na reflexão dos autores que mobilizo aqui. Butler tem como alvo o individualismo da democracia liberal norte-americana e concentra sua crítica na pergunta: "podemos chamar de 'democracia' uma forma de poder político imposto antidemocraticamente?" (1). Ainda que tendo outro alvo, persegue caminho análogo o filósofo franco-argelino Jacques Derrida quando discute duas noções que me serão caras neste debate: a autoimunidade da democracia e a democracia porvir.

    A noção de autoimunidade vem da medicina e define um tipo de doença em que o sistema imunitário fica desorientado e, ao invés de cumprir sua função de proteger, passa a atacar o organismo daquilo que deveria defender. A esse estranho mecanismo biológico de inversão, Derrida chamou de "lógica ilógica" na qual o "autos" do sujeito - aquilo que se costuma pensar como uma autonomia própria e constitutiva do eu - estaria exposto à sua própria impotência, dependência, vulnerabilidade e instabilidade. O processo autoimunitário servirá a Derrida para argumentar que não se pode desenvolver as ideias que fundamentam a democracia - liberdade, igualdade, povo e soberania, por exemplo - sem pensar num "eu" que é autoafirmativo, autoconsciente e decisório e cuja capacidade de escolher, de e para si, tem o objetivo de afirmar sua soberania como "eu". Não haveria, ele diz, liberdade - de escolha, de voto, de reunião, de expressão e de tudo isso que caracteriza o conceito de democracia - sem a concepção de um eu soberano que, no entanto, apontará ele, está desde sempre marcado pela impossibilidade de um fechamento, desde sempre exposto ao processo autoimunitário que lhe é constituinte.

    Nessa aporia, nessa contradição em que o "eu" fundamenta a si mesmo marcado por essa desarticulação da autoimunidade, Derrida pensa que toda vida, para existir, tem que admitir o seu aspecto de não-vida, ou que, para aproximá-lo dos termos de Butler, todo corpo vivo está exposto à sua possibilidade de morte. A autonomia do "eu sou" está, a partir daqui, contaminada pelo espectro e agora se diz "eu sou assombrado". Essa contradição interna inerente ao "eu" vai ser articulada por ele com a noção de différance, que considero um operador político potente no seu pensamento.

    O pensamento do político tem sido sempre um pensamento da différance e o pensamento da différance sempre um pensamento do político, dos contornos e do limite do político, especialmente em torno do enigma ou da dupla injunção autoimune do democrático (6).

    Por isso, antes de seguir adiante, me parece fundamental fazer uma breve pausa sobre a importância da noção de différance no pensamento de Derrida. A différance funciona como um operador que adia a relação com o outro - marca da imunidade - e ao mesmo tempo faz referência à inexorável relação com o outro - marca da autoimunidade.

    O termo différance surge em 1967 pelo menos em dois livros de Derrida - Gramatologia (7) e A voz e o fenômeno (8) - antes de ser apresentado na conferência "La différance", de 1968, quando ele se propõe a explicitar o que até então estava sendo gestado. É por isso que ele começa a conferência explicando que différance é resultado de um "feixe" vindo de diferentes caminhos. A palavra "feixe" tem pelo menos duas razões para ser usada:

    (...) por um lado, não se tratará de descrever sua história, o que eu teria podido também fazer, de recontar suas etapas, texto por texto, contexto por contexto, mostrando cada vez qual economia impôs essa desregulamentação gráfica; mas sim o sistema geral desta economia. Por outro lado, a palavra "feixe" parece mais apropriada a marcar a semelhança proposta com a estrutura de uma imbricação, de um tecido, um cruzamento que poderá ser repartido em diferentes fios e diferentes linhas de sentido - ou de força - assim como está próximo de enredar outros (9, p.3).

    Entre essas diferentes linhas de força estão a influência de Hegel, ora implícitas, ora explícitas, como na conferência de 1968, quando Derrida substitui a palavra francesa différence (sinônimo para diferença) por différance, equivalente a adiando e diferindo (do verbo francês diférér), hipóteses de traduções imperfeitas para o termo. Imperfeitas porque não conseguem dar conta da função da letra a, que tem como objetivo provocar uma impossibilidade de distinguir, pelo som, as palavras francesas différence e différance, obrigando os ouvintes da conferência a realizar a experiência de superar - conservando - a mera referência à oralidade. Passa a ser preciso, e isso importa particularmente a Derrida no contexto de sua crítica à primazia da linguagem fonética, guardar sempre uma relação com o texto escrito. Importante marcar esta como uma das funções da letra a, cuja alteração produz um termo equivalente ao nosso gerúndio, o que levaria a possibilidades de tradução como diferindo, adiando ou diferenciando. Se entendemos que a Aufhebung hegeliana contém dois movimentos - a conservação e a superação, superação esta em que o novo elemento contém o que foi superado -, podemos entender que a noção de différance em Derrida indica um movimento em que conservação e superação se dão simultaneamente, marcando a ligação indissolúvel entre o mesmo e a alteridade, de modo a acentuar que eu/outro, consciência natural/consciência de si são inseparáveis e insuperáveis.

    Quando desenvolve a apresentação desta noção de différance, Derrida retorna ao texto de Koyré, "Hegel em Iena", marco inicial da leitura hegeliana na França, para se deter em um problema de tradução enfrentado por Koyré: como levar do alemão para o francês a expressão "differente Beziehung". Esta palavra alemã - "differente" - tem raiz latina e é de uso pouco comum não apenas no alemão, mas também no vocabulário de Hegel, que dá preferência a termos como verschieden, ungleich, ou Unterschied e Verschiedenheit, suas variações quantitativas. Numa nota de tradução sobre o uso da expressão "differente Beziehung", Koyré observa que "diferente" é o termo usado por Hegel para designar um tipo de diferença de "sentido ativo". É este sentido ativo que Derrida quer marcar com o uso do termo différance, quando afirma:

    Escrever 'différant' ou 'différance' (com a) poderia já ter a utilidade de tornar possível, sem outra observação ou definição, a tradução de Hegel nesse ponto particular que é também um ponto absolutamente decisivo de seu discurso. E a tradução será, como deve ser sempre, transformação de uma língua por outra. (9, p.15)

    Com esta citação, busco marcar como Derrida faz aqui uma ligação direta do termo différance não apenas com o pensamento do jovem Hegel, mas sobretudo com a tradução - ou a transposição e a recepção - da filosofia hegeliana na França. Nesse percurso histórico, différance se articula com o problema da temporalidade, seja na consciência transcendental em Edmund Husserl; seja no horizonte transcendental da questão do ser, em Martin Heidegger; seja no conceito de inconsciente em Sigmund Freud, que será fundamental para o "questionamento da autoridade da consciência" que, para Derrida, será sempre diferencial. "A autoimunidade é uma maneira de levar em conta na política o que a psicanálise chamou de inconsciente", dirá o filósofo na sua operação de crítica ao sujeito soberano do poder e do saber.

    No caminho de tornar a diferença uma diferenciação, Derrida estabelece uma "relação entre uma différance que se contabiliza e uma différance que não se contabiliza, em que o por em presença pura e sem perda se confunde com a perda absoluta, a morte". A filiação ao pensamento hegeliano que aparece explicitamente na formulação na noção de différance é outro modo de dizer que a différance funciona como a Aufhebung, ou seja, como um operador crucial na filosofia de Derrida que, como tal, pode ser mobilizado para pensar inúmeras das questões às quais seu pensamento se dedica. Foi com a différance que teorias feministas operaram o questionamento à identidade; as teorias queers operaram a crítica ao conceito de gênero; os estudos pós-coloniais repensaram a relação de subalternidade e o problema da episteme eurocêntrica; a bioética abriu caminho para interrogar a tradição de distinção entre humano/inumano; e a política encontra outro modo de contabilizar o processo democrático como necessariamente aberto à superação e forçosamente exposto ao que resta de incompleto em cada superação.

    Différance será a maneira de Derrida pensar a impossibilidade da democracia enquanto tal ou, nos termos de Butler já mencionados acima, de perguntar de que modo é possível chamar de democracia qualquer tipo de poder político imposto antidemocraticamente. É o que se verifica nas guerras dos EUA contra os chamados rogues states, aqueles que, por serem considerados fora do ordenamento jurídico democrático, são invadidos, combatidos, violados em nome da democracia, tema que também inspira as críticas de Butler ao governo dos EUA. Ambos os pensadores estão denunciando a contradição sobre a qual se fundamenta a violência de Estado contra formas não inteligíveis de vida, sejam estas formas estatais - como no caso dos rogues states - ou individuais - como na violência institucional contra todas as pessoas com marcadores de gênero que não podem ser apreendidas pela norma.

     

    DERRIDA E BUTLER, IMUNIDADE E AUTOIMUNIDADE, DEMOCRACIA E ESTADO DE EXCEÇÃO

    Articular os problemas da democracia com os problemas de gênero me levou a, mais uma vez, articular dois pensadores - Derrida e Butler - que tenho posto em contato há alguns anos (10). Meu objetivo tem sido pensar como, a partir dos dois, cada um a seu modo, é possível formular uma crítica à democracia liberal representativa. Derrida, nascido na Argélia, traz como exemplo da autoimunidade da democracia um episódio político de seu país natal. Em 1992, na Argélia pós-colonial, eleições democráticas escolheram para o governo um partido identificado com o islamismo. Naquele momento, conta o filósofo, "o governo argelino e uma parte importante, embora não majoritária, do povo argelino, consideraram que o processo eleitoral em curso conduziria democraticamente ao fim da democracia. Preferiram, por isso, eles mesmos pôr-lhe fim. Decidiram soberanamente suspender, pelo menos provisoriamente, a democracia para o seu bem e para a proteger, para a imunizar contra o pior e a mais provável agressão" (6).

    Esta relação inextricável entre democracia e estado de exceção (11), entre uma democracia que, para continuar existindo, depende de instituir, ela mesma, um estado de exceção que lhe retira o próprio caráter democrático, é o que Derrida identifica como a relação de co-implicação entre imunidade e autoimunidade, a diferença ativa - ou a différance - em que se dá diferimento como adiamento, em que a economia geral da democracia exige uma economia restrita à democracia. Por esse caminho, Derrida faz sua crítica à autonomia individual, ao pensar as condições de (im)possibilidade da soberania que fundamentaria a noção de democracia.

    Já em Butler, a crítica à democracia liberal e à autonomia individual passa pela formulação da noção de ontologia corporal e por uma maneira muito peculiar de perceber a centralidade da condição precária de todo corpo vivente como forma de interrogar o conceito de indivíduo como centro da política. Por fim, gostaria de lembrar que reuni a esses dois autores a crítica de Rancière à democracia, por considerá-la não apenas co-pertencente a esse ambiente de pensamento mas, sobretudo, por acreditar que, com Rancière, posso pensar como é pertinente articular o ódio à democracia ao ódio a toda forma de vida cuja marcação de gênero a faça ininteligível diante das estruturas normativas que sustentam os regimes democráticos. Em outras palavras, o que pretendi fazer foi conjugar dois tipos de ódio, ambos manifestos como formas de violência - estatal ou não - contra corpos vulneráveis e tidos como ingovernáveis apenas por aqueles que se acham com o privilégio de governar.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Butler, J. Quadros de guerra - quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Record, 2015.

    2. Butler, J. Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Record, 2003.

    3. Rancière, J. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

    4. "Em novo livro, filósofo Jacques Rancière analisa contradições do sistema representativo". O Globo, 06/09/2014. < http://oglobo.globo.com/cultura/livros/em-novo-livro-filosofo-jacques-ranciere-analisa-contradicoes-do-sistema-representativo-13845708>

    5. Aristóteles. A política. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

    6. Derrida, J. Voyous. Paris: Galilée, 2003.

    7. Derrida, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2004.

    8. Derrida, J. A voz e o fenômeno. Rio de Janeiro : Zahar, 1994.

    9. Traduções da autora a partir do original em: Derrida, J. "La différance". In: Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972.

    10. Rodrigues, C. Coreografias do feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2009 e Rodrigues, C. Duas palavras para o feminino. Rio de Janeiro: Faperj/NAU Editora, 2013.

    11. Teles, E. Democracia e estado de exceção. São Paulo: Editora Fap-Unesp, 2015.