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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100014 

    ARTIGOS
    GÊNERO

     

    Da suspeição à suspensão: reflexões sobre os caminhos recentes da democracia brasileira sob uma perspectiva de gênero

     

     

    Maíra Kubík Mano

    Doutora em ciências sociais e professora adjunta do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA) e do Núcleo de Estudos em Ideologias e Lutas Sociais (NEILS/PUC-SP). Email: mairakubik@ufba.br

     

     

    Vivemos ou não em uma democracia no Brasil contemporâneo? Essa questão, que ganhou novo fôlego com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, é a inquietação que motiva este artigo. Sem qualquer pretensão de respondê-la, quero aqui colocar alguns elementos para reflexão, com o intuito de contribuir para as múltiplas caracterizações possíveis deste momento de crise política, social, econômica e ecológica pelo qual passamos no Brasil.

    De fato, o questionamento sobre a eficácia da democracia moderna não é nenhuma novidade. Afinal, quando as bandeiras de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa de 1789 ecoaram mundo afora, essas propostas nunca englobaram a todos e todas.

    Há muitos e óbvios exemplos dessa exclusão, mas vou destacar dois que saíram do mesmo berço de elaboração dessas ideias, a saber, a Europa Ocidental, com o intuito de demonstrar o quão pouco flexível era a proposição revolucionária. O primeiro deles é o da francesa Olympe de Gouges, uma viúva, mãe de um menino e autodidata que atuava no teatro no século XVIII. "No fim das Luzes, Olympe de Gouges perseguia seu [modesto] caminho de mulher das letras", escreve Martine Reid, "atenta aos problemas mais próximos (ser filha bastarda, a condição da mulher e sua relação com os homens) tanto quanto às questões que ocupavam os espíritos progressistas" (1). Integrante da Sociedade dos Amigos dos Negros, Gouges militava pelo fim da escravidão. Com a Revolução Francesa, ela começou a participar ativamente do debate de ideias que se instaurou e ficou conhecida por escrever cartas e panfletos incitando a população sobre os mais diversos temas, como as finanças públicas e o direito ao divórcio. Em setembro de 1791, publicou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, uma resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lançada dois anos antes. Com seu texto, Gouges "lembra o estatuto problemático das mulheres na revolução que começa e reclama uma verdadeira igualdade entre os dois sexos, inscrita na lei", aponta Reid (2). Já Eleni Varikas argumenta que, com essa declaração, Gouges "inaugurava uma tradição crítica que mostrava não somente o lugar problemático das mulheres na democracia histórica, mas também a própria natureza desta democracia" (3) [grifo meu].

    Bem, e o que aconteceu a Olympe de Gouges, essa precursora do questionamento à democracia moderna? Em 3 de novembro de 1793 ela foi julgada por seus escritos, considerados antirrevolucionários, e condenada à morte.

    Também inspirada pela Revolução Francesa, a inglesa Mary Wollstonecraft, uma dama de companhia que se tornou administradora escolar, publicou, em 1792, Vindicação dos direitos da mulher. "A revolução encorajou-a a conceber que 'direitos' deveriam ser estendidos às mulheres", escreve Sheila Rowbotham, mas "as medidas adotadas pelos homens que eram lideranças decepcionaram-na - as mulheres foram excluídas da cidadania na Constituição" (4). Para Rowbotham, ao reivindicar as liberdades civis e políticas para as mulheres, Wollstonecraft "conecta as esferas pública e pessoal, concebendo uma nova ordem na qual a razão e o sentimento seriam integralmente entrelaçados" (5). Já Eleni Varikas registra que Wollstonecraft representava "as reivindicações e elaborações das mulheres diante das contradições do ideal democrático igualitário nascente, o qual excluía dos direitos de cidadania não só as mulheres, mas também os negros e judeus" (6). Podemos vislumbrar uma síntese de seu pensamento nas palavras da própria Wollstonecraft ao comentar um relatório de 1791 que excluía as mulheres da instrução pública, feito em nome do comitê de Constituição da Assembleia Nacional: "a exclusão [...] de uma metade do gênero humano pela outra é algo impossível de explicar segundo o princípio abstrato [dos direitos do homem]. [...] Em que se baseia vossa constituição?" (7).

     

    EXCLUSÃO INICIAL OU EXCLUSÃO PERMANENTE?

    Esse questionamento, que ficou conhecido como "o dilema de Mary Wollstonecraft", parece permanecer sem resposta. Afinal, não só a extensão do direito a voto a toda a população foi tardia, tanto no exemplo da França quanto no Brasil, como aqui o que seria uma exclusão compulsória inicial tornou-se permanente: as mulheres até hoje não ultrapassam 15% das representações no legislativo e a autodeclaração racial, que não era um critério até a eleição de 2014, traz dados ainda mais excludentes: 79,9% dos eleitos se declararam brancos para a Câmara dos Deputados; 4,3% dos eleitos se declaram pretos e 15,7%, pardos.

    No caso especificamente das mulheres, para onde direciono meus estudos, muitas pesquisas buscam compreender o porquê dessa exclusão permanecer. E, com frequência, concluem que não há um único fator, mas diversos, imbricados, com destaque para a divisão sexual do trabalho, cujas tarefas consomem muito o tempo das mulheres e as liberam pouco para a vida pública, que é um espaço tradicionalmente ocupado pelos homens.

    O relativamente curto tempo de participação na política institucional também é um fator de influência. Se pensarmos que o direito ao voto vem do Código Eleitoral de 1932, que definia, em seu segundo artigo, que seria "eleitor o cidadão maior de 21 anos sem distinção de sexo", com breves cálculos percebemos que estamos então falando de apenas 84 anos de participação de toda a população na democracia brasileira. Mas considerando que houve dois períodos de ditadura - 1937 a 1945 e 1964 a 1985 - na verdade, são 55 anos até 2016.

    Entre aquelas poucas mulheres que ultrapassam todas as barreiras que dificultam sua participação na política institucional, filiam-se a um partido e conseguem lançar uma candidatura que não seja "laranja" - uma prática bastante frequente desde a adoção da lei de cotas - há ainda outros obstáculos a serem superados: em geral, não há muito apoio da agremiação para candidaturas femininas, não há um financiamento significativo e tampouco mais tempo nos programas de rádio e TV, que são hoje os instrumentos fundamentais para ampliar os nomes dos/as candidatos/as e disputar votos entre um contingente maior do que o círculo inicial dessa pessoa, o que lhe permitiria ampliar sua área de influência e se eleger. Além disso, as dificuldades em combinar essas atividades às tarefas domésticas e de cuidado permanecem.

    Uma série de propostas é, com frequência, elencada com vistas a ampliar sua participação. Entre as mais recentes estão a reforma política, com a possibilidade de lista fechada com alternância de "sexo", o financiamento público de campanha, a ampliação das políticas de cotas e/ou criação de reserva de assentos para negros e indígenas e até mesmo a realização de plebiscito popular para convocar uma Constituinte, proposta da presidenta Dilma Rousseff como resposta às manifestações de junho de 2013.

     

    A POLÍTICA DA PRESENÇA E A POLÍTICA DAS IDEIAS

    E o que acontece quando as ditas minorias conseguem furar o cerco e eleger-se? Elas necessariamente atuam em conjunto em prol da modificação de seu posicionamento hierarquicamente inferior na sociedade, como poderia se supor? Ou uma vez que ingressam nessa arena se desfazem do pertencimento de grupo excluído tradicionalmente daquele espaço? Aliás, é possível "se desfazer" de tais características considerando que vivemos em uma sociedade machista, racista, classista, homolesbotransfóbica e com tantas outras alteridades que são utilizadas como justificativa para rebaixamentos, preconceitos e até a mesmo a morte?

    Esses questionamentos, acredito, são fundamentais para refletirmos não só que representatividade importa, mas qual representatividade. É o debate entre a política da presença e a política das ideias.

    Para aprofundar a análise acerca deste tema, trago um estudo de caso que fiz acerca da representação da bancada feminina na Câmara dos Deputados durante a 54ª legislatura (2011-2014) no que diz respeito à aprovação da PEC das Domésticas (Proposta de Emenda à Constituição 478/2010, posteriormente Emenda Constitucional 72/2013). Essa bancada é particularmente interessante porque engloba todas as deputadas da Casa em uma filiação compulsória, apoiada em uma suposta unidade biológica entre as mulheres. Ou seja, diferentemente das bancadas do boi, da bíblia, da bala, da bola etc, que agrega congressistas por afinidades ideológicas, a bancada feminina da Câmara reúne aquelas que se declaram representantes do "sexo" - entre aspas mesmo, considerando-se que é um construto social - feminino.

    Considerando que agregar-se enquanto bancada tem a função de agir conjuntamente em determinadas agendas, defini, como hipótese central, que a atuação conjunta das mulheres teria limitações em função de orientações partidárias e de outras relações sociais estruturantes - "raça"/etnia e classe -, assim como a religião. Haveria também um limite em função do arco de alianças feito pelos/as à época governistas, que teriam se distanciado de bandeiras históricas dos movimentos feministas em prol do apoio de setores mais conservadores. Ou seja, mesmo sendo todas mulheres, condição social à qual não conseguiam fugir no Parlamento, elas não conseguiriam atuar de maneira unificada.

    Faço aqui um parênteses: é importante lembrar que a bancada feminina foi formada e ganhou destaque durante a Constituinte de 1988, quando ficou conhecida como "bancada do batom". Foi fruto de uma ampla articulação, com destaque para a campanha desenvolvida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) cujo slogan era "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher". Apesar das diferenças ideológicas, as 26 mulheres constituintes reuniram-se na bancada feminina, que "não obstante este desequilíbrio na distribuição e exercício do poder entre os e as parlamentares, [...] contribuiu de modo decisivo para a inserção das demandas das mulheres nos diversos momentos e espaços de sua atuação na Assembleia Nacional Constituinte"(8), analisa a pesquisadora Salete Maria da Silva. A discriminação foi o fator agregador. Apenas seis delas já haviam sido deputadas e nenhuma havia participado enquanto tal da elaboração de uma nova Constituição. "Não resta dúvida", diz Silva, "que se encontravam como estranhas no ninho" (9), tendo, desde o princípio, experimentado a "inadequação feminina" no espaço da ANC. Entre as muitas conquistas que podem ser destacadas desse momento está o artigo 5º , parágrafo primeiro, da Constituição, que afirma que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações", algo até então inexistente no ordenamento jurídico brasileiro.

    A equiparação dos direitos trabalhistas das domésticas aos das demais também foi objeto de debate na Constituinte, mas não foi aprovada. Na ocasião, conforme consta nos Anais do Congresso Nacional, Lenira de Carvalho, representante das trabalhadoras domésticas, fez um discurso aos congressistas que podemos equiparar àquele de Mary Woolstonecraft citado acima: "não acreditamos que façam uma nova Constituição sem que seja reconhecido o direito de 3 milhões de trabalhadores deste país. Se isso acontecer, achamos que, no Brasil, não há nada de democracia, porque deixam milhares de mulheres no esquecimento" (10).

    Pois fizeram. Esses direitos só foram aprovados em sua plenitude em 2012, por meio da PEC, promulgados em 2013 e regulamentados em 2015. Segundo dados do governo federal, a categoria reunia, à época da aprovação da PEC, 6,6 milhões de pessoas, sendo 6,2 milhões delas mulheres. A principal protagonista desse processo no legislativo foi a deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ). Ao entrevistá-la para a pesquisa, perguntei se, do ponto de vista dela, a bancada feminina havia apoiado a PEC, ao que Benedita respondeu que sim. "Toda a nossa bancada é favorável. A Jô [Moraes, PCdoB/MG], que é a nossa presidenta, coordenadora da bancada, não achou nenhuma dificuldade. Nós não encontramos. Nós, as mulheres. Fizemos força, botamos na pauta" (11). Pela fala de Benedita, percebe-se que, para ela, há uma noção de pertencimento à bancada feminina, ainda que ela não fosse uma de suas participantes mais ativas, como pude analisar pelas listas de presença.

    O discurso de Benedita foi replicado pelas colegas: "A PEC das domésticas foi considerada um projeto prioritário da bancada feminina, é lógico que a bancada feminina apoiou de forma muito decidida, de forma muito unida"(12), complementou Érika Kokay (PT/DF). Rosane Ferreira (PV/PR) atribuiu a PEC a uma atuação efetiva de Benedita da Silva. "Nós fechamos junto com ela. Nós entendemos que 99,9% da categoria envolve mulheres, as mulheres mais pobres, muitas mulheres negras, as mulheres mais vulneráveis a todo tipo de violência. Essas mulheres tem que estar protegidas" (13), argumentou. "Eu acredito que foi uma grande vitória da bancada feminina, porque fortaleceu o trabalho da doméstica, da mulher que trabalha dentro do lar, que cuida da nossa casa, que cuida dos nossos filhos, ela tem que ser tratada com dignidade" (14), disse Liliam Sá (PROS/RJ).

    A partir dos depoimentos das deputadas, a hipótese inicial que eu havia elencado, a saber, que elas estariam divididas por interesses de classes e "raça"/etnia, a princípio não se confirmou. Podemos pensar em duas questões. A primeira é que nessa relação entre patroas e empregadas haveria um terceiro elemento acima de ambas: o patrão-marido. A segunda, talvez mais válida, é que não há um vínculo direto entre pertencimento a determinada classe e orientação ideológica. Logo, as deputadas poderiam posicionar-se a favor das domésticas - a política das ideias.

    No entanto, ao adentramos um pouco mais nessa questão, percebemos que a unanimidade a favor da PEC não se sustenta. Embora "todo mundo" tivesse apoiado, "uma parte discordava e não tinha coragem de assumir" (15), diz Jô Moraes (PCdoB/MG), presidenta da bancada feminina, tamanha era a evidência de violação dos direitos trabalhistas, da situação precária das domésticas e de pressões feitas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o governo brasileiro. Posso, então, voltar atrás e questionar se, apesar dos discursos das deputadas favoravelmente à PEC, não haveria a falsa ilusão de um apoio.

    Um indício seria que não constam, nas atas de reunião analisadas (16), debates acerca dessa questão. Se a bancada estivesse empenhada nisso, não haveria alguma menção ao tema, ou até mesmo discussões sobre táticas e correlação de forças para sua aprovação? Um outro dado concreto é o longo tempo para sua aprovação, promulgação e regulamentação. A PEC foi aprovada por 347 votos favoráveis e somente dois contrários, dos deputados Roberto Balestra (PP/GO) e Zé Vieira (PR/MA), e duas abstenções: se a maioria do Congresso era amplamente favorável, por que tanta demora? A lentidão era tamanha que, em um dado momento, para pressionar os/as colegas parlamentares, Benedita vestiu um traje de doméstica e subiu à tribuna da Câmara. A ação não teve resultados práticos no encaminhamento das regulamentações, mas foi uma imagem bastante contrastante com a rotina de homens, brancos e engravatados que discursam a partir dali.

    Ao comentar especificamente sobre a lentidão na tramitação, Benedita da Silva refletiu que a regulamentação não avançava, afinal, por racismo, porque a categoria das trabalhadoras domésticas é composta majoritariamente por mulheres e negras: "Nós consideramos a dificuldade que tem de passar um projeto dessa natureza principalmente com a mulher e maioria de mulheres negras. Dizem que a gente não deve falar isso, que isso não existe, que é da nossa cabeça. Mas você não tem uma lógica, não tem" (17).

    Por fim, e aqui é apenas uma suposição, seja também gritante pensar que essas reivindicações foram finalmente reconhecidas em um período em que vivenciamos medidas e propostas de medidas de desregulamentação dos direitos trabalhistas.

    A partir desse caso, poderíamos concluir que quando há a inclusão de grupos que historicamente estiveram alijados da democracia, isso ocorre de forma complexa e não unitária. Tanto porque há uma pluralidade de experiências, interseccionalizadas (18) com outras relações, em especial de classe social e "raça", quanto porque há frações dentro desses mesmos grupos. Tais frações fazem com que parte delas, conscientes ou não disso, esteja ideologicamente mais próxima aos dominantes e que aja em prol da manutenção de sua hegemonia, resultante de um intricado processo de articulação.

    Por outro lado, a resistência à dominação vem, também, protagonizada pelas próprias pessoas com experiências de vida diferenciadas e que trazem esta contribuição distinta à arena democrática. Não é à toa que a parlamentar protagonista da PEC das Domésticas foi Benedita da Silva, uma mulher, negra, ex-empregada doméstica. Poderíamos acrescentar ainda que ela é integrante de um partido de centro-esquerda, que historicamente esteve próximo aos movimentos feministas (embora esta pauta tenha sofrido bastante nos governos petistas sob a justificativa da governabilidade; em 2010, por exemplo, Dilma Rousseff lançou a "Mensagem da Dilma", carta em que ela assegura ser "pessoalmente contra o aborto" e onde coloca que não fará ingerências a favor da aprovação desse direito sexual e reprodutivo das mulheres em troca do apoio de agremiações religiosas). Assim, poderíamos concluir que a política das ideias importa tanto quanto e é indissociável da política da presença.

     

    NA CONTRAMÃO DA EMANCIPAÇÃO

    Diante desta constatação, ganha força a compreensão óbvia de que a democracia brasileira estaria incompleta e insuficiente - afinal, o que temos predominantemente são homens, brancos, heterossexuais e de certa renda ocupando a maioria dos espaços da política institucional - e que necessitaria de medidas eficazes para, como afirma Boaventura de Sousa Santos (19), ampliar sua intensidade. Essas medidas, no entanto, não passariam apenas pela inclusão de determinados grupos. Isto não significa que haja uma atuação em prol da equidade, como vimos com o caso das mulheres no que diz respeito à PEC das Domésticas. Seria necessário então pensar em inovações para além de reformas, como listas fechadas com alternância de "sexo" e financiamento público de campanha. Uma radicalização da democracia precisaria de outras referências que não as suas iniciais, já tão excludentes e que assim permanecem, mas sim anticolonialistas, antirracistas e antipatriarcais.

    Com frequência, tem-se associado uma série de mobilizações e movimentos distintos, ocorridos em um período recente mundo afora, como uma reivindicação da transformação da estruturação política da vida: "contra a governança exclusiva, oligárquica e consensual de uma aliança de elites tecnocratas, políticas e econômicas determinadas a defender a ordem neoliberal de qualquer maneira", como colocam Eric Swyngedouw e Japhy Wilson (20). Os exemplos que eles destacam são a ocupação da praça Taksim, na Turquia; da praça Tahrir, no Egito; da Puerta del Sol, na Espanha; o movimento Occupy Wall Street, nos Estados Unidos e, alguns colocam, as jornadas de junho de 2013 no Brasil. Estas últimas, se podemos caracterizá-las assim, começaram com protestos contrários ao aumento da tarifa do transporte público, ganharam bandeiras difusas, tendo em seu bojo o questionamento à corrupção, que desde a patronagem está arraigada no sistema político brasileiro.

    O paralelo, no entanto, não é simples, uma vez que cada país tem um nível diferenciado de democracia, além, obviamente, das particularidades de cada movimento. Mas podemos notar que, em todos esses lugares, algum tempo depois dessas mobilizações massivas, houve uma nítida ascensão de conservadorismos, com a chegada ao poder de partidos tradicionais (o Partido Popular na Espanha, apesar do espaço conquistado pelo Podemos), a vitória de figuras carismáticas que representam tradicionalismos (Donald Trump nos Estados Unidos; a candidatura que mais próxima estava do movimento Occupy Wall Street era a do democrata Bernie Sanders, não a de Hillary Clinton) e o rompimento da ordem democrática onde ela já era mais frágil (Brasil, Egito e Turquia). Talvez seja factível fazer uma relação entre uma diminuição da intensidade democrática onde pouco antes surgiram propostas, inconclusas, de radicalizá-la. Para toda ação, há uma reação.

    Assim, ao invés de reinventar e/ou criar diferentes espaços de participação política, o que vimos no Brasil foi ainda mais exclusão. Após junho de 2013, por exemplo, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria de Políticas para as Mulheres perderam seu status de ministério, ainda no governo Dilma Rousseff, fundindo-se em uma única pasta. E quando Michel Temer assumiu a Presidência, eles simplesmente deixaram de existir. Nessa mesma perspectiva, poderíamos mencionar também seu ministério formado apenas por homens brancos.

    Diante do que pode ser caracterizado como um novo modelo de golpe parlamentar-judicial-midiático, a democracia, que estava sob suspeição, foi colocada em suspensão. A potência de mudança que poderia ter saído das ruas brasileiras provocou, ao contrário, um afastamento da política, que retornou às mãos de quem sempre esteve sob a égide da economia neoliberal. Faz-se aqui necessário pontuar que, mesmo nos governos do PT, houve a participação de grupos da elite tradicional brasileira. O governo contornou a luta de classes, diz Lincoln Secco, ao "internalizar os conflitos sociais no aparelho de Estado, dando ministérios tanto aos representantes do capital quanto (pela primeira vez) aos representantes do trabalho" (21). Era a política do "bate e assopra". Ou da decepção e da esperança, como afirma André Singer (22).

    Vivemos, então, um momento de democracia de baixíssima intensidade, cujos altos índices de abstenção nas eleições municipais de 2016 são o exemplo mais recente. A esse cenário se soma a fascitização social do país, conceito cunhado por Boaventura de Sousa Santos e aqui definido por José Manuel Mendes como aquele para tratar "da crise do contrato social, ou seja, pela ideia de que noções como as de igualdade, justiça, solidariedade e de universalidade deixam de ter valor e que a sociedade como tal não existe mas, sim, simples indivíduos e grupos sociais em prossecução dos seus interesses" (23). O fascismo social pode ou não coincidir com o político - a primeira opção parece ser o caso atual do Brasil.

    Vemos exemplos dele no combate a uma suposta "ideologia de gênero", que seria uma estratégia de "imposição", via escolas, de modos de ver e de sentir das mulheres, dos negros e negras, das trans, dos gays, das lésbicas, das bis etc. Como se "ideologia de gênero" (24) não fosse a que vivemos atualmente e que constitui as pessoas em homens e mulheres, tendo como referência o homem, branco, heterossexual, cisgênero, o colocando no lugar que ocupa na sociedade hoje, o lugar de patriarca da família.

    Outro exemplo bastante característico e que surge exatamente nesse momento de enfraquecimento da política institucional é a proposta da "escola sem partido", contrária a uma suposta "doutrinação" que ocorreria nas salas de aula. A partir da prerrogativa de que a pedagogia pode ser estéril de sentidos políticos, aqueles que estão na condição de estudantes seriam receptores acríticos de qualquer argumentação. Não é preciso alongar-se na caracterização dessa proposta, que é bastante explícita nos seus objetivos.

    Ambos os casos, da ideologia de gênero e da escola sem partido, evocam a reivindicação de uma suposta neutralidade do ambiente escolar. Essa ideia de neutralidade, não por acaso, está diretamente relacionada àquela de sujeito universal da política institucional: trata-se da mesma perspectiva iluminista. Um ponto de vista parcial, mas que se pretende único e, ao colocar-se dessa maneira, imediatamente desloca os que nele não se encaixam para serem "outros".

    Vale destacar ainda que ambos também passaram ou passam por tramitação no poder legislativo, o que nos permite vislumbrar pontos de interseção entre o fascismo político e o social e questionar se seria mesmo possível pensá-los separadamente.

    Estamos, enfim, em um período de cada vez mais restrições, de delimitações, de barreiras, de finito (25) e - por que não? - de morte. Sair dele requer escolher a vida. Pensar a emancipação a partir do infinito, sem um horizonte pré-definido, com uma ousadia que recupere projetos de futuro não totalizadores e contrários à automatização da existência.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Reid, M. "Présentation". In: Gouges, O. de. Femme, réveille-toi! - Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne. Paris: Gallimard, 2014. p. 9.

    2. Ibidem, p. 12. 2014.

    3. Varikas, E. "La nature politique du genre ou les limites de la démocratie historique". In: Cahiers du Gedisst, nº 14, Paris, Iresco, CNRS, 1995, p. 44 apud Scavone, L. Dar a vida e cuidar da vida - feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

    4. Rowbotham, S. "Introduction". In: Wollstonecraft, M. A vindication of the rights of woman. Londres: Verso, 2010. p. XIV.

    5. Ibidem, p. XVIII.

    6. Varikas, E. op. cit., p. 41-54. 1995.

    7. Varikas, E. "Refugos do mundo - figuras do pária". In: Estudos Avançados, São Paulo, v.24, n. 69, p. 31-60, 2010, p. 40.

    8. Silva, S. "A carta que elas escreveram: participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988". 2011. 321 f. Tese (doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre as Mulheres, Gênero e Feminismo, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, p. 208-209.

    9. Ibidem, p. 203.

    10. Carvalho, L. Assembleia Nacional Constituinte (Brasil). Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos. Anais da Assembleia Nacional Constituinte, Brasília: Congresso Nacional, 1987, p. 189.

    11. Silva, B. Entrevista concedida a Maíra Kubík Mano, 14/10/2014.

    12. Kokay, E. Entrevista concedida a Maíra Kubík Mano. 12/12/2014.

    13. Ferreira, R. Entrevista concedida a Maíra Kubík Mano. 05/11/2014.

    14. Sá, L. Entrevista concedida a Maíra Kubík Mano. 02/11/2014.

    15. Moraes, J. Entrevista concedida a Maíra Kubík Mano. 09/10/2014.

    16. Mano, M. "Classe de sexo: reflexões sobre uma categoria de análise". In: Oliveira Andrade, A.; Castro Ribeiro, J. M. de; Diniz, M. I.; Marques de Queiroz, F.; Moreira Santos, L.P.. (org.). Feminismo, gênero e sexualidade: diálogos contemporâneos. 1ed. Mossoró: Edições UERN, 2016, v. , p. 49-70.

    17. Silva, B. op. cit., 2014.

    18. Crenshaw, K. "A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero". Ação Educativa, 2012, p. 7-6.

    19. Santos, B. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p 32.

    20. Swyngedouw, E.; Wilson, J. The post-political and its discontents: spaces of depoliticization, spectres of radical politics. Edimburgo: University of Edinburgh Press, 2014. Introdução.

    21. Secco, L. A história do PT. Cotia: Ateliê Editorial, 2012, 3a ed., p. 206.

    22. Singer, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Cia. das Letras, 2012.

    23. Mendes, J. M. "Fascismo social". In: Observatório sobre crises e alternativas, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7738 Acesso em 08/11/2016.

    24. Lauretis, T. "A tecnologia do gênero". In: Hollanda, H. (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

    25. Badiou, A. Em seminário na École Normale Supérieure, 2013.