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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100016 

    ARTIGOS
    GÊNERO

     

    Democracia e direito da antidiscriminação: interseccionalidade e discriminação múltipla no direito brasileiro

     

     

    Roger Raupp RiosI; Rodrigo da SilvaII

    IProfessor do mestrado em direitos humanos do UniRitter e desembargador federal do TRF - 4 região. Doutor em direito (UFRGS), desenvolve pesquisas na área de direitos humanos, direito da antidiscriminação e direitos sexuais. Autor e organizador, dentre outras obras, de Direito da antidiscriminação (2008) e Em defesa dos direitos sexuais (2007), ambos pela Editora Livraria do Advogado. Email: roger.raupp.rios@gmail.com
    IIMestre em direitos humanos pelo UniRitter, advogado e pesquisador no projeto "Direito da antidiscriminação, igualdade e diferença" do UniRitter. Autor da obra Discriminação múltipla como discriminação interseccional: as conquistas do feminismo negro e o direito da antidiscriminação (Lumen Juris, 2016). Email: rodrigodsilva@hotmail.com

     

     

    A construção da democracia e a afirmação dos direitos humanos são processos concomitantes e desafiadores, em especial em contextos e experiências nacionais marcadas por autoritarismo e exclusão. Ao lado das lutas políticas e iniciativas sociais, fazem-se necessárias a formulação e a fidelidade a ordenamentos jurídicos permeados de conteúdo substantivo democrático, onde se destacam os princípios da liberdade, da igualdade e do respeito à dignidade humana.

    Nesse campo, destaca-se o direito de igualdade, cuja compreensão não pode se limitar às tradicionais dimensões formal (todos são iguais perante a lei) e material (tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade). É preciso ter claro que o conteúdo jurídico e político da igualdade requer superar situações de subordinação, enfrentando "cidadanias de segunda classe". Trata-se de necessidade ainda mais pungente em sociedades como a brasileira, em que a empresa colonial valeu-se da subjugação dos povos indígenas, da escravidão imposta a africanos e da dominação de gênero como pilares de seu funcionamento.

    Nesse contexto, o desenvolvimento de respostas jurídicas antidiscriminatórias vê-se profundamente desafiado, reclamando não somente clareza quanto à reprovação da discriminação em si mesma, mas também quanto à enumeração dos critérios proibidos de discriminação (primeira parte). Mais que isso, é imprescindível enfrentar a discriminação interseccional (segunda parte) e explicitar seu tratamento no direito brasileiro (terceira parte).

     

    CONCEITO JURÍDICO DE DISCRIMINAÇÃO E CRITÉRIOS PROIBIDOS DE DISCRIMINAÇÃO

    O ponto de partida para o exame da discriminação interseccional é o conceito jurídico de discriminação. Adotando-se a definição desenvolvida pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, em especial pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1), pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (2) e pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (3) (todos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro), tem-se por discriminação "qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o feito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública".

    Ao conceito jurídico de discriminação, acrescenta-se a lista de critérios proibidos de discriminação, cujo papel é atentar para manifestações específicas de discriminação, conforme vai revelando a experiência histórica. Daí a enumeração de fatores proibidos de discriminação, como gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, deficiência e idade (4).

    Os ordenamentos jurídicos adotam três técnicas de previsão desses critérios. Um primeiro modelo lança mão de enumeração exaustiva, com critérios fixos, como ocorre, exemplificativamente, nas legislações domésticas do Reino Unido e da União Europeia. O segundo modelo adota técnica genérica e abstrata, como se dá na Constituição americana. Por fim, uma terceira forma elabora uma lista exemplificativa, aberta à inclusão de novos critérios, como ocorre na Convenção Europeia de Direitos Humanos, na Constituição da África do Sul e no direito canadense (5).

    Uma vez definidos os critérios proibidos de discriminação, passa-se a disputar a respeito de sua interpretação e da intensidade de sua proteção por parte dos tribunais (6). Desse modo, as discriminações são identificadas e seu combate passa a ser um objetivo (7). Seu enfrentamento, acionado por meio da previsão dos critérios proibidos de discriminação, deve evitar a consideração desses fatores como se fossem compartimentos estanques, preocupação atinente à percepção da discriminação interseccional.

    É no contexto dos critérios proibidos de discriminação, em especial na sua concomitância e intersecção, que se apresenta o debate relativo à discriminação interseccional. Diante da complexidade da experiência humana, individual e social, em que as identidades não se vivenciam de modo isolado ou único, não há como fugir dessa realidade quando está em causa os critérios proibidos de discriminação, desafio que reclama a compreensão da interseccionalidade da discriminação e sua repercussão no cenário jurídico.

    De fato, o fenômeno discriminatório é múltiplo e complexo. Os diferentes contextos, redes relacionais, fatores intercorrentes e motivações que emergem quando, no trato social, indivíduos e grupos são discriminados, não se deixam reduzir a um ou outro critério isolado (8). Não basta, por exemplo, reprovar a discriminação racial e a discriminação sexual, pois a injustiça sofrida por mulheres brancas é diversa daquela vivida por mulheres negras, assim como a discriminação experimentada por homens negros e por mulheres negras não é a mesma.

     

    DISCRIMINAÇÃO INTERSECCIONAL COMO DISCRIMINAÇÃO MÚLTIPLA NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

    O estado da arte neste campo conceitual, do ponto de vista jurídico, aponta para o predomínio da expressão "discriminação múltipla" diante da discriminação motivada por mais de um critério proibido. Como refere Dagmar Schiek (9), as organizações internacionais e organizações europeias de proteção de direitos humanos utilizam o conceito de discriminação múltipla em uma perspectiva abrangente.

    A discriminação interseccional é conceito que surgiu da percepção do fenômeno peculiar da discriminação sofrida por mulheres negras em contraste com a vivida por mulheres brancas, realidade para cuja análise não se presta a invocação abstrata da proibição de discriminação por sexo (10). Designada, no âmbito jurídico, sob o conceito amplo de discriminação múltipla, faz-se necessário distinguir, no interior do conceito jurídico, a perspectiva quantitativa (discriminação aditiva e composta, marcadas pela mera soma de critérios) da perspectiva qualitativa (discriminação interseccional)(11). Nesse contexto, utiliza-se a expressão "discriminação interseccional" para a compreensão da categoria jurídica da discriminação múltipla como fenômeno original, irredutível e inassimilável ao somatório de diversos critérios proibidos de discriminação de forma simultânea.

    A discriminação interseccional ocorre quando dois ou mais critérios proibidos interagem, sem que haja possibilidade de decomposição deles (12). Em seu conceito, é composta pelos elementos conceituais de intersecção de identidades consideradas como critérios proibidos de discriminação em estruturas de subordinação(13). Assim, a discriminação interseccional implica uma análise contextualizada, dinâmica e estrutural, a partir de mais de um critério proibido de discriminação. Por exemplo, uma mulher pertencente a uma determinada minoria está sujeita a estigmas e prejuízos diversos daqueles experimentados por homens pertencentes ao mesmo grupo (14). A discriminação baseada em mais de um critério deve ser vista, nessas situações, sob a perspectiva e considerando as experiências específicas do grupo subordinado, não de forma meramente quantitativa (15).

    Assim, a discriminação interseccional fornece ferramentas para a identificação de estruturas de subordinação que ocasionam determinadas invisibilidades perpetuadoras de injustiças. Por exemplo, em um caso de discriminação contra a mulher, a percepção pode ser reduzida meramente ao critério sexual, ficando invisível o contexto racial. A interseccionalidade permite visualizar não só o aspecto imediato, mas também que certos contextos nada têm de neutro ou natural, ainda que cotidianos.

    Assentada a pesquisa conceitual sobre a interseccionalidade da discriminação no debate jurídico antidiscriminatório, examinam-se a abertura e a presença da discriminação múltipla nos instrumentos legislativos mais relevantes, sem o que o enfrentamento da discriminação ficaria comprometido. Como se verá a seguir, tal se dá de modo tímido, tanto nos sistemas internacionais universal e regional (interamericano) de direitos humanos, quanto no direito interno brasileiro.

    A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, desenvolveu-se o direito internacional dos direitos humanos. Com isso, houve um processo de universalização dos direitos humanos em um sistema integrado de tratados e convenções internacionais. Esse sistema é conhecido como sistema universal ou global, cujo órgão representativo é a Organização das Nações Unidas (ONU). Ao seu lado, surgem os sistemas regionais de proteção, cujos objetivos são os de concretizar os direitos humanos nos respectivos planos regionais como, por exemplo, os sistemas regionais da Europa, Américas e África (16).

    A percepção da interseccionalidade da discriminação e a necessidade de prover respostas jurídicas ensejou o desafio de formular legislação internacional de direitos humanos adequada, objetivando combater tal injustiça.

    Uma manifestação de conscientização acerca da discriminação múltipla no sistema universal de proteção aos direitos humanos é a Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância, realizada em Durban, África do Sul (17). Nessa conferência, consolidou-se a previsão sobre as múltiplas ou agravadas formas de discriminação:

    [...] Reconhecemos que o racismo, a discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata ocorrem nos motivos de raça, cor, descendência ou origem étnica ou nacional, origem e que as vítimas podem sofrer múltiplas ou agravadas as formas de discriminação com base em outros relacionados motivos como sexo, língua, religião, opinião política ou outra opinião, origem social, riqueza, nascimento, ou de outro estado [...] (17)

    No ano de 2006, o sistema universal trouxe outra importante referência à discriminação múltipla, desta vez na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Ali também se mencionaram formas múltiplas e agravadas de discriminação, sofridas pelas mulheres e meninas deficientes.

    No sistema regional interamericano, destaca-se o Pacto de San Jose da Costa Rica (18), assinado em 22/11/1969, onde há a menção, em diversos momentos, sobre a proibição de discriminação acrescida de uma lista de critérios proibidos (artigos 1º, item 1, 13, item 5, 17, item 2, 24 e 27, item 1). Contudo, não há alusão, em momento algum, sobre a discriminação múltipla, a discriminação aditiva ou composta ou a discriminação interseccional. Constatação idêntica ocorre no exame do Protocolo de San Salvador (19), assinado em 17/11/1988, no qual há a obrigação de não-discriminação, sem qualquer referência à discriminação interseccional.

    Ainda no âmbito do sistema regional americano, é importante referir a Convenção Interamericana Contra o Racismo e Toda a Forma de Discriminação e Intolerância (20). Nela, há expressa referência à discriminação múltipla (artigo 1º, item 3), nos seguintes termos:

    Art. 1º - Para os efeitos desta Convenção:

    3. Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais dos critérios dispostos no Artigo 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada.

    Esse panorama normativo permite vislumbrar como tem se desenvolvido o tratamento da discriminação interseccional nos sistemas global e regionais de proteção de direitos humanos.

     

    O TRATAMENTO JURÍDICO DA DISCRIMINAÇÃO MÚLTIPLA NO DIREITO BRASILEIRO

    O tratamento jurídico da discriminação múltipla no Brasil vai, pouco a pouco, se formando. Com a afirmação do direito da antidiscriminação (21), a discriminação múltipla pode estruturar-se tanto a partir de uma leitura atualizada de antigos diplomas legislativos, bem como pela valorização de novos instrumentos internacionais de direitos humanos, recentemente incorporados ao ordenamento vigente.

    Com efeito, com a incorporação do direito internacional dos direitos humanos ao ordenamento brasileiro, em especial nos casos da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada pelo Brasil, a Convenção Interamericana Contra o Racismo e Toda a Forma de Discriminação e Intolerância, também já assinada pelo Brasil, recentemente aprovada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), e as conclusões das Conferências de Durban e de Beijing, percebe-se o avanço no compromisso com o combate às múltiplas formas de discriminação, inclusive com a discriminação múltipla.

    Além desses instrumentos, ainda na esfera internacional destacam-se dois casos pertinentes à discriminação múltipla relacionados ao Brasil de forma direta. Ambos cuidaram de situações envolvendo discriminação interseccional, explicitando a relação entre os critérios raça, gênero, classe e idade.

    O primeiro deles (caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira versus Brasil) tramitou no Comitê de Eliminação de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), onde foi examinada violação de direitos a uma brasileira, afrodescendente, de classe socioeconômica baixa, de 26 anos, moradora da periferia da cidade de Belford Roxo (RJ). O descaso do poder público com o direito à saúde de Alyne, que acabou vindo a óbito, ensejou ação judicial com pedido de indenização e reparação por danos morais. Passados vários anos sem resposta, a mãe de Alyne, através das Organizações Não-Governamentais Advocacia Cidadão pelos Direitos Humanos e o Centro para Direitos Reprodutivos, nos EUA, encaminhou petição individual ao Comitê Cedaw da ONU, em 2007. Examinando o caso, o comitê decidiu pela ausência de provas de existência de acompanhamento pré-natal e dos procedimentos médicos adequados desde o início das complicações da gravidez de Alyne. Em sua decisão de recomendação ao Brasil, ficou assentado que Alyne sofreu discriminação múltipla, levando em conta o fato de que a vítima era mulher, afrodescendente e pobre, circunstâncias relevantes no caso então em apreço (22).

    O segundo caso foi Wallace de Almeida versus Brasil, que tramitou junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Wallace era um jovem negro de 18 anos, soldado do Exército, de classe social baixa e morador da periferia do Rio de Janeiro (RJ). A petição referiu o assassinato de Wallace por policiais militares no dia 13 de setembro de 1998. Os fatos relatados reportaram época de sistemática violência e brutalidade excessiva vindas da polícia. Além disso, denunciou-se a influência de fatores raciais e sociais, pois as vítimas das ações policiais tinham alvo certo: a juventude negra, de condição pobre, moradores de favelas e da periferia. Na decisão do comitê, a ocorrência de discriminação interseccional ficou explícita. Segundo as conclusões do órgão internacional:

    [...] A Comissão Interamericana percebe uma influência significativa do fator racial neste caso. Em relação a isso, já foi enfatizado no passado, a preocupação com a violência contra a juventude no Brasil.

    [...] Outro fator na análise da violência policial no Brasil é a questão econômica e social, porque na maioria dos casos, as vítimas eram pobres, moradores de favelas e áreas circunvizinhas. [...]

    [...] A Comissão observa que a maioria das vítimas da violência policial no território do Estado são jovens pobres, negros ou pardos, muitos dos quais não têm antecedentes criminais . Segundo a Unesco, 93 por cento das vítimas de homicídios no Brasil em 2000 eram do sexo masculino. Os jovens com idades entre 15 e 24 anos são 30 vezes mais propensos a serem vítimas de homicídio. Jovens negros sofrem duplo homicídio. Dos 17.900 jovens que morreram de homicídio em 2002, 11.308 eram negros e 6.592 brancos. [...]

    [...] A Comissão considera que Wallace de Almeida foi morto como resultado de um ato discriminatório praticado por agentes do governo, sem respeito à situação de pertencer a um grupo considerado vulnerável (afrodescendente, pobre, morador de uma favela). Esta vulnerabilidade tem sido comparada pelo Tribunal em um estado de incerteza e insegurança para a vítima. Consequentemente, os direitos da vítima, neste caso, foram violados pelo Estado que falhou no seu dever de garanti-los. [ ...] (23)

    A par das normas e dos precedentes internacionais diretamente relacionados ao direito brasileiro que fazem referência à discriminação múltipla, há abertura constitucional para proibição jurídica da discriminação interseccional, como manifestação discriminatória específica e irredutível à mera aritmética soma de fatores. Isso em virtude da previsão do art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal, cujo texto expresso alude, em sua parte final, a "quaisquer outras formas de discriminação".

    Na mesma linha, na legislação nacional destaca-se o Estatuto da Igualdade Racial, em que há uma clara previsão acerca da discriminação múltipla, com a definição de desigualdade de gênero e de raça e a menção explícita às mulheres negras no inciso III, do artigo 1º:

    Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

    Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:

    I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;

    II - desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;

    III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais; (24)

    Seguindo a análise no direito brasileiro pode-se apontar a legislação penal sobre o preconceito de raça ou de cor, a Lei n.º 7.716/1989, que pode ser, sem esforço nem exagero, qualificada como a lei geral brasileira antidiscriminatória penal, dada sua relevância histórica e abrangência. Ela define em seu artigo 1º que "serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional"(25). Desse texto, abre-se espaço para a articulação de tipos penais prevendo condutas comissivas ou omissivas discriminatórias, sempre com base na lista de critérios proibidos de discriminação previstos, cuja possível combinação interseccional não pode ser afastada.

    A Lei de Reservas de Vagas para o Ingresso no Curso Superior, Lei n.º 12.711/2012 (Lei de Cotas) também ilustra a interseccionalidade no direito brasileiro (26). Em seus artigos 1º e 3º, há referência a intersecções de alguns fatores pertinentes à concretização da política pública de reserva de vagas, ainda que aqui não estejamos perante hipótese de discriminação múltipla, mas sim de consideração da interseccionalidade para a identificação dos beneficiários da medida. Conforme os dispositivos referidos, há a interseção de fatores como raça e classe socioeconômica para o preenchimento dos requisitos legais. Seguindo a mesma linha, pode-se arrolar a Lei n.º 12.852/2013 (Estatuto da Juventude) (27). Em seu artigo 8º, §1º, fica assegurado o acesso ao ensino superior de instituições públicas, mediante políticas afirmativas, para jovens negros.

    Muito importante nesse levantamento da presença da interseccionalidade no direito brasileiro é a Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) (28), que trata dos mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Dentre as diretrizes normativas ali contidas, há a preocupação com os critérios proibidos de discriminação que possam estar presentes em situações de impedimento no gozo de direitos fundamentais, tais como classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional. Reconhece-se, desse modo, que em situações de violência e discriminação contra a mulher pode-se ter a presença simultânea dos critérios proibidos de discriminação, de modo interseccional. Em havendo algum tipo de violência, por exemplo, contra uma mulher, negra, de classe social desfavorecida, a aplicação da Lei Maria da Penha deve dar em atenção às intersecções.

    No âmbito trabalhista também existe legislação sobre a proteção contra as práticas discriminatórias interseccionais. A Lei n.º 9.029/1995 trata das práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência nas relações jurídicas do trabalho (29). No texto legal está expressa a listagem de diversos critérios proibidos de discriminação: sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade. A interpretação do art. 1º da Lei n.º 9.029/1995, realizada de modo consciente quanto à interseccionalidade da discriminação múltipla possibilita abarcar tais realidades complexas.

    A hipótese de despedida discriminatória no emprego contra mulheres negras idosas exemplifica a necessidade da abordagem interseccional. A incidência da legislação trabalhista antidiscriminatória e a sua interpretação poderiam ser enfraquecidas por uma defesa do empregador que invisibilizasse as intersecções de gênero, raça e idade, na medida em que se afirmasse que, por empregar mulheres, negras e pessoas idosas, não faria sentido a denúncia da discriminação contra mulheres negras idosas. Contudo, a percepção das intersecções discriminatórias desnudaria tal justificativa, deixando claro que mulheres negras idosas são discriminadas em virtude da intersecção dessas características, o que não aconteceria diante mulheres brancas idosas e de mulheres negras jovens.

    A previsão normativa da discriminação múltipla pode ser vista, ainda, em alguns estatutos jurídicos brasileiros. O Estatuto do Idoso, Lei n.º 10.741/2003, quando trata da proteção judicial dos interesses difusos dos idosos deficientes, faz referência no artigo 79 sobre ações judiciais de responsabilidade em casos de atendimento insatisfatório "especializado ao idoso portador de deficiência ou com limitação incapacitante" (30). É clara alusão à necessidade de uso da abordagem interseccional em casos de multiplicidade de fatores tendentes à discriminação.

    Outra previsão encontra-se no Código de Defesa do Consumidor, Lei n.º 8.070/1990. Em seu artigo 39, há a vedação de práticas abusivas quando o fornecedor venha a "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância de consumidor, tendo em vista a sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços" (31). Como se vê, destaca-se a intersecção de critérios de idade e condição social. A vedação da prática abusiva sob tais moldes pode ensejar a consideração da discriminação múltipla com base na discriminação interseccional.

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Em sociedades complexas, permeadas de níveis muito altos de desigualdade e exclusão, mostra-se imprescindível fazer todos os esforços para o enfrentamento da discriminação. Inicialmente desenvolvida no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, a reprovação jurídica da discriminação interseccional adentrou no ordenamento jurídico nacional.

    Traduzida para o vocabulário do direito como discriminação múltipla, a qualificação jurídica da interseccionalidade do fenômeno discriminatório possibilita uma percepção mais adequada da discriminação em sua complexidade, repercutindo não somente na identificação das circunstâncias concretas e especificidades da discriminação, mas inclusive para o dimensionamento das consequências de tais condutas.

    Para além das respostas jurídicas, a denúncia da interseccionalidade da discriminação existente em casos de discriminação múltipla abre espaço para a reivindicação de justiça por parte de indivíduos e grupos cujas experiências tenham sido invisibilizadas. Ela colabora, por conseguinte, para o respeito diante das diferenças e a responsabilidade de protegê-las sempre que injustamente oprimidas.

     

    REFERÊNCIAS

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    2. Nações Unidas. Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 18 de dezembro de 1979. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/mulher/lex121.htm > Acesso em 02/11/2016.

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    14. Makkonen, L. L. M.T., 2009. Op. cit., p. 11.

    15. Crenshaw, K, 2002. Op. cit., p. 177.

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    18. Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San Jose da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm> Último acesso em 2 de novembro de 2016.

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    20. Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatadas de Intolerância. Disponível em: < http://www.oas.org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-68_Convencao_Interamericana_racismo_POR.pdf> Acesso em 2 de novembro de 2016.

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    24. Brasil. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.

    25. Brasil. Lei nº 7.716/1989, de 5 de janeiro de 1989. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.

    26. Brasil. Lei nº 12.711/2012, de 29 de agosto de 2012. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.

    27. Brasil. Lei nº 12.852/2013, de 05 de agosto de 2013. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12852.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.

    28. Brasil. Lei nº 11.340/2006, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.

    29. Brasil. Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.

    30. Brasil. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.

    31. Brasil. Lei nº 8.078/1990, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm> Acesso em 2 de novembro de 2016.