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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo enero./marzo. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100017 

    ARTIGOS
    GÊNERO

     

    As experiências da diversidade sexual e de gênero no interior da Amazônia: apontamentos para estudos nas ciências sociais

     

     

    Fabiano Gontijo

    Professor associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Email: fgontijo2@hotmail.com

     

     

    A tentativa de caracterização das experiências, expressões, práticas e vivências da diversidade sexual e de gênero na Amazônia deve levar em consideração, inicialmente, o que Peter Fry relatou na década de 1970, a partir de sua pesquisa realizada no Pará (1). Fry só teria podido perceber as particularidades e as singularidades das experiências da diversidade sexual e de gênero no Brasil como um todo porque teve a oportunidade de comparar dois contextos sociais tão distantes um do outro: o da metrópole amazônica, Belém, e o da megalópole nacional, São Paulo. A partir daí, criou-se uma espécie de paradigma nos estudos sobre a diversidade sexual e de gênero no Brasil (2), voltados sobretudo para as realidades urbanas do centro-sul do Brasil, deixando-se de lado as realidades interioranas, rurais e etnicamente diferenciadas e as realidades amazônicas.

    Os escritos de Fry, assim como o que ele publicou com Edward MacRae (3), e as obras de Carmen Dora Guimarães (4), Richard Parker (5), Nestor Perlongher (6), Luiz Mott (7), publicadas na década de 1980, e de Jaqueline Muniz de Oliveira (8), Maria Luiza Heilborn (9) e Jurandir Freire Costa (10), publicadas na década de 1990, dentre outras, geralmente com propostas de tipologias e mapeamentos, contribuíram decisivamente para a instituição do campo dos estudos sobre a diversidade sexual e de gênero no Brasil. Mas, quase sempre, tratando da homossexualidade masculina, urbana, branca (ou negra urbana) e das regiões Sudeste ou Sul.

    Desde as décadas de 1980/90, a diversidade sexual e de gênero vem se consolidando como um forte objeto de estudo nas mais diversas instituições de ensino e pesquisa nacionais, principalmente nas ciências humanas e sociais. São abordados temas variados que vão desde as questões básicas acerca do que é ser homossexual e como se constituem as categorias de designação vinculadas às identidades, às identificações e à diversidade sexual e de gênero eventualmente decorrentes das práticas sexuais entre sujeitos considerados (ou que se consideram) como sendo do mesmo sexo/gênero e as formas de sociabilidades homossexuais, até questões mais particulares ou singulares acerca da literatura e das produções culturais homossexuais ou homocultura; do mercado e do consumo "gays" ou "mercado rosa"; da especificidade da saúde de mulheres homossexuais ou de sujeitos transexuais e do envolvimento no combate à epidemia de HIV/Aids; do envelhecimento em homossexuais; da organização política de gays, lésbicas, travestis e transexuais; das tecnologias da transexualização, dos sexos e dos gêneros; dos novos regimes morais; das experiências religiosas homossexuais; do preconceito, da discriminação e da homofobia; dos direitos e do acesso à cidadania; das conjugalidades, das parentalidades e dos arranjos familiais homossexuais; dentre tantos outros temas. No entanto, pouco ou nada se escreveu sobre esses e outros temas em contextos rurais e interioranos e/ou em situações etnicamente diferenciadas, sobretudo amazônicas.

    Na sociedade brasileira contemporânea, assim, presencia-se uma efervescência de práticas (de pesquisa e de ativismo político) que questionam o padrão heteronormativo ou a heterossexualidade compulsória enquanto poderoso sistema ideológico ou sistema cultural, a partir de sujeitos lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, com todas as peculiaridades que o contexto sociocultural e histórico compõe. Motivado por e motivando esse fenômeno, os movimentos sociais vinculados aos direitos sexuais e os intelectuais afeitos à temática colocam, cada vez mais, questões visando desestabilizar a normatização de condutas que encerram essas experiências e, logo, interpelar a "analítica da normalização" (11), ou seja, a forma como as fronteiras da diferença são constituídas ou a maneira como se dá a construção de padrões que regulam a vida dos sujeitos em suas práticas cotidianas.

    Percebe-se que, embora Fry tenha iniciado os estudos sobre homossexualidade no Brasil pela capital paraense, pouco (ou nada?) foi escrito sobre o assunto na região amazônica até a década de 1990. Nos jornais cotidianos locais de Belém, tanto n'O Liberal, quanto no Diário do Pará, verificou-se uma ausência quase total dessa temática ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990 - os poucos relatos aparecem geralmente nos cadernos policiais. Com alguns trabalhos de conclusão de curso de ciências sociais, da Universidade Federal do Pará (UFPA), entre o final da década de 1980 e ao longo da década de 1990, tem-se um reinício do interesse pela temática na região. A partir da década de 2000, uma pequena série de estudos realizados na área das ciências humanas e sociais aplicadas (ciências sociais, serviço social, direito, psicologia etc) nas instituições de ensino superior da região Norte, culminam no final da década de 2000 e início de 2010 com as primeiras dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o assunto, defendidas. Assim como acontece no centro-sul do Brasil, os tímidos estudos sobre a diversidade sexual e de gênero realizados na Amazônia também vêm dando ênfase (mas, não exclusivamente) às realidades urbanas, brancas e masculinas (12).

    O que os estudos rurais, no Brasil, dizem sobre as experiências homossexuais? O que os estudos sobre etnicidade dizem sobre as experiências homossexuais? O que os estudos sobre a diversidade sexual e de gênero dizem sobre as experiências homossexuais rurais, interioranas e/ou em situações etnicamente diferenciadas? Enfim, o que os estudos amazônicos dizem sobre as experiências homossexuais?

    Na década de 1990, artigos de Ellen e Klaas Woortmann (13) já haviam atentado para algumas particularidades da sexualidade no mundo rural, embora esse não fosse o foco dos estudos. Em 2006, a tese de doutorado de Silva Nascimento e a dissertação de mestrado de Paulo Rogers Ferreira, ambas em antropologia, defendidas respectivamente na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade de Brasília (UnB) (14), trataram, com abordagens diferentes, de aspectos relativos à temática da sexualidade no mundo rural brasileiro, acrescentando, assim, novidades aos já tão consolidados estudos rurais brasileiros, por um lado, e, por outro, aos também já tão consolidados estudos sobre gênero e sexualidade no Brasil, inclusive na perspectiva "queer". Depois, a dissertação de mestrado de Luanna Mirella, intitulada "Localidade ou metrópole? Demonstrando a capacidade de atuação política das travestis no mundo-comunidade", defendida em 2010 no programa de pós-graduação em antropologia social da UnB (15), apresentou a trajetória biográfica de Kátia Tapety, travesti que exerceu cargos políticos em um pequeno município rural piauiense, mas não se tratou especificamente de uma pesquisa sobre a sexualidade de travestis no mundo rural brasileiro.

    Mais recentemente, na década de 2010, as pesquisas realizadas por Martinho Tota (16) e por Roberto Marques (17), ambos no Nordeste, vêm abordando com primor a sexualidade divergente em contextos interioranos - seja entre indígenas, como Tota junto aos potiguar da Paraíba, seja em festas de forró eletrônico, como Marques, no interior do Ceará. Vale ressaltar ainda as pesquisas recentes de Moisés Lopes (18), na capital mato-grossense, junto a militantes e ativistas dos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, e as pesquisas de Guilherme Passamani (19), na região pantaneira de Corumbá, Mato Grosso do Sul, junto a idosos homossexuais interioranos, dentre outras.

    Alguns desses trabalhos, assim como alguns artigos que Silvana Nascimento vem publicando nos últimos anos sobre as experiências da diversidade sexual e de gênero consideradas como desviantes em contextos rurais e interioranos da Paraíba, serviram de inspiração inicial para nossas indagações sobre a experiência das sexualidades no mundo rural piauiense, num primeiro momento, e, em seguida, no interior do Pará. Na pesquisa bibliográfica desenvolvida durante o estágio pós-doutoral, foi feita uma análise dos artigos e dossiês em periódicos especializados e das publicações que reúnem textos com o "estado da arte" sobre os temas da ruralidade e do gênero/sexualidade nas ciências sociais confirmando as inúmeras lacunas e quase total ausência dos relatos sobre a vivência sexual e das experiências da sexualidade dos camponeses, não somente nos estudos rurais, mas também nos estudos de gênero e sexualidade.

    Após algumas viagens ao interior do Piauí (regiões centro-sul e norte do estado) para conversar com sujeitos cujas trajetórias e experiências não se encaixavam exatamente naquilo que se vinha lendo, por um lado, sobre aquele camponês tal qual tratado pelos estudos rurais, e, por outro lado, sobre identidades e transgressões sexuais e de gênero nos estudos de gênero e sexualidade, decidiu-se indagar-se sobre o porquê (e o como) desses desencaixes ou lacunas, ausências e possíveis silenciamentos. A inserção no contexto amazônico levou-nos a acrescentar a essa preocupação aquela com os desencaixes, lacunas, ausências e possíveis silenciamentos verificados também no que diz respeito à experiência da diversidade sexual e de gênero em contextos etnicamente diferenciados e em pequenas e médias cidades amazônicas, nos "interiores", onde as categorias do rural utilizadas para o entendimento das realidades específicas das regiões Sul e Sudeste parecem não ter o mesmo vigor diante da entrada em cena de categorias como "caboclo", "ribeirinho" e "homem amazônico", tornando a realidade ainda mais complexa. Essa complexidade tem nos levado à proposta, ainda que tímida, da noção de "interioridade": um espaço-tempo que transita entre ruralidade e urbanidade, confundido pela dinâmica da etnicidade, em contexto amazônico, nas figuras do cabloco e do ribeirinho, além do indígena e do quilombola.

    Algumas importantes referências sobre o assunto das experiências da diversidade sexual e de gênero nos contextos interioranos e nas situações etnicamente diferenciadas foram encontradas até agora em nossas buscas bibliográficas. Para os estudos sobre sexualidades entre povos indígenas, parece fundamental o artigo de Cristina Donza Cancela, Flávio Leonel da Silveira e Almires Machado (este último, indígena Guarani do Mato Grosso do Sul) (20) abordando a maneira como os pesquisadores e o indígena construíram um diálogo sobre a possibilidade de existência das práticas sexuais entre pessoas consideradas como sendo do mesmo sexo nas aldeias da etnia de origem de Almires.

    A coletânea intitulada Gênero e povos indígenas, organizada por Ângela Sacchi e Márcia Maria Gramkow (21), traz textos que também contribuem para instigar a discussão sobre o assunto, mas que pouco problematizam a diversidade sexual e de gênero nas situações objetivas abordadas.

    O número 41, de 2013, do periódico Cadernos Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), trouxe uma grande contribuição para os estudos sobre gênero e sexualidades em contextos indígenas, em particular com os artigos de Vanessa Lea ("O som do silêncio (Paul Simon)", pp. 87-93, onde a autora aborda o fato de que "a necessidade de acomodar-se ao mundo não-indígena atiça a curiosidade dos povos indígenas a respeito da sociedade envolvente", em particular no que diz respeito ao interesse de indígenas pela pornografia e as fontes de erotismo dos não-indígenas) e Cecília MacCallum ("Notas sobre as categorias 'gênero' e 'sexualidade' e povos indígenas", pp. 53-61, que trata da fragilidade do uso das categorias de gênero e sexualidade para tratar de realidades indígenas) - embora pouco se tenha falado de práticas sexuais entre pessoas consideradas como sendo do mesmo sexo nas situações concretas analisadas pelos autores.

    A tese de Estêvão Fernandes (22) sobre "homossexualidade indígena no Brasil", defendida em 2015, trata do que ele afirma não ter encontrado na literatura, apesar das diversas referências a sexualidades indígenas em alguns textos já considerados clássicos, como em Charles Wagley, Pierre Clastres, Claude Lévi-Strauss, Alfred Métraux, Darcy Ribeiro, dentre outros, por um lado, e, por outro, em alguns textos da historiografia também clássica sobre os nativos americanos nos primeiros momentos dos contatos com os europeus.

    Um seminário organizado por Luisa Elvira Belaunde (MN) e Els Lagrou (IFCS), ambas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Marina Vanzolini (PPGAS) da USP, realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ em junho de 2015, tinha por objetivo discutir a sexualidade indígena - com o instigante título de "Foucault na Amazônia? Sexualidades indígenas" -, abrindo uma nova arena para a discussão do assunto. Algumas das comunicações apresentadas durante o evento encontram-se no dossiê temático intitulado "O estudo da sexualidade na etnologia", publicado pela Revista Cadernos de Campo, em seu volume 24, número 24, de 2015. Importante também foi o Fórum Temático "Diversidade sexual e de gênero: interseccionalidade, violência e regionalidade" (do qual fizemos parte), coordenado por Júlio Simões, na V Reunião Equatorial de Antropologia, realizada em Maceió, em julho de 2015.

    Vale ressaltar, ainda, a mesa-redonda "Diversidade sexual e de gênero em áreas rurais, contextos interioranos e/ou situações etnicamente diferenciadas - novos descentramentos em outras axialidades", coordenada por Laura Moutinho e Fabiano Gontijo, na XXX Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em João Pessoa, em agosto de 2016, que gerou um dossiê com o mesmo título publicado na Revista de Antropologia do Centro-Oeste (Aceno) (23).

    Assim, concluem-se as pesquisas bibliográficas realizadas até o momento percebendo que, no que diz respeito aos estudos rurais, parece que a maior parte dos artigos e textos analisados estão ora voltados para a organização social vinculada aos aspectos econômicos da vida no campo, ora voltados para as questões morais relativas à família e aos arranjos familiares camponeses - o gênero aparece quase sempre na forma da mulher trabalhadora e/ou militante ou dos papéis familiares.

    No que diz respeito aos estudos de gênero e sexualidade, quando há articulação com a ruralidade, nota-se um grande número de artigos e textos que abordam, num primeiro momento, a condição da mulher camponesa (reprodutora e eventualmente produtora), às vezes vinculada aos movimentos sociais no campo, e/ou, em seguida, as relações de poder que permeiam as relações de gênero e as transformações dessas relações no mundo rural contemporâneo. A sexualidade (a)parece relegada à vida urbana como algo que não é conveniente à realidade rural.

    A sexualidade e, mais particularmente, a diversidade sexual e de gênero e as práticas sexuais - que podem se tornar marcadores sociais da diferença, interseccionalizados nas pesquisas sobre o mundo rural ou na etnologia indígena ou nos estudos de realidades quilombolas, caboclas e ribeirinhas - não teriam se transformado em objetos de estudo per se, por diversas razões, não necessariamente por uma suposta incapacidade dos pesquisadores em perceber sua importância para a compreensão das relações sociais marcadas pelas ruralidades, pela etnicidade ou pela regionalidade. Talvez a principal dessas razões seja a própria agenda de pesquisas, tanto nos estudos rurais ou nos estudos étnicos ou sobre realidades interioranas, como nos estudos de gênero e sexualidade, pautada por outros interesses de pesquisa ligados a certas tradições intelectuais (muitas vezes, a montagem da agenda se faz de acordo com demandas oriundas dos mais diversos pontos do campo de força em jogo nas ciências sociais). No caso dos estudos rurais, em algumas tradições intelectuais que buscam entender as sociedades camponesas como sistemas sociais específicos, a economia e a política se tornam dimensões mais privilegiadas do que a sexualidade, entendida, esta última, como secundária (pensamos aqui, como exemplo, em uma certa tradição já clássica desenvolvida, por um lado, por Eric Wolf e Sydney Mintz, e, por outro, por Henri Mendras).

    Embora historicamente as ciências humanas e, em particular, as ciências sociais e a antropologia, venham deixando de lado esses aspectos da vida social no meio rural e interiorano ou em situações etnicamente diferenciadas, problematizados aqui, percebe-se que, também historicamente, outros campos de produção de saberes e conhecimentos, como a literatura brasileira consagrada ou as artes plásticas celebradas, estão repletos de referências (muitas vezes explícitas) à sexualidade do camponês ou do homem que vive no campo, do indígena ou do africano do interior do país, do caboclo e do ribeirinho amazônida e do interiorano em geral (24).

    No entanto, é sabido que as ciências humanas se constituíram, enquanto ciências, como legítimas provedoras de "verdades" sobre o mundo, por oposição à literatura, esta relegada ao campo da "ficção" e, eventualmente, da produção de informação despreocupada com as "verdades". Coube às ciências, assim, a instituição do que seria bon à penser; e, à literatura e às artes plásticas, o "resto", a saber a sexualidade no mundo rural ou nos contextos interioranos e situações etnicamente diferenciadas, dentre outros temas.

    Os estudos rurais, assim como os estudos sobre realidades interioranas, contextos indígenas e etnicamente diferenciados, deixaram de lado (ou abordaram tangencialmente), durante muito tempo, essas temáticas consideradas periféricas, por um lado, por não tratarem da relação do camponês ou interiorano com sua produção, privilegiando-se, assim, os estudos sobre economia doméstica, conflitos agrários, sindicatos rurais, migrações, dentre outros - isso se deve, talvez, à contaminação dos estudos rurais pelos ideais desenvolvimentistas e heteronormativos... ou, por outro lado, simplesmente, porque essas temáticas não faziam parte da agenda de pesquisas naqueles momentos; ou, enfim, por não considerarem relevantes os discursos sobre a sexualidade proferidos por indígenas e quilombolas para o entendimento das cosmologias locais.

    Quando despontam sujeitos que vivenciam o seu direito à liberdade de escolha e que destoam dos sujeitos com comportamentos "funcionais", tidos como "padrão", são logo taxados de "desviantes". Assim, no que diz respeito à diversidade sexual e de gênero, os mundos rural e interiorano amazônicos e os contextos indígenas e etnicamente diferenciados estariam apresentando uma ruptura com uma forte discursividade, aquela referente à longa tradição heteronormativa? Ou as relações observadas nos mundos rural e interiorano amazônicos e em contextos indígenas e etnicamente diferenciados seriam simplesmente o retrato - agora em cores - de uma realidade complexa e diversificada, muitas vezes negada pelos estudiosos dessas realidades e contextos? Ou o que vemos diz respeito simplesmente à dinâmica mesmo da vida social como um todo, em qualquer contexto?

    Exortamos para que se reconheçam as complexas e dinâmicas interações desses sujeitos rurais, interioranos, indígenas e/ou quilombolas, caboclos e ribeirinhos, sobretudo amazônicos, e sua maneira criativa de constituir relações afetivas, voltando-se assim para a maneira como os "padrões hegemônicos de normalidade" seriam (re)interpretados e experimentados (talvez às avessas) em contextos culturais distintos, criando novos ou outros sujeitos imbuídos de novas ou outras moralidades e (até mesmo) constituindo novas ou outras legalidades. Somente assim, enquanto pesquisadores engajados, estaremos aptos para pensar, com nossos interlocutores, sobre a maneira como os direitos - geralmente elaborados por sujeitos envolvidos num jogo político que desconsidera as realidades rurais, etnicamente diferenciadas e interioranas das expressões da diversidade sexual e de gênero -, podem ser negociados, a partir de um diálogo mais simétrico, de modo a atender às demandas dos povos, populações e grupos subalternizados em seu reconhecimento identitário, principalmente quando suas experiências (da diversidade sexual e de gênero) os tornam duplamente subalternos, inferiores e marginais.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Ao CNPq, nosso agradecimento pela bolsa de produtividade em pesquisa.

    2. Ver Fry, P. "Homossexualidade masculina e cultos afro-brasileiros". In: Fry, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, pp. 54-86. E também Fry, P. "Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil". In: op. cit., pp. 87-115.

    3. Fry, P. e MacRae, E. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983

    4. Guimarães, C. D. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004 [1977]

    5. Parker, R G.. "Masculinity, feminility, and homosexuality: on the anthropological interpretation of the sexual meanings in Brazil". In: Blackwood, E. (org.). Anthropology and homosexual behavior. Nova Iorque: The Haworth Press, 1986

    6. Perlongher, N. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987

    7. Mott, L. Dez viados em questão: tipologia dos homossexuais da Bahia. Salvador: Ed. Bleff, 1987

    8. Muniz de Oliveira, J. "Mulher com mulher dá jacaré: uma abordagem antropológica da homossexualidade feminina". Dissertação (mestrado em antropologia social). PPGAS/MN/UFRJ. Rio de Janeiro, 1992

    9. Heilborn, M. L. "Ser ou estar homossexual: dilemas de construção de identidade social". In: Parker, Richard & Barbosa, Regina (orgs.). Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

    10. Costa, J. F. A inocência e o vício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.

    11. Miskolci, R. "A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização". Sociologias, 11, 21, 2009, pp. 150-182.

    12. Ver Gontijo, F. e Erick, I. "A experiência da diversidade sexual e de gênero no Pará: espaço público, representações e discursividades". Revista FSA, 13, 4, 2016, pp. 40-59.

    13. Woortmann, E. e Woortmann, K. "Fuga a três vozes". Anuário Antropológico/91; Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1993.

    14. Nascimento, S. S. "Faculdades femininas e saberes rurais. Uma etnografia sobre gênero e sociabilidade no interior de Goiás". Tese (doutorado em ciência social - antropologia). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006; e Ferreira, P. R. "Os afectos malditos: o indizível das sociedades camponesas". Dissertação (mestrado em antropologia social). Brasília: Universidade de Brasília, 2006.

    15. Mirella, L. "Localidade ou metrópole? Demonstrando a capacidade de atuação política das travestis no mundo-comunidade". Dissertação (mestrado em antropologia). Brasília: Universidade de Brasília, 2010.

    16. Tota, M. "Entre as diferenças: gênero, geração e sexualidades em contexto interétnico". Tese. (doutorado em antropologia social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

    17. Marques, R. "Homoerotismo no Cariri Cearense: inscrições de um objeto em suas relações com o silêncio". Métis: história & cultura, 10, 2012, pp. 197-217.

    18. Lopes, M. O "Movimento LGBT da baixada cuiabana e a segmentação de identidades". In: Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Londrina: EdUEL, 2014.

    19. Passamani, G. "Batalha de confete e outras memórias: condutas homossexuais e curso de vida no carnaval do Pantanal". In: Anais da V Reunião Equatorial de Antropologia. Maceió: EdUFAL, 2015.

    20. Cancela, C. D.; Silveira, F. L. da; e Machado, A. "Caminhos de uma pesquisa acerca da sexualidade em aldeias indígenas no Mato Grosso do Sul". Revista de Antropologia (USP), 1, 53, 2010, pp. 199-235.

    21. Sacchi, A. e Gramkow, M. M. (org.). Gênero e povos indígenas. Rio de Janeiro/Brasília: Museu do Índio e Funai, 2012.

    22. Fernandes, E. R. "Descolonizando sexualidades: enquadramentos coloniais e homossexualidade indígena no Brasil e nos Estados Unidos". Tese de doutorado, Estudos Comparados sobre as Américas, UnB, 2015.

    23. Ver dossiê "Diversidade sexual e de gênero, ruralidade, interioridade e etnicidade no Brasil: ausências, silenciamentos e... exortações". Aceno: revista de antropologia do Centro-Oeste, 2, 4, 2015.

    24. Para citar somente um caso emblemático da literatura brasileira, pensemos na relação dos personagens Diadorim e Riobaldo, de Grande sertão: veredas, de 1956, de autoria de Guimarães Rosa. E nas artes plásticas, não passa despercebida a sensualidade e a sexualidade de alguns personagens rurais e/ou etnicamente marcados de Cândido Portinari ou até mesmo de Djanira. Nas ciências humanas e sociais brasileiras em sua formação, encontramos referências à experiência sexual dos sujeitos que vivem no interior do Brasil na obra majestosa de Gilberto Freyre, por exemplo, e até mesmo nas obras de Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado ou Antônio Cândido, obras muitas vezes consideradas ensaísticas.