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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo enero./marzo. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100020 

    CULTURA
    CINEMA

     

    Mad Max e a feminilidade ativa

     

     

    Andressa Gordya

     

     

    O cinema mainstream nunca economizou em produções que enalteciam a masculinidade enquanto exemplo de força, autonomia e autoridade. Do clássico do western, passando pela desenvoltura física de Fred Astaire, aos machões dos filmes de ação da década de 1980 estrelados por Arnold Schwarznegger e afins, a representação de um cinema falocêntrico baseou-se em estabelecer o masculino com enaltecimento de domínio e o feminino, esquecido e objetificado, como "o outro".

    A questão das representações de gênero não são novidade nos estudos de cinema. A crítica cinematográfica e feminista britânica, Laura Mulvey, trouxe questionamentos importantes nesse aspecto em seu ensaio pioneiro Prazer visual e cinema narrativo (1973). Utilizando-se dos estudos da psicanálise e semiótica, a autora focou suas pesquisas nas composições da escopofilia, do voyeurismo e do que ela veio a chamar de male gaze, ou seja, o olhar masculino como dominante nas instâncias de prazer por meio da observação discreta do espectador na sala escura. Desta forma, de acordo com Mulvey, o espectador masculino projeta suas fantasias na tela, reproduzindo e relacionando constantemente sua masculinidade à ação e ao domínio (do feminino e da narrativa), enquanto as mulheres estão relacionadas à passividade, ao exibicionismo e à espetacularização de seus corpos. A importância feminina está no que ela provoca e representa, o que ela causa no herói é o que rege a ação da narrativa, ou seja, homens agem e mulheres são sempre coadjuvantes. Aqui está a grande diferença da representação do feminino e do masculino no cinema clássico.

    Contudo, não é possível definir o cinema como um sistema homogêneo, tanto de produção quanto na chave do simbólico. A trilogia Mad Max (1979-1985) e sua continuação Estrada da fúria (2015), de George Miller, trazem questionamentos instigantes a respeito desse enaltecimento do masculino no cinema. Mad Max ganhou fama como uma ode à masculinidade convincente, lançou Mel Gibson ao olimpo cinematográfico hollywoodiano e tornou-se um clássico imediato, cultuado por gerações de homens que projetavam no Max, de Gibson, seus anseios masculinos por destruição e o fetiche por carros, jaquetas de couro e armas.

    Entretanto, ao penetrar na chave narrativa de Mad Max, o hibridismo entre o gênero road movie e o pós-apocalíptico traz uma particularidade essencial: a busca por liberdade e desacorrentamento dos grilhões sociais, típicos dos road movies, não se exibe na relação que Max estabelece com a estrada, mas com a total ausência dela. A destruição do mundo e das estruturas da sociedade como conhecemos ampliam os horizontes onde, no universo desértico de Wasteland, tudo é estrada e nada é estrada. Como explica a novelista e professora da Universidade de Tecnologia de Sidney, Délia Falconer, em ensaio sobre o filme, publicado em 1997, a não-estrada de Mad Max ao mesmo tempo em que, numa terra sem lei, pode desencadear um processo grotesco de violência e opressão, também pode apresentar uma possibilidade libertadora contra as normas hegemônicas, alterando a ordem simbólica das relações de poder e estabelecendo, assim, novas relações entre os indivíduos.

     

    MASCULINIDADE E HOMOEROTISMO

    Em Mad Max, a masculinidade está localizada no interior das fantasias de violência, liberdade e libertação - que também abraça a situação dos jovens "garotos de guerra" presentes em Estrada da fúria - fantasias que são realizadas em oposição à família, ao direito e ao controle. A obra pós-apocalíptica de Miller, ao mesmo tempo que se desfaz das relações de poder, as erotiza. A presença do homoerotismo é constante, sobretudo em A caçada continua (1981).

    A estética que mistura o cyber punk com o bondage, inspirada no BDSM (acrônimo para a expressão "bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo), presente em todos os filmes da franquia e pelo fetiche com as roupas de couro, traz novas representações do masculino que destoam e se distanciam da composição macho alpha/dominante e mulher/submissa. Quando se vai além da superfície de emasculação de Mad Max, encontram-se reflexões sobre a masculinidade que descontroem a famosa relação virilidade/heterossexualidade, tão difundida pelo senso comum. Em Wasteland, a sexualidade masculina é um jogo sexual e político, o BDSM é a erotização das relações de poder sem exercê-las de fato, diferindo-se do poder social. Como afirmou Michel Foucault, em sua obra História da sexualidade, "(...) o jogo do S/M é muito interessante porque, enquanto relação estratégica, é sempre fluida. (...) É uma encenação de estruturas do poder em um jogo estratégico, capaz de procurar um prazer sexual ou físico".

     

    O FEMININO NÃO-PASSIVO

    Se já haviam sutis distorções de dominância nos três primeiros filmes, Estrada da fúria apresenta uma mudança quase completa das representações de gênero em sua construção narrativa, tanto em relação à masculinidade, como já foi citado, quanto nas profundas implicações e questionamentos sociais, estéticos, teóricos e de linguagem explícitos no filme. Max, como símbolo etéreo do macho alfa, já não representa mais a força viril da masculinidade socialmente construída, mas a decadência dela junto com o mundo que a masculinidade domina.

     


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    Em Estrada da fúria foi a guerra por combustível que destruiu a humanidade, foi a sede de poder e de dominância masculina que transformou o mundo em pó e ruínas. Muitos consideram que o maior potencial da obra está em sua ação frenética, sua montagem videoclíptica e no conteúdo feminista aparentemente superficial. Contudo, Mad Max: Estrada da fúria é tudo, menos superficial. Em duas horas absorvemos uma crítica anárquica sobre as relações de gênero e Miller não apenas eleva a força feminina à sua máxima potência, mas também ridiculariza a estrutura burocrática capitalista e satiriza com sarcasmo a masculinidade frágil e alienada de um sistema que glorifica o falo.

    Diferentemente dos três primeiros filmes, aqui são a revolta e a rebelião femininas contra as opressões patriarcais que geram a narrativa. Os corpos femininos não estão mais - tão - dispostos ao prazer do olhar masculino, olhar este tão criticado por Mulvey. Há uma recusa à passividade das protagonistas, ao domínio de seus corpos, à opressão da sexualidade feminina, das relações de poder e da maternidade como potencial fragilizador. Em Estrada da fúria, Max perde o carro, a liberdade, as botas e o protagonismo, não é um filme sobre ele, é um filme sobre Furiosa. É um filme sobre a violência contra as mulheres e como os homens podem colaborar nessa luta sem roubar-lhes o espaço.

    Mulvey questiona o papel da mulher na ordem simbólica do cinema clássico e como ela é inserida na cultura patriarcal como "o outro" "(...), posicionada numa ordem simbólica na qual o homem pode viver suas fantasias e obsessões através do comando linguístico, impondo-o à imagem silenciosa da mulher que permanece fixa em seu lugar de sustentáculo, mas não de produtora de significado", afirma a novelista australiana. Entretanto, a representação feminina edificada no cinema clássico através desse olhar em função do falo já não se sustenta mais, já não é mais tolerada, por mais que ainda seja dominante. O silêncio foi quebrado pelas feministas e por uma geração inteira de mulheres que não se sentem representadas pela imagem de si que veem na tela, Mad Max: estrada da fúria torna-se, dessa forma, mais que um filme histórico, um filme necessário.