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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo jan./mar. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100023 

    CULTURA
    RESENHA

     

    Uma biografia imaginária

     

     

    Carlos Orsi

     

     

    Eu estou vivo e vocês estão mortos: a vida de Philip K. Dick, do escritor e cineasta francês Emmanuel Carrère, é uma "biografia ficcional" do escritor de ficção científica americano Philip K. Dick (1928-1982). O livro é uma biografia na medida em que Carrère, além de ter um protagonista real, segue, escrupulosamente, a cronologia conhecida de seu personagem: seus cinco casamentos, dois êxtases místicos - um envolvendo uma visão da face do mal no céu, a outra, uma década mais tarde, um encontro pessoal com, talvez, Deus - seu breve exílio no Canadá, sua morte.

    Mas é ficcional na medida em que o autor insiste em tentar reconstruir o que Dick teria pensado e sentido a cada momento de sua vida, em recriar conflitos e motivações íntimos do escritor. Ao fazer isso, Carrère acaba impondo uma leitura muito particular, sua, dos eventos e experiências da vida de Dick. Nesse aspecto, a edição brasileira da Editora Aleph - que vem publicando a obra de Philip K. Dick entre nós - teria feito melhor se preservasse o subtítulo da edição inglesa que, a um só tempo, anuncia a imensa pretensão de Carrère e adverte o leitor: "uma viagem à mente de Philip K. Dick".

    Hoje em dia, Dick é mais lembrado como fonte de inspiração de obras cinematográficas de grande impacto artístico ou comercial (Blade runner, de Ridley Scott [1982], Minority report, de Steven Spielberg [2002]) ou que atingiram status de filmes "cult" (O homem duplo, de Richard Linklater [2006], diretor que depois ganharia reconhecimento internacional com Boyhood [2014].

     

     

    Em vida, no entanto, o escritor foi celebrado como um dos autores mais ligados ao espírito lisérgico e libertário dos anos 1960.

    Em especial, as preocupações de Dick com a própria natureza da realidade e com o poder de governos, empresas de mídia (e traficantes de drogas) de controlar a percepção do real pelo público encontraram forte ressonância nos anos 1960-70, e são relevantes até hoje.

    Com esse personagem fascinante em mãos, Carrère cai na tentação de usá-lo como trampolim para digressões que devem interessar muito mais aos fãs do biógrafo do que aos do biografado. Os trechos em que o autor descreve a vida de Philip K. Dick são cheios de interesse; os trechos em que Carrère trata de si mesmo ou do que imagina que Dick pensava, ou em que especula em torno de relatos autobiográficos do norte-americano, causam impaciência e irritação.

    À irritação provocada pelas interferências do ego do biógrafo, soma-se a causada pelos inúmeros tropeços da tradução. Eles vão desde ocorrências menores, como "direitos cívicos" (em lugar de "direitos civis") às embaraçosas ("indígenas" no lugar de "indianos") e às francamente constrangedoras (uma alusão à conversão do judeu Saulo no apóstolo São Paulo, na estrada de Damasco, transfigura-se em algo sobre um certo "Saul" a caminho de "Damas").

    Tendo-se em vista o grande número de obras sobre Dick disponíveis no mercado internacional, é curiosa a opção da Aleph pelo título francês. A explicação pela escolha do livro de Carrère talvez esteja no apoio dado à publicação, reconhecido junto à ficha catalográfica do livro, do Institut Français, órgão do Ministério das Relações Exteriores da França dedicado a promover a cultura francesa pelo mundo. Seja qual for a razão, no entanto, o fa-to é que os fãs brasileiros de Philip K. Dick, que a Aleph parece querer cortejar, mereciam uma tradução melhor de um livro melhor.